Com Características Chinesas – A Política Poética do Terceiro Timoneiro

9.1.2023

Desde as eras mais recuadas dos tempos imperiais chineses que não chegava ao poder apenas aquele que estudasse para passar nos exames imperiais , mas quem se deixasse inspirar respondendo às questões colocadas com ética e com poesia. Como bem chama a atenção Abílio Basto em Os Exames Imperiais na China, só quem possuísse grau literário acedia ao funcionalismo público.

Este amor ao estudo, inculcado formalmente desde os tempos do imperador Tai Zong (唐太宗,600. a. C.) seria tanto mais apreciado, quanto fosse expresso com criatividade poética, ou seja, com graciosidade, beleza e ritmo , pelo que os meninos das famílias privilegiadas tinham o seu preceptor que lhes ensinava também a partir dos 13 anos música e poesia, donde no futuro, poderiam retirar as mais belas deixas poéticas e lemas governativos. Declara Abílio Basto “O principal objetivo da educação, entre os antigos, não era tanto encher o cérebro de conhecimentos, senão formar o carácter e purificar o sentimento.” (1998: 17).

Como os exames imperiais tinham um pendor fortemente teórico-estético foram abolidos já nos últimos anos do Governo Manchu por lhes faltar a componente cientifico-tecnológica tão necessária aos tempos contemporâneos. No entanto, em boa verdade, acentuavam uma outra dimensão poética que nunca se perdeu ao longo da história da China, chegando ao tempo do terceiro timoneiro, Xi Jinping (习近平), onde verificamos uma aliança indissolúvel entre política, ética e poesia, esta última, hoje em dia, muito utilizada para efeitos comunicativos via Media.

No entanto, a valorização da criatividade poética e o reconhecimento das suas potencialidades ideológicas nunca deixou de ser exercitada ao longo da história chinesa. Não se julgue ser por acaso que os timoneiros da era revolucionária como o Grande Timoneiro Mao Zedong (毛泽东大舵) e o terceiro timoneiro Xi Jinping fazem poesia.

Na poesia revolucionária de Mao Zedong, podemos encontrar as principais mensagens da nova ideologia, transmitidas de uma forma tão estética quanto o serviço da arte a uma causa o permite. Veja-se este louvor ao novíssimo estatuto da mulher vermelha, que deixa para trás os ideais de dona de casa bem-educada da era republicana, o que nos é explicado através de um poema de estrutura clássica de quatro versos, o jueju
(绝句juéjù), usado na tradição muitas vezes para cantar a mulher, aqui apresentado na tradução do escritor e diplomata Ricardo Primo Portugal:

“As milicianas (inscrição para uma fotografia)
Fuzis ao ombro, resolutas e galhardas,
sob o esplendor da aurora ao campo de exercícios,
filhas da China têm aspirações distintas:
desprezam sedas, prezam roupas de combate.”

(https://vermelho.org.br/2015/07/03/mao-tse-tung-o-poeta/)

Alguns poemas de Xi Jinping surgem em jornais, como por exemplo, “Em Memória de Jiao Yulu”, publicado no jornal de Fuzhou a 15 de julho de 1990, quando era Secretário do Partido Comunista Chinês em Fuzhou. Já aí se notava a linha de acção que o havia de nortear até à presidência chinesa, a defesa do serviço integral aos mais pobres e o combate sem tréguas à pobreza, que exalta na lembrança do exemplo de um outro secretário do PCC ligado ao distrito de Lankao, como se pode verificar tanto no poema como na minha tradução:

习近平:念奴娇 追思焦裕禄
Xi Jinping: “Em Memória de Jiao Yulu”.

魂飞万里,
盼归来,
此水此山此地。
百姓谁不爱好官?
把泪焦桐成雨。

生也沙丘,
死也沙丘,
父老生死系。
暮雪朝霜,
毋改英雄意气!

依然月明如昔,
思君夜夜,
肝胆长如洗。
路漫漫其修远矣,
两袖清风来去。
为官一任,
造福一方,
遂了平生意。
绿我涓滴,
会它千顷澄碧。

一九九〇·七·十五

(Xi, 1990, 河南日报, 2014, Apud, cpc.people.com.cn. )

A tua alma voou para longe
Os rios, as montanhas e a terra
anseiam pelo teu regresso.
O povo amava-te e chora-te
Junto às árvores fénix que lhe deixaste.

Viveste e morreste pelo deserto,
Por melhor condição para a população.
De geração em geração,
Contra ventos e tempestades,
O teu rasgo heroico perdura!

A lua brilhará pura,
A iluminar em mim
A tua corajosa memória.
A ecoar pela história,
Servimos ambos incansáveis
O mesmo povo
Em nome da felicidade
E do benefício novo.
Gota a gota fomos construindo
A fonte que transforma
O árido em verde monte.

Xi Jinping estreia-se na governança da China com nova filosofia política, mas mantendo a continuidade no recurso à sabedoria ancestral chinesa através do pensamento proverbial e poético, na sequência de Mao, para valorizar a dimensão prática muito cantada e enaltecida tanto nos tempos revolucionários chineses como nos mais reformistas, por exemplo, na vertente científico tecnológica como mencionava Carlos Morais José em “Como Chegou a China à ‘Nova Era’”, num artigo publicado a 28 de Outubro de 2022, neste jornal, para balanço do 20º Congresso do Partido Comunista Chinês.

O terceiro timoneiro assumiu o mandato de olhos postos em lemas poéticos, a saber, numa “Nova Era” de prosperidade para concretizar o “Sonho Chinês”, mas sem retirar os pés da terra e da água, de modo a que o sonho não se perdesse em “castelos nas nuvens”. Havia então, como poeticamente soube explicar, que “atravessar o rio sentindo as pedras” (摸着石头过河mōzhe shítou guò hé), o que significa: “Atravessar o rio sentindo as pedras é um método reformista tipicamente chinês, em consonância com a sabedoria e o espírito chineses.”(摸着石头过河,是富有中国特色、中国智慧、符合中国国情的改革方法) ( Portuguese.china.org.cn, 2014)

Resumindo, na esteira do que havia sido proposto na história proverbial muito repetida por Mao Zedong, nunca esquecer de remover a montanha pazada a pazada, tal como o “Velho Louco que Removeu Montanhas” (愚公移山 Yúgōng-yí shān) , ou na versão muito mais suave do terceiro timoneiro, sentir cada pedra do rio para que a reforma seja bem-sucedida e não fracasse por falta de prática ou de experimentalismo.

No Socialismo com características chinesas (中国特色社会主义, Zhōngguó tèsè shèhuì zhǔyi ), inaugurado na era do Pequeno Timoneiro, Deng Xiaoping (邓小平), e prosseguido por Xi Jinping, na versão de sonho chinês para a nova era, é recuperada a mundividência tradicionalista chinesa num neotradicionalismo muito enaltecido não apenas em termos das virtudes éticas do governante, que deverá cultivar as cinco virtudes constantes (五常 wǔ cháng) com a benevolência (仁 rén) em lugar de destaque, mas também as “três perfeições” artísticas da China antiga prolongadas no tempo: a caligrafia, a pintura e a poesia, esta última surge, à maneira tradicional, em forte aliança com todo o programa nacionalista adoptado pela liderança xiista. Assim, lemos em Jorge Tavares da Silva, na obra Xi Jinping- A ascensão do novo timoneiro da China: O homem, a política e o mundo, que no quadro das 4 modernizações (四个现代化,xìgé xiàndàihuà), o novo espírito científico-tecnológico, no qual se enquadram tanto as conquistas espaciais como o espírito digital, é poeticamente louvado em 2015 numa canção preparada pela Administração do Ciberespaço da China (CAC Cyberspace Administration of China) nos seguintes termos (Silva, 2021: 212):

“网络强国 网在哪光荣梦想在哪
(Superpotência da Internet! A rede é onde está o sonho glorioso)
网络强国 从遥远的宇宙到思念的家
(Superpotência da Internet! Do cosmos distante ao lar que ansiamos)
网络强国 告诉世界中国梦在崛起大中华
(Superpotência da Internet! Diz ao mundo que o Sonho Chinês (Chinese Dream) está a levantar a grande China)
网络强国 一个我在世界代表着国家
(Superpotência da Internet! Cada um de nós representa o nosso país no mundo) ”

Assim se canta politicamente o nacionalismo da linha xiista, onde o sonho se torna realidade através dos avanços científico-tecnológicos concretizados pela nação chinesa.

Concluindo, a política com características chinesas não se resume a uma assimilação e digestão de outros sistemas políticos por parte das gentes do País do Meio, ainda que também o seja, como bem viu Xulio Rios no Prefácio à supracitada obra de Jorge Tavares da Silva, quando declara que “as ‘singularidades chinesas’, antes e depois da Revolução, defendem a sinização de qualquer doutrina que possa inspirar mutações económicas e sociais, começando pelo marxismo.” (Silva, 2021:19). Há ainda, a registar, acrescento, que esta “sinização” se apresenta com características muito próprias, eivadas de um pensamento poético fortemente metafórico, repleto de imagens, susceptíveis de se tornarem motes políticos, retiradas à paisagem, incluindo todos os seres naturais, dos rios às montanhas e aos céus, das moscas aos tigres, ou dos ratos aos gatos e aos dragões, ilustrando na perfeição o cruzamento da tradição naturalista chinesa com o ecossocialismo filosófico proposto pelo presidente Xi Jinping.

 

Referências Bibliográficas

Alves, Ana Cristina. 2021. Cultura Chinesa, Uma Perspetiva Ocidental. Coordenação de Carmen Amado Mendes. Coimbra: Almedina e Centro Científico e Cultural de Macau.
Basto, Abílio. 1998. Os Exames Imperiais na China. Organização, Prefácio e Notas de António Aresta. Macau: Fundação Macau.
José Morais, Carlos. 2022. “Como chegou a China à ‘Nova Era’”. www.hojemacau.com.mo 28.10.2022 sexta-feira Disponível em: https://hojemacau.com.mo/wp-content/uploads/2022/10/HM-28-10-22.pdf
Portuguese.china.org.cn (Ed.) 2014. “Atravessar o rio sentindo as pedras (Aprofundar a reforma em todos os aspectos)”. Conhecer a China Através de Palavras-Chave. Disponível em: http://portuguese.china.org.cn/china_key_words/2014-11/18/content_38618330.htm., acedido a 7 de janeiro de 2023.
Silva Tavares da, Jorge. 2021. Xi Jinping – A ascensão do novo timoneiro da China: o homem, a política e o mundo. Faro: Sílabas & Desafios.
Xi Jinping. 1990. 《念奴娇·追思焦裕禄》. cpc.people.com.cn. Disponível em: http://cpc.people.com.cn/n/2014/0318/c64094-24663299.html, acedido a 8 de janeiro de 2023.
Vermelho, a Esquerda bem informada (Ed,)2015.Mao Tsé-Tung, o Poeta. Vermelho. Org.br. Disponível em: https://vermelho.org.br/2015/07/03/mao-tse-tung-o-poeta/, acedido a 8 de janeiro de 2023.

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