Fonseca Santos. 2018. Inês. Suite sem Vista. Lisboa. Abysmo.

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a poesia da Inês, há uma situação paradoxal que é explorada no laboratório vital. De uma forma activa, a compreensão faz ver, dá a ver. Por um lado, a interpretação estrutural dos espaços privados, públicos, subjectivos e cósmicos, é feita toda ela a partir do interior íntimo da sua habitação.

Este interior é tudo menos geométrico. Não se opõe a nenhum exterior. É antes o ponto de irradiação da nossa vida. É heterogéneo. Permite uma geografia da instalação da existência e, por isso, faz vibrar também o desenraizamento. O existencial é constituído a partir da privacidade. Sente-se tensa a relação entre o limite extremo abobadado e o aquém, onde cada um tem, não o seu ponto de vista, mas o seu corpo próprio.

Opera-se a personificação dos objectos. Melhor, porque não há objectos, das coisas. Há peças. Peças de mobiliário. O mobiliário é a totalidade das coisas, cidades e campo, edifícios públicos e privados, casas, quartos, hotéis: o recheio do mundo, as peças de mobiliário da nossa existência.

Em ambos os casos, percebemos que é o quarto, recesso recôndito do amor e de tudo o que lá se faz sem amor, a partir de onde se expandem as vidas dos amantes num único mundo, numa única vida, numa eternidade à escala universal. E nem mesmo quando é uma suite de Hotel deixa de ser o sítio inóspito para onde somos atirados, despidos de nós. A morada provisória transforma-se numa morada permanente. Inverte-se o sentido habitual. Afinal a vida não é mudança mas a imobilização que nos pode prender a um sítio, num tempo que nunca mais se transformará. E, contudo, está em permanente mudança como Jonas na barriga da baleia no seu percurso interior e submarino. Ou, como nas antigas cosmogonias, a vida é a barca em que embarcamos e de onde desembarcamos.

A cidade inteira, a Terra, o céu é o interior. Embora a astronomia tivesse afastado irremediavelmente a subjectividade das estrelas, para as transformar em objectos regimentados por regras e leis, ainda subsiste a compreensão para a claustrofobia das vidas das pessoas no seu encaminhamento, as pessoas que encontramos e aquelas de quem nos desencontramos, os que ficaram para sempre e os que se foram não menos para sempre. Em XII, lê-se este lugar, “suite sem vista”, “passa a subúrbio”.

Mas é no próprio ponto de vista, na perspectiva, ou talvez melhor do acesso, que percebemos sempre de um modo negativo a presença dos objectos das nossas vidas, presentes, passados e a haver.

Em I., lemos a “cegueira voluntária”, o “encobrimento” como espaço estrutural criador de opacidade para o presente, mas também o “esquecimento”. O esquecimento não é um acto psicológico negativo que nos faz esquecer apenas, ou não nos deixa lembrar, do passado, mas é o que pode apagar um mundo e por sua ineficácia também o manter vivo. Por mais que se possa “tapar os olhos”, não é possível “esquecer o cheiro do outro”. O outro está presente, mas é apenas a sua impressão, deixada em nós do passado. Com ele somos o estado em que fomos deixados.

A vida é a lentidão do tempo reflectida na lentidão do movimento, da deslocação e na dificuldade ou aparente impossibilidade de acontecer qualquer transformação e mudança. “Os passos lentos/ devolvem o peso ao corredor”. O outro não é residual: “a sujidade das unhas como a humidade ou bolor interno”. A rapariga “cega atravessa paredes”, tem a densidade de um fantasma, porque como diz a filosofia existe em e por si, exclusivamente para si. Não é vista. É um fantasma a conviver com o fantasma daquele outro.

Só olha para “A cama: só cama, demasiada, insultuosa/ tudo a dobrar ou excessivo para quem fica numa casa sem outro que a houvera habitado”. O quarto todo, a casa toda, é como se fosse o hotel, mesmo que habitado na suite, no melhor quarto. Mesmo que o hotel não fosse de beira de estrada, porque tinha sido um sítio para dois. E tudo sobra: “dois lavatórios pelo preço de um, dezenas de miniaturas// para o asseio, cofre, minibar, canetas, um postal,// a garrafa de Evian por cortesia.”

Em II, descreve-se esta sobra. Há “metade da vida”, quando se “respirava a vida inteira cronométrica”. Desce-se ou sobe-se até “Ao lado, [até a]o casal demasiado brando,// roupões brancos, lençóis brancos, dedos brancos”. Qual o sentido da brandura? A da ternura ou a do tédio que permite ver o desfecho cruel mas inevitável de quem quer literatura e não a vida? A verdadeira solidão, porém, não é compreendida na sua dinâmica sem se perceber na ”desolação da abominação” como diz a teologia.

Em III., a geografia da solidão é a da desolação da abominação, é a do abandono. E o gato vadio que é levado para casa e “mija” em cada canto não reclama um espaço para si. O que faz é para se reconhecer ainda, a partir de um detrito de si próprio: A cartografia da vida é ““um mapa mental que jaz sepultado onde outra mulher exibe a cabeça dele, um troféu// terra devastada de ninguém.”

O outro é outro, é adulterado e alienado. E é afirmado na sua impermeabilidade a nós. Segue a sua vida, faz a sua vida, com outra pessoa. É esquizofrenia pensar numa criatura da nossa cabeça ser a criatura na cabeça de outrem, a fazer vida com outra pessoa.

Se os espaços amplos permitem espraiar-nos, lidamos com espaços estreitos, espeleologicamente: a “escavar” (IV). Por onde vamos é “túnel”, só há “dentro” e é “sem vista”. E na demanda minimal por um sítio onde se possa estar, havemos de topar com a “caixa do primeiro luto”, “minúsculo caixão do passarinho negro”, “esqueleto do pássaro e o que outrora terá sido a rapariga.” O “passarinho” (Catulo) símbolo zoológico das delícias do amor, da promessa, da esperança. E também da despedida, da morte, do desespero.

As formas de acesso identificáveis permitem-nos descer à altura do passado, ao subterrâneo, ao tesouro da vida (Santo Agostinho). Nenhuma memória sobrevive impune. É necessária a sua reconstituição afectiva. Todas as mortes, todas as nossas sobrevivências, estão arredadas do quotidiano. É necessário esconjurá-las, mesmo que depois nunca mais nos larguem. A vida é habitada por estes vários revestimentos. Somos variadíssimas pessoas que ainda temos contacto residual com vidas passadas, habitualmente em sossego.

As memórias afetivas permitem esta compreensão de diversas vidas que temos e a dificuldade em acedermos ao modo como éramos sós ou com alguém, antes ou depois, nas diversas idades das vidas. A solidão configura a existência, crucifica-a. O outro despega-nos e desprega-nos como “iunx”, a ave condenada a vaguear uma existência sem fim, pregada às rodas de um carro, a rodar por todo o terreno, a toda a velocidade. A roda não é a da fortuna mas a da prisão onde Afrodite e Ares foram presos com cavilhas por um Hefesto ciumento.

Outrora (V), era o tempo das cerejeiras. Era o tempo que marca o fim do inverno e o princípio da primavera. Era o tempo da contemplação da transitoriedade que é metáfora viva da vida na sua crónica curta duração, símbolo do Samurai no Japão não apenas da guerra mas também da sensualidade do fruto da cerejeira. Aqui há “cerejeiras a avançar agressivas pela rapariga dentro”.

A sujidade luto das unhas, vestígio residual do outro, requer (VI): “corta-unhas”, “lâminas”, “eixos metálicos”, “dedos”. Mas também sobraram “peles”, “pensamentos”, “spleen”. O baço está cheio de bílis negra. E a melancolia actua como todos os grandes impérios: “ferindo e alastrando, sangrando”. (XIII): “Espelho e parede dão o mesmo a ver”. “Bebe de novo o tédio do lado rachado do corpo. E da boca da rapariga sai a palavra sangue.”

É com o cerco feito à cidadela que pode nascer uma outra possibilidade (VII): viver e fazer literatura fazer amor e escrever sobre o amor escrever e ser inscrito. Mas a possibilidade de oferecer resistência ao vazio de sentido, à partida do outro, à abominação da recusa, à amargura da interdição pode não existir. Talvez o da nossa usura da vida por mor da arte e não por mor da vida.

Porque só há outros para poder não haver outros. Só há encontros para poder haver desencontros. Só há promessa para poder haver despedida. E demora muito tempo a perceber que foi sempre esta a chave para a nossa compreensão do mundo. E sim (VIII) haverá “Silêncio, nenhuma voz, descanso ruminante de electrodomésticos, limpeza de quartos, porta, paredes, suite sem vista”, porque “A rapariga é a própria suite dentro da qual ela se encontra” (IX). A rapariga vê-se no seu interior como dentro de uma suite sem vista para a rua. Mas a rapariga poderá nunca ter saído de si. Quem quer ter a sua vida configurada pelo sentido da arte já deu a sua alma ao diabo ou tê-la-á vendido. Terá de compreender, e o mesmo quer dizer aceitar, que não há volta a dar. Foi para além do ponto, a partir de onde não há regresso: “Não te será permitido amar”. “O artista é irmão do louco e do criminoso.” (Thomas Mann).

A presença invisível àquele outro único que poderia ter olhos para ela e de cuja presença depende a sua existência não é já actual. Ter pertencido a alguém é reflexo da memória no espelho. Um reflexo do reflexo, inconsistente outrora. Mas agora já não existente. Já só tínhamos o reflexo do próprio que era o outro. Agora, existindo só como fantasma, temos o reflexo do reflexo. O outro insinuou-se e ficou inoculado no próprio. O próprio é um reflexo que age ou reage ao outro na sua ausência. É residual em si de qualquer coisa que ainda tempera e dá um gosto, melhor, um travo do que foi. Mas, agora, é só “o amargo de boca”.

Como sobrevive a rapariga “amputada de si, do outro que lhe dá prazer naquele sítio que como na alma acolhe o geodésico instante da loucura” (XI)?: “o olho do medo brilha e amplia o espaço onde não se pode estar// dentro das palavras é dentro das paredes da suite sem vista// cheiro insuportável da rapariga era o de quem escreve.” (XIV).

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