Macau Visto de Hong Kong VozesOutro tipo de feridas David Chan - 10 Dez 2025 O fogo de Hung Fuk Court em Tai Po, Hong Kong, continua na ordem do dia quase dez dias depois de ter deflagrado. No momento em que escrevo este artigo, registavam-se 159 vítimas mortais e 79 feridos, continuando desaparecidas 31 pessoas. Antes de continuarmos, lamentemos mais uma vez estas mortes e esperemos que os feridos tenham uma rápida recuperação. Os dados do Governo de Hong Kong indicam que 79 pessoas ficaram feridas no incêndio. No entanto, na realidade, pode existir outro tipo de feridos que não estão hospitalizados, mas que se encontram entre nós. Merecem da mesma forma a nossa preocupação e o nosso cuidado. Recentemente, circulou uma história online sobre uma mulher que tinha escutado a conversa de um dos bombeiros que combateram o fogo no Hung Fuk Court. O bombeiro era muito novo e falava informalmente, mas a sua descrição do incêndio era aterradora. Disse que tiveram de correr desde o rés-do-chão até ao 22º andar em 10 minutos, transportando feridos ao longo de seis andares o que exigia uma excelente forma física. Enquanto isto, viu cadáveres a arder e pessoas que perderam pernas e braços. Recordando os esforços de resgate, contou como usou um pé-de-cabra para abrir portas, para salvar as pessoas que se encontravam encarceradas. No entanto, era impossível abrir algumas portas com um pé-de-cabra. Numa corrida contra o tempo e contra a fúria do fogo, teve de desistir de tentar abrir essas portas e passar para as seguintes, lutando para salvar os sobreviventes. Não tinha tempo para pensar se haveria sobreviventes por trás das portas que não se conseguiam abrir. Tinha ainda menos tempo para pensar nas consequências que sofreriam esses sobreviventes. Todas estas situações provocaram neste jovem bombeiro um enorme sentimento de pena e também de culpa. Um profissional de saúde mental realçou que as equipas de resgate enfrentam frequentemente uma enorme pressão. Se se culparem por não terem conseguido acudir aos sobreviventes, podem vir a desenvolver um Transtorno de Stress Pós-Traumático (PTSD sigla em inglês). Podem vir a sentir medos intensos, impotência e terror. Quem trabalha em equipas de resgate pode vir a ter memórias ou sonhos recorrentes muito angustiantes, ou experienciar um intenso sofrimento psicológico ou físico desencadeado por situações semelhantes. Embora a angústia que experimentaram durante o salvamento dos feridos não seja imediatamente aparente, virá aos poucos ao de cima depois das operações estarem terminadas. Sem uma intervenção adequada, tornar-se-ão noutro tipo de vítimas do incêndio de Hung Fook Court. O Governo de Hong Kong disponibiliza um forte apoio psicológico às equipas de resgate para aliviar a pressão a que são submetidas. Contudo, para reduzir ainda mais esta pressão psicológica, é necessário melhorar a sua superação mental e despertar a consciência do público para as dificuldades das operações de resgate. Para fortalecer a firmeza mental das equipas de resgate é necessário, em primeiro lugar, que compreendam que o seu trabalho os confronta com desastres e com a morte. Estes infortúnios e a pressão a que estão sujeitos, não resulta das suas opções pessoais e não acontece porque tenham feito algo de errado. As suas vidas não implicam que tenham necessariamente de enfrentar o infortúnio e a morte. Por conseguinte, depois do trabalho não as podem levar para casa. Só assim podem evitar ficar sobrecarregados com a pressão. Têm ainda de compreender que só conseguindo libertar-se dos traumas que experienciaram se podem salvaguardar e partilhar com os seus entes queridos uma vida familiar normal. Levar para casa as desgraças e a pressão não só os vai afectar a eles como também irá afectar indevidamente os seus familiares, gerando em última análise mais tragédia e transformando os socorristas em vítimas. Em segundo lugar, existem inúmeros trabalhos, mas nenhum é mais significativo do que o daqueles que salvam vidas. Resgatar do perigo as vítimas de desastres, permitindo que continuem vivas e ilesas, não implica apenas salvá-las da morte; iimplica também garantir que regressam a casa, para os seus entes queridos, salvando assim toda a família. Os socorristas conquistam o amor e o respeito das vítimas, das suas famílias e de toda a comunidade — um reconhecimento que transcende os valores monetários. Um exemplo perfeito, como se viu nas notícias, é o de uma mulher de meia-idade, na casa dos cinquenta anos, que, depois de receber um telefonema do marido a informá-la do incêndio, abandonou de imediato o edifício. No entanto, sem hesitar, voltou atrás e bateu à porta do vizinho, para o avisar que era necessário fugir. O vizinho, deu-lhe ouvidos, fugiu e sobreviveu, enquanto a mulher acabou por morrer nas chamas. A última mensagem que enviou ao filho foi, “Hoje o jantar fica pronto um bocadinho mais tarde.” Quem haveria de pensar que esta seria a última mensagem que enviava ao filho? Numa entrevista, o marido disse que compreendia e aceitava as acções da esposa porque sabia que ela tinha agido correctamente. Porque é que esta mulher agiu correctamente? Porque é que o altruísmo é uma coisa boa? A resposta é muito simples. Desde que a pessoa albergue no coração amor e integridade e faça o seu melhor para ajudar os outros, estes irão sentir conforto e humanidade. Se os que foram ajudados retribuírem na mesma moeda, então a sociedade ficará repleta de amor e deixará de haver conflitos. Pode estabelecer-se uma sociedade pacífica e carinhosa onde as pessoas se apoiam entre si. O amor manifestado pelo bombeiro e pela mulher de meia-idade é precisamente o amor que deriva do altruísmo. Expressemos este sentimento com uma deixa clássica de um filme de Hong Kong dos anos 90 “Ele não me pesa, é o meu pai” (新難兄難弟) “Todos por mim e eu por todos.” Só quando os socorristas compreenderem este princípio podem entender o significado profundo do seu trabalho de resgate e reduzir a pressão que carregam. Para reduzir a pressão destes trabalhadores o reconhecimento e o respeito do público são cruciais. O público deve compreender as dificuldades e as agruras do trabalho de resgate e cooperar activamente. Uma homenagem simples e um respeito sincero valem mais do que o apoio emocional. Esperemos que este artigo ajude a reduzir a pressão psicológica de todos os envolvidos nas operações de resgate no Hung Fuk Court em Tai Po. O amor, o respeito e o reconhecimento do público pelos socorristas é a maior recompensa pela imensa pressão que sofreram e pelos sacrifícios que tiveram de fazer, o que irá assim aliviar os seus traumas psicológicos. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Faculdade de Ciências de Gestão da Universidade Politécnica de Macau