Filosofia e História: Interpretando a “Era Xi Jinping”

Por Jiang Shigong

Jiang Shigong (强世功, nascido em 1967) é professor da Universidade de Pequim e um dos quadros mais importantes do Partido Comunista Chinês (PCC) na área da filosofia, uma figura central no pensamento que defende um caminho de desenvolvimento distinto para a China, baseado nas suas próprias tradições e realidades, em contraponto com os modelos ocidentais. Uma leitura importante para compreender o modo como a filosofia clássica é integrada na via actualmente percorrida pela liderança chinesa e onde igualmente se referem as diferenças entre o “Ocidente metafísico” e a “China histórica”.

(continuação do número anterior)

O comunismo e o grande renascimento da nação chinesa

O segundo posicionamento da era Xi Jinping realizado no relatório ao 19.º Congresso do Partido é o seu posicionamento na história da civilização chinesa.

A civilização chinesa já alcançou as maiores conquistas da era agrícola da história da humanidade e, por meio das relações comerciais facilitadas pelas Rotas da Seda terrestres e marítimas, trocou e aprendeu com a civilização ocidental. Quando o Ocidente entrou no período sombrio da Idade Média, os europeus em busca de comércio com a Ásia descobriram acidentalmente o novo continente americano, o que deu origem à era do imperialismo europeu em todo o mundo. De acordo com a visão dos «estudiosos da Califórnia» dos Estados Unidos, antes do século XVIII, a China era, no mínimo, o centro da economia mundial. Na época, a cultura chinesa era invejada pelo Ocidente, e a prosperidade da China era uma força importante na criação da globalização. No entanto, desde 1840, a China moderna passou por humilhações e misérias. Desde o Movimento de Autofortalecimento, passando pelas Reformas de 1898 e pela Revolução de 1911, inúmeras almas corajosas buscaram continuamente o caminho para a renovação da nação, mas sem sucesso. Somente em 1921, com a fundação do PCC, a história do povo chinês passou por uma transformação fundamental.

Como partido político marxista, o ideal político mais elevado do PCC sempre foi a chegada do comunismo. Mas, na história real dos esforços para alcançar esse ideal mais elevado, surgiu dentro do partido, desde o início, uma luta entre duas linhas revolucionárias. Uma era «tomar a Rússia como nosso mestre» e, assim, posicionar a revolução chinesa no panorama global do movimento comunista internacional, copiando cegamente a linha revolucionária da Rússia Soviética. A outra linha estava enraizada no solo da China e posicionava a revolução chinesa na história moderna chinesa, com o objectivo de criar uma nova linha revolucionária baseada nas realidades chinesas. Durante a Guerra Antijaponesa, essa contradição tornou-se a questão de se priorizar a luta de classes ou a luta nacional. Após a reunião de Wayaobao 瓦窑堡 em dezembro de 1935, quando foi apresentada a teoria de que o PCC poderia conter «duas vanguardas», representando tanto as classes trabalhadoras como o povo chinês como um todo, a ideologia política do PCC evoluiu para a unidade orgânica do comunismo e do nacionalismo, o que deu início ao gradual desenrolar da sinificação do marxismo.

Após a fundação da Nova China, o PCC baseou-se na sua crença nos ideais do socialismo e do comunismo para arquitectar uma mobilização social abrangente, que libertou uma grande força política para estabelecer a base institucional da República Popular. Mas após a «Revolução Cultural», a China entrou numa crise de confiança sem precedentes. Diante disso, Deng Xiaoping usou a teoria do período inicial do socialismo para projectar o comunismo num futuro mais distante e também apresentou a “teoria do socialismo com características chinesas”. No entanto, como as pessoas em geral não tinham o apoio de uma crença espiritual genuína nessa teoria, os valores do capitalismo ocidental aproveitaram-se da situação e rapidamente passaram a dominar a sociedade, o que provocou uma tempestade política.

Foi neste contexto que Jiang Zemin 江泽民 (nascido em 1926), numa palestra na Universidade de Harvard em 1992, utilizou pela primeira vez o slogan relativo ao «grande renascimento da nação chinesa» 中华民族的伟大复兴 e, pouco depois, também propôs o conceito das «Três Representações». O primeiro consolida a força espiritual de todo o Partido e do povo de toda a nação por meio do nacionalismo, e o segundo permite que o PCC represente os interesses políticos das novas camadas sociais emergentes, evitando com sucesso a crise de representatividade que ocorreria se o Partido pudesse representar apenas os interesses dos trabalhadores e camponeses.

Mais tarde, Hu Jintao 胡锦涛 (nascido em 1942) deu um passo adiante ao oferecer sua noção de “construção avançada” 先进性建设 do Partido, de modo a evitar a situação em que o PCC perderia a confiança nos seus ideais e se tornaria um partido político de grupos de interesse cujo objectivo fosse a simples harmonização de vários interesses, evitando assim tornar-se um «Partido de todo o povo 全民党» como o da antiga União Soviética. Pode-se dizer que, no processo de desenvolvimento da teoria do socialismo com características chinesas, o lançamento do slogan «o grande renascimento da nação chinesa» foi uma mudança fundamental.

Do ponto de vista da história da civilização chinesa, o grande renascimento da nação chinesa significa que a China está a seguir o período Shang-Zhou, o período Qin-Han, o período Tang-Song e o período Ming-Qing, entrando no quinto período de renascimento geral. A brilhante imaginação política de milhares de anos de civilização chinesa preenche com sucesso o vazio espiritual deixado pelo enfraquecimento da visão comunista. Essa confiança política nacionalista tornou-se uma importante força espiritual que consolida todo o Partido e o povo de toda a nação; essa autoconfiança nacional e sentimento de orgulho são benéficos para a estabilidade política da China e impulsionaram a economia chinesa através de sua rápida ascensão. Após o 18.º Congresso do Partido, Xi Jinping deu um passo adiante e elevou o grande renascimento da nação chinesa ao nível do «Sonho Chinês» 中国梦, proporcionando ao povo chinês uma visão futura de uma vida ideal.

É claro que, se não tivermos a orientação dos ideais mais elevados e da fé do comunismo e confiarmos apenas no grande renascimento da nação chinesa, a China poderá muito bem perder o rumo. Do ponto de vista das relações internacionais, slogans nacionalistas simplistas podem facilmente provocar reacções nacionalistas e preocupações noutros países, especialmente nos países próximos da China. É por isso que a teoria ocidental da “ameaça chinesa” é tão atraente. Os ocidentais muitas vezes partem de sua própria experiência histórica como hegemonia e interpretam o grande renascimento da nação chinesa como uma restauração da soberania histórica da China no Leste Asiático, vendo assim a ascensão da China como um desafio à hegemonia ocidental. O “voltar para a Ásia” dos Estados Unidos e os seus ataques à China em questões relacionadas ao Mar da China Oriental e ao Mar da China Meridional usam isso como desculpa.

Os estudiosos ocidentais sempre vêem erroneamente a ascensão da China como uma repetição do desafio da Alemanha à hegemonia inglesa ou do desafio da União Soviética aos Estados Unidos, e começaram a prestar atenção ao que chamam de «armadilha de Tucídides». O que a «Uma Faixa, Uma Rota» propõe é um novo conceito e estrutura para «negociar, construir e partilhar em conjunto» com base na promoção do comércio livre global, que irá recriar a prosperidade e a estabilidade que o comércio entre o Oriente e o Ocidente durante a era da Rota da Seda produziu. Mas, na visão de mundo da hegemonia ocidental, as propostas da «Uma Faixa, Uma Rota» foram entendidas como uma estratégia política regional digna de Halford Mackinder e Alfred Thayer Mahan. Eles usam isso para semear a discórdia entre a China e os países envolvidos na «Uma Faixa, Uma Rota», na esperança de conter o desenvolvimento da China.

Da perspectiva da política interna da China, o grande renascimento da nação chinesa não está necessariamente em contradição com os sistemas democráticos liberais ocidentais. Os liberais chineses viram novas possibilidades políticas nisso, o que resultou em divisões dentro das fileiras liberais, nas quais um grupo começou a ajustar a sua estratégia, vendo a sua fetichização passada dos direitos individuais e dos mercados livres, e a sua consequente oposição à nação e ao povo, como uma espécie de imaturidade política. Este grupo apressou-se a abraçar a ascensão da nação como um sujeito político. Isto estimulou o desenvolvimento do «grupo do grande país» 大国派, que argumenta que só adoptando uma constituição democrática liberal é que podemos realmente levar a cabo o grande renascimento da nação chinesa. Para eles, as constituições inglesa e americana devem tornar-se o modelo para a ascensão da política chinesa, enquanto os fracassos da Alemanha e da antiga União Soviética servem como lições negativas para a ascensão da China.

Ao mesmo tempo, com o lançamento do slogan do grande renascimento da nação chinesa, também surgiu um grupo de conservadores culturais. Eles transformaram-se numa espécie de «grupo de renascimento da antiguidade» 复古派 e defendem a «confucionização do Partido», negando as conquistas históricas da revolução nacionalista liderada pelo PCC em termos de igualdade e chegando ao ponto de negar o Movimento Quatro de Maio e a Revolução Republicana. Nesse contexto, os resquícios do pensamento restauracionista feudal vieram à tona, unindo-se ao capital comercial e ao capital cultural, na esperança de que essas relações e interesses feudais penetrem no Partido. Pode-se dizer que essas duas correntes de pensamento político se uniram ao pensamento liberal sobre a chamada “reforma das instituições políticas” para apresentar um desafio à autoridade política da liderança do PCC no país e ao sistema político. Neste contexto, a renovada insistência de Xi Jinping nos ideais e crenças comunistas determinou os mais altos ideais e crenças e a direção final do desenvolvimento do grande renascimento da nação chinesa.

Tanto o utopismo como o comunismo são ideias que têm as suas origens na tradição civilizacional ocidental. Foi a concepção histórica cristã do tempo linear que mudou a visão clássica do tempo como cíclico. Isto não só plantou as sementes do pensamento utópico que imaginava um futuro belo, como também introduziu a noção do desenvolvimento do progresso social na teoria ocidental. Por esta razão, os estudiosos ocidentais acreditam que a teologia cristã da salvação e as visões do progresso histórico na teoria moderna fazem parte da mesma genealogia, e alguns atribuem a ascensão do comunismo ao gnosticismo cristão. É por isso que o marxismo pode ser interpretado como uma versão secular do determinismo.

Mas Marx enfatizou consistentemente que o «comunismo» deve ser transformado de utopismo em socialismo científico, o que significava que o comunismo tinha de ser realizado na vida real, tornando-se um estado concreto de vida sujeito a testes, no qual o «comunismo» se tornaria uma «sociedade comunista» num sentido verdadeiramente científico. Se dissermos que, na época de Marx, o socialismo ainda não havia sido construído, o que significa que o comunismo só poderia ser uma noção filosófica distante, então, depois que a Rússia Soviética e a China construíram países socialistas, o «cronograma» e o «projecto» para a realização da sociedade comunista tornaram-se mais acessíveis.

O comunismo enfrenta agora o desafio de ser transformado de um conceito filosófico numa «sociedade comunista» com instituições e estruturas concretas. Seja no caso da fantasia de Lenine de «poder soviético mais electrificação» ou da imaginação de Mao Zedong de comer da «panela comunitária» no período das Comunas Populares, os ideais, uma vez que descem ao mundo, perdem o seu brilho original. Foi precisamente a tensão interna entre o comunismo como conceito filosófico e a construção de uma sociedade comunista de maneira genuinamente científica que levou Mao Zedong a começar a questionar-se sobre questões filosóficas básicas, como se a sociedade comunista fosse uma contradição nos seus termos. É como a «busca do milénio» no cristianismo, em que o retorno de Deus à Terra só pode ser repetidamente adiado. Se realmente experimentássemos o julgamento de Deus aqui na Terra, o cristianismo também poderia perder parte do seu brilho.

O que devemos prestar especial atenção é ao facto de que, quando Xi Jinping enfatiza um retorno aos princípios comunistas, ele não está a falar da «sociedade comunista» que era parte integrante do socialismo científico, mas está a usar a ideia de que «aqueles que não esquecem sua intenção original 不忘初心 prevalecerão», extraída da cultura tradicional chinesa. Ao fazer isso, ele remove o comunismo do contexto social específico da tradição científica empírica ocidental e astutamente o transforma no Estudo do Coração da filosofia tradicional chinesa, o que, por sua vez, eleva o comunismo a uma espécie de fé ideal ou crença espiritual.

Por esta razão, o comunismo nunca mais será como era sob Mao Zedong — algo que deveria assumir uma forma social real no aqui e agora — mas é, em vez disso, o ideal e a fé mais elevados do Partido. Tornou-se parte da educação e do cultivo do Partido, o «Estudo do Coração» do PCC. O comunismo não é apenas uma sociedade concreta a ser realizada num futuro distante, mas também o ideal mais elevado que será absorvido pela prática política actual, um estado espiritual vibrante. O comunismo não é apenas uma bela vida futura, mas também, e mais importante, o estado espiritual dos membros do Partido Comunista na sua prática da vida política.

Desta forma, o comunismo funde-se com o processo histórico específico e a vida quotidiana como ideais e lutas. Precisamente no contexto da cultura tradicional chinesa, a compreensão deste ideal mais elevado já não é a de Marx, que pensava dentro da tradição teórica ocidental; já não está no Jardim do Éden da humanidade, «não alienado» pela divisão do trabalho dentro da sociedade. Em vez disso, está intimamente ligado ao ideal de «Grande Unidade sob o Céu» 天下大同 da tradição cultural chinesa. A última secção do relatório ao 19.º Congresso do Partido começa com a frase «quando a Via prevalece, o mundo é partilhado por todos» 大道之行,天下为公, um ideal supremo que encoraja todo o Partido e o povo de toda a nação. E no conteúdo específico do relatório também encontramos a passagem, desenvolvida com base na noção de “Grande Unidade sob o Céu” da tradição chinesa, no sentido de que “os jovens terão educação, os estudantes terão professores, os trabalhadores terão remuneração, os doentes terão médicos, os idosos terão cuidados, aqueles que procuram habitação terão habitação, os fracos terão apoio”.

Por esta razão, voltando ao tema de «não esquecer as intenções originais», no seu discurso de 2016 comemorativo do 95.º aniversário do PCC, Xi Jinping utilizou o termo «intenções originais» para se referir aos grandes ideais do comunismo e, no relatório ao 19.º Congresso do Partido, referiu-se a «procurar a felicidade do povo chinês, procurar o renascimento da nação chinesa». A diferença entre os dois é que, para todo o Partido, o «discurso de 1 de julho», que celebra a fundação do Partido Comunista Chinês, é uma reflexão intelectual altamente filosófica e um baptismo espiritual, razão pela qual ele prestou ainda mais atenção aos mais elevados ideais do comunismo e os transformou no «Estudo do Coração» para os membros do PCC.

Em contrapartida, o relatório ao 19.º Congresso do Partido está mais preocupado com todo o Partido, com a sua missão nesta fase da história e com estratégias concretas de governação, e, por isso, ele dá mais atenção ao grande renascimento da nação chinesa, uma crença e um objectivo mais prementes, em que o comunismo ocupa o seu lugar no trabalho concreto de construção do Partido como um valor socialista fundamental. Podemos dizer que a nova leitura de Xi Jinping dos conceitos comunistas é um modelo da sinificação do marxismo na nova era, na qual o marxismo não deve apenas ser integrado à situação actual da China, mas também absorvido pela cultura chinesa. Por esta razão, a mais elevada busca espiritual do comunismo e a realização do grande renascimento da nação chinesa são mutuamente complementares e, juntas, tornaram-se os pilares espirituais através dos quais Xi Jinping consolidou todo o Partido e os povos de toda a nação.

É precisamente por causa de sua fé nos ideais do comunismo que o grande renascimento da nação chinesa não pode, de forma alguma, retornar ao passado da China, mas deve, em vez disso, «renovar um país antigo». O grande renascimento da nação chinesa deve estar intimamente ligado à construção do socialismo com características chinesas. Se dissermos que, durante a era de Deng Xiaoping, a ênfase no slogan «socialismo com características chinesas» estava nas «características chinesas», então, na era de Xi Jinping, a ênfase está no «socialismo», usando os princípios políticos básicos do socialismo para corrigir tanto as interpretações liberais quanto as conservadoras do grande renascimento da nação chinesa. E isso significa que o socialismo com características chinesas deve assumir novamente uma posição dentro do movimento comunista mundial.

(continua)

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