Via do MeioDa China e dos Chineses – 2 António Graça de Abreu - 24 Jan 2025 (continuação do número anterior) Goethe, que sempre foi um apaixonado pela civilização chinesa, glosou o antigo princípio de Sócrates, o grego, o “quanto mais sei, mais sei que nada sei” e escreveu “O homem só sabe quando sabe que pouco sabe. Com o conhecimento cresce a dúvida”. E Confúcio 孔夫子, que também muito sabia das coisas da vida e do seu povo, disse, seis séculos antes de Cristo: “Se conheces, actua como homem que conhece. Se não conheces, reconhece que não conheces; isso é conhecer!” São sábios os velhos Chineses, uma sabedoria alicerçada em cinco mil anos de História e de histórias. São inteligentes os velhos Chineses, uma inteligência adquirida ao longo de muitos e muitos séculos dura e intensamente vividos. Lao Zi, 老子 (600 a. C. ? – 510 a.C, ?) o patriarca do taoismo filosófico, escrevia no capítulo 2 do seu Tao Te Ching: Debaixo do Céu,[1] todos vemos que o belo é belo porque o feio existe. Todos sabemos que o bom é bom porque o mau existe. Coexistem o ser e o não-ser, completam-se o difícil e o fácil, aproximam-se o alto e o baixo, harmonizam-se a voz e o som, sucedem-se o da frente e o de trás. Por isso, o sábio avança e nada faz,[2] ensina sem nada dizer e os dez mil seres desenvolvem-se, sem cessar. Ele trabalha e nada possui, ele cria e de nada se apropria. Tudo feito, tudo esquece, assim, para sempre, a obra permanece.[3] O espantoso Lie Zi 列子 (450 a.C.-376 a. C.) que, segundo a tradição taoista era capaz de cavalgar ventos e nuvens, diz, no seu Livro, cap. II, 11: “Dois meninos viviam junto ao mar e amavam as gaivotas. Todas as manhãs brincavam no meio dos pássaros e muitas outras gaivotas, às centenas, poisavam junto deles. Um dia o pai disse-lhes: ‘Sei que brincam com as gaivotas. Apanhem algumas e tragam-mas. Também me quero divertir.’ No dia seguinte, os meninos chegaram à orla do mar, as gaivotas pairaram no ar e não pousaram na praia. Em conclusão, o melhor de todos os discursos é o que não utiliza palavras, a actuação perfeita é actuar sem agir, a sabedoria do mais sábio dos sábios é sempre pouco profunda ” Outra história do Livro de Lie Zi, no capítulo VII, 32: “Um camponês não sabia onde estava o seu machado. Suspeitou então que o filho do vizinho lho havia roubado e começou a observar o rapaz, com atenção. Tinha exactamente os modos de um ladrão de machados, as palavras que pronunciava soavam a ladrão de machados, todo o seu comportamento e atitudes eram as de alguém que tinha roubado um machado. Mas, de repente, ao cavar a terra, o camponês encontrou o seu machado. No dia seguinte, o homem olhou de novo para o filho do vizinho. Reparou então que os modos, as palavras, o comportamento e as atitudes do rapaz não eram, de modo algum, as de um ladrão de machados.” A sabedoria chinesa tem, quase sempre, escapado à inteligência ocidental. Ocidente e Oriente dificilmente se interpenetram, olham-se ora com sobranceria, ora com desconfiança, e sobretudo ignoram-se. Vou citar um curioso exemplo recente: Em 1970, no seu “Testamento Final”, o russo Nikita Kruchtchev escrevia, a propósito de Mao Zedong: “Eu nunca tinha a certeza de entender o que ele queria dizer. Pensava, nessa altura, que isso se relacionava com certos aspectos da mentalidade chinesa e com a maneira de pensar dos Chineses. Algumas declarações de Mao chocavam-me pela sua simplicidade, outras pela sua complexidade. Nunca soube com segurança qual a posição de Mao. É impossível, com os Chineses, saber em que lei se vive.” É verdade que pensamento russo e pensamento chinês não se entendem, desde sempre. O conflito sino-soviético, iniciado em finais dos anos cinquenta, foi, para além das divergências políticas, um confronto de culturas e, por estranho que pareça em dois países comunistas, um conflito entre diversas, diferenciadas concepções do mundo. Há uns bons anos atrás, em Pequim, o meu amigo Li Shunbao, companheiro de trabalho nas Edições de Pequim em Línguas Estrangeiras, contou-me um pequeno diálogo que terá sido travado, em 1961, entre exactamente Kruchtchev e Zhou Enlai, então primeiro-ministro da China. As relações entre os dois países eram já bastante más e, depois de uma discussão azeda sobre questões de natureza política, Kruchtchev resolveu ser “simpático” para Zhou Enlai e disse-lhe: “Apesar das divergências, nós temos muita coisa em comum. Acreditamos ambos no marxismo, você é primeiro-ministro, eu também, e você e eu somos responsáveis pelo Governo de duas das maiores nações do mundo. Mas existe uma grande diferença entre nós, eu sou filho de camponeses e você é filho de mandarins.” Zhou Enlai, que, de facto, não era filho mas neto de um mandarim, sorriu e respondeu: “Desculpe, isso não é uma diferença, é mais uma semelhança. Significa que somos ambos traidores.” “Traidores?!…Como?…”, perguntou Kruchtchev. “Bem, ambos traidores porque o senhor traiu os camponeses e eu traí os mandarins.” A propósito de política e de políticos, o filósofo Han Feizi 韓非子escreveu 240 anos antes do nascimento de Cristo: “Podeis esperar, em geral, encontrar cerca de dez homens honestos em cada reino, o que é uma média excelente. Mas o Estado deve contar uma centena de cargos. Daí resultar que tendes mais postos oficiais do que homens de bem para ocupá-los, o que dá dez homens honestos e noventa patifes para preencher todos esses lugares. Pode-se, portanto, apostar que o resultado será a desordem generalizada, mais do que um governo organizado. Eis porque o soberano sensato acredita num sistema e não nas capacidades individuais, tem fé num método e desconfia da probidade pessoal.” Han Feizi foi o maior teórico da escola Fa Jia 法 家, conhecida no Ocidente como o Legismo. Morreria envenenado numa prisão, talvez por ter esquecido uma das exemplares citações de Confúcio “o homem honesto diz a verdade, o tolo diz a verdade toda.” De qualquer modo, os seus princípios exerceriam grande influência na China moderna e no próprio Mao Zedong. Zhuang Zi庄 子(369-286 A. C.), o maior dos pensadores taoistas, um dos grandes poetas da liberdade, conta-nos esta história: “Estava Zhuang Zi pescando na margem do rio quando chegaram junto dele dois mandarins enviados pelo príncipe de Zhou. — O nosso príncipe deseja ver-vos e nomear-vos primeiro-ministro de reino de Zhou. Zhuang Zi continuou a pescar e, sem voltar a cabeça, respondeu: — Ouvi dizer que no reino de Zhou existe uma tartaruga sagrada que foi morta há muitos, muitos anos. O príncipe conserva essa tartaruga fechada no templo dos antepassados e venera a sua carapaça. Ora a tartaruga preferiria estar morta e ter os seus restos venerados, ou preferiria estar viva, abanando o rabo na lama dos pântanos? — Preferiria estar viva, abanando o rabo na lama dos pântanos, responderam os mandarins. — Podem ir embora, disse Zhuang Zi. Eu também prefiro abanar o rabo na lama dos pântanos.” Na China, mais do que em qualquer outro país do mundo, vemos como se manifesta, século após século, a continuidade de ideias, tradições, usos e costumes. Mao Zedong, que conhecia bem o alicerce cultural da sua pátria, citava por vezes os velhos filósofos e as histórias da tradição popular, em proveito da ideologia que defendia. Eis como, em 1945, Mao fala de uma dessas histórias: “Na China Antiga havia uma fábula intitulada ‘Como Yukong removeu as Montanhas’. Essa fábula conta que, em tempos que já lá vão, vivia no norte da China um velho chamado Yukong. Do lado sul, em frente da sua casa, encontravam-se duas grandes montanhas, Taihang e Wangwu, que lhe impediam a passagem. Dirigindo os seus filhos, Yukong decidiu arrasar as montanhas a golpes de picareta. Vendo-os em tal trabalho, um outro velho chamado Chezou, desatou a rir e disse-lhes: ‘Que tolice! Sozinhos, vocês nunca conseguirão arrasar essas duas montanhas’. Yukong respondeu: ‘Quando eu morrer ficarão os meus filhos; quando, por sua vez, eles morrerem, ficarão os meus netos, e assim se sucederão ininterruptamente as gerações. Quanto a essas duas montanhas, por muito altas que sejam, já não podem crescer mais e, a cada golpe de picareta, vão-se tornando mais pequenas. Porque razão não poderemos arrasá-las?’ E Yukong continuou, inabalável, a cortar a pedra, dia após dia, o que comoveu o deus do céu que enviou dois anjos à Terra que carregaram e levaram as duas montanhas. Hoje há também duas montanhas que pesam sobre o povo chinês: o imperialismo e o feudalismo. Desde há muito que o Partido Comunista da China decidiu arrasá-las. Nós devemos ser perseverantes e trabalhar sem descanso, pois também podemos comover o deus do céu. Para nós, o deus do céu não é outro senão a massa do povo chinês.” Uma das características do pensamento chinês é a unidade dos contrários, a complementaridade e permanente transformação dos opostos, o movimento e a dialéctica, o anular das contradições e o imediato aparecimento de renovadas contradições sempre insolúveis porque, ao serem solucionadas, dão origem a outras novas contradições. Nos anos vinte do século XX, o filósofo Chen Lifu 陳立夫 escrevia coisas como estas: “Como os homens não se parecem, as suas analogias caracterizam-se por sete períodos. No primeiro, o forte tolera o fraco; no segundo, o forte despreza o fraco; no terceiro, o forte escraviza o fraco; no quarto, o forte tem piedade do fraco; no quinto, o forte torna-se fraco; no sexto, o fraco protege o forte; no sétimo, o fraco e o forte confundem-se. ” Regressando a Zhuang Zi e ao seu edifício da sabedoria taoista, velho de vinte e três séculos, lemos: “O universo com tal não é expressão do absoluto. Tudo muda, ao longo dos tempos, no decurso da evolução, de acordo com o que começa e o que acaba. A ciência ensina que as coisas mudam de aspecto e que o absoluto se transforma em relativo. Por isso, esbate-se a distância entre grande e pequeno, entre o que vem antes e o que vem depois numa cadeia que não tem fim”. E mais adiante, no seu Livro de Zhuang Zi, o mestre diz: “Aqueles que afirmam existir o correcto e o justo sem o seu correlativo, o incorrecto e o injusto, ou o bom governo sem o seu correlativo, o mau governo, não compreendem os grandes princípios do universo nem a essência de toda a criação. Como se pode falar da existência do Céu sem se referir a existência da Terra, ou do princípio negativo sem se referir o princípio positivo? No entanto, ainda há pessoas que continuam estas intermináveis discussões. Essas pessoas ou são loucas ou são ingénuas. ” O aparente estatismo das civilizações orientais tem muito a ver com o carácter cíclico do seu pensamento. Também com a sua sabedoria, bem diferente da nossa ocidental, tão ligada à velha lógica grega e ao aparente dinamismo judaico-cristão. Eis mais uma antiquíssima história do taoismo chinês, agora retirada do Huainanzi 淮南子, um clássico da filosofia chinesa que data do século II a.C.: “Um velho e pobre camponês possuía um cavalo e o animal fugiu. À noite, os vizinhos vieram manifestar o seu pesar, dizendo-lhe que ele tivera muito pouca sorte. O camponês respondeu simplesmente: ‘Talvez’. No dia seguinte, o cavalo regressou acompanhado de seis éguas selvagens. A noite, os vizinhos vieram felicitar o camponês, dizendo-lhe que afinal ele tivera muita sorte. O homem respondeu simplesmente: ‘Talvez’. No dia seguinte, o filho do camponês montou uma das éguas selvagens, mas caiu e partiu uma perna. À noite, os vizinhos vieram lamentar a pouca sorte do camponês que respondeu simplesmente: ‘Talvez’. No dia seguinte, chegaram à aldeia os funcionários do governo responsáveis pelo recrutamento de jovens para o exército, encontrando-se o império em tempo de guerra. O filho do camponês não seguiu para os campos de batalha porque tinha uma perna partida. À noite, os vizinhos vieram felicitá-lo uma vez mais pela sua boa sorte e o velho respondeu simplesmente: ‘Talvez.’ Agora um velho apólogo, de Pe Yu king, que ninguém sabe quem é mas que terá sido escrito há catorze séculos: “Uma vez viajavam juntos um monge, um bandido, um pintor, um avarento e um sábio. Caiu a noite e albergaram-se numa gruta. — Não se encontraria melhor lugar para um eremitério, exclamou o monge. — Que óptimo refúgio para salteadores, disse o bandido. — A luz dos archotes, estes jogos de sombras, que extraordinários motivos para o pincel!, murmurou por sua vez o pintor. — Mas que local excelente para se esconder um tesouro!, observou o avarento. O sábio escutou em silêncio e, por fim, disse: — Que gruta maravilhosa!”. Na China nunca nada é exactamente o que parece. Pode ser, pode não ser, tudo depende de subtis ou canhestros entendimentos de cada pessoa, da perspectiva, do olhar. No século XVI, em plena dinastia Ming, o letrado Yuan Jing袁 晶 contava a interessante história de um gato. Assim: Um mandarim da corte, de nome Ji, possuía um gato magnífico. Tinha tanto orgulho no felino que resolveu chamar-lhe Tigre. Um dia, num serão em sua casa com vários amigos, todos começaram a falar sobre o gato. Um deles disse: –É verdade que o Tigre é um animal poderoso, mas o Dragão tem ainda mais poder. Porque não chamar Dragão ao gato? Um outro interveio: –Admito que o Dragão é mais poderoso do que o Tigre, mas ele tem de se elevar nos ares para atingir as nuvens. Parece-me pois evidente que as nuvens são mais fortes do que o dragão. Porque não chamar Nuvem ao gato? Um terceiro disse então: –As nuvens podem cobrir toda a terra, mas não resistem ao vento que as dispersa rapidamente. Porque não chamar Vento ao gato? Um quarto conviva acrescentou: — O que pode o vento diante de um muro de pedra. Porque não chamar Muro ao gato? Um quinto amigo argumentou depois: — Um muro é capaz de resistir ao vento, mas os ratos sabem como esburacar um muro. Porque não chamar Rato ao gato? Um velho da aldeia de Dongli ouviu toda a conversa em silêncio. Por fim, perguntou: — Como se chama o animal que caça ratos? O nosso João de Barros (1496-1570), excelente cronista quinhentista, na sua Ásia, Terceira Década, onde entram mais de cem páginas que dedicou à China e ao mundo chinês, escreveu por volta de 1550: “Os chins dizem que êles têm dois olhos de entendimento àcerca de tôdalas as cousas, nós, os da Europa, depois de nos comunicarem, têmos um olho, e tôdalas as outras nações são cegas.” Referências: [1] 天下 tian xia significa “debaixo do céu”, mas traduz-se normalmente pelo mundo em que vivemos. [2] 无为 wu wei é um conceito fundamental do taoismo. Significa “ausência de acção” mas não é inacção, corresponde a actuar não agindo. O sábio parece não produzir, não laborar. Nada faz, no entanto nada fica por fazer. O wu wei é difícil de entender para as nossas mentes ocidentais. [3] Tao Te Ching, (trad. António Graça de Abreu), Lisboa, Vega Ed., 2013, pag.31.