Via do MeioAs Filosofias de Vida Chinesa e Portuguesa Ana Cristina Alves - 15 Set 2025 Ana Cristina Alves Investigadora Auxiliar e Coordenadora do Serviço Educativo do Centro Científico e Cultural de Macau 1 Entre as leituras de férias, tive oportunidade de reler do filósofo José Gil Portugal, Hoje. O Medo de Existir (2017) e não pude deixar de me surpreender com a atualidade de muitas das suas reflexões a respeito da maneira de estar dos portugueses, ainda atualmente 21 anos volvidos sobre a primeira edição da obra em 2004. As razões do nosso modo de estar no mundo devem-se a uma série de fatores determinantes para o desenvolvimento coletivo que se prendem com opções religiosas e políticas pouco favoráveis ao desenvolvimento do espírito filosófico, crítico e científico, como Antero de Quental tão bem viu em Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, numa conferência apresentada na sala do Casino Lisbonense no dia 27 de Maio de 1871. Esta viria a ser retomada e tematizada pelo filósofo João Maurício Brás em O Atraso Português: Modo de Ser ou de Estar (2022). Aqui se defende que não somos atrasados, já que não há nenhuma determinação essencialista para o facto, mas estamos, enquanto modo de ser coletivo, atrasados em relação ao modelo europeu que seguimos desde 1985/1986. Faltaram-nos grandes pensadores e cientistas nos últimos três séculos e sofremos a viragem para a passividade pouco depois dos Descobrimentos, remontando, do ponto de vista religioso o sucedido ao Concílio de Trento, realizado entre 1545 e 1563. Não se aderiu à reforma protestante e pagou-se um preço filosófico por isso, medido em falta de espírito crítico, falta de arrojo científico e ausência de iniciativa e estamina, em que tanto nos tínhamos excedido para o grande empreendimento dos Descobrimentos. A esta limitação religiosa, somaram-se fatores políticos e económicos desfavoráveis, como a persistência de tendências políticas autocráticas, que viriam a culminar no salazarismo e o fator contraproducente da aparente “dádiva” de riquezas obtidas do exterior, concretamente das colónias, que não nos desenvolveram internamente, sobretudo do ponto de vista industrial, pois tudo o que necessitávamos vinha de fora, primeiro da Índia, depois do Brasil e por último, como bem nota o pensador João Brás da “Nova Índia”, a União Europeia, este maná por onde continuam a escorrer milhões. A verdade é que para que eles não se diluam em mais “fumos da Índia”, será preciso saber o que fazer com eles, como aplicá-los corretamente em planos de reforma e modernização do país. Estamos ainda na fase dos três “Dês” da revolução de 2025, de acordo com João Brás, opinião que se partilha. Portugal precisa de se continuar a Desenvolver, Descolonizar, ou seja, acreditar que se pode criar riqueza de dentro, e Democratizar, quer dizer, exercitar o pensamento crítico, sem “medo de existir”. O movimento pensante já começou e as hordas filosóficas têm vindo a engrossar desde Fernando Pessoa, Teixeira de Pascoaes, passando por Eduardo Lourenço, José Gil, Viriato Soromenho-Marques, João Brás, Adriana Serrão, Paulo Borges, Carlos João Correia, Pedro Calafate, entre tantos outros e outras. Ao ler José Gil, deparei com um ou dois parágrafos incontornáveis para quem há muito se dedica aos estudos chineses: Uma diplomata francesa que tinha vivido longos anos na China e, mais tarde, em Portugal, dizia que os portugueses eram “os chineses do Ocidente”. E explicava: os chineses nunca vão diretamente ao assunto, dão voltas e mais voltas antes de lá chegar e sempre em termos velados. Os portugueses fazem o mesmo: aproximam-se indiretamente, percorrem espirais, caminhos ínvios e barrocos até abordar claramente a questão. (Gil, 2017, 66) Há, de facto, algumas semelhanças na maneira de estar dos portugueses e chineses, sobretudo em termos dos relacionamentos sociais. Nem portugueses, nem chineses gostam de confrontar diretamente as pessoas e muito menos os superiores hierárquicos, o chefe tem sempre razão, pelo menos até virar as costas, mal as vira é alvo da pior maledicência. A não confrontação não é apenas uma questão de cobardia para portugueses e chineses. Há uma suavidade nata nos portugueses e cultivada nos chineses, por uma longa tradição confucionista de controlo das emoções, com vista à criação de um ambiente harmonioso. Quanto aos portugueses, que melhor testemunho do que insuspeito Antero de Quental? Este distinguia-nos, como uma das características fundamentais pré-decadência, qualidades remontando à Idade Média, entre as quais “A caridade triunfava das repugnâncias e preconceitos de raça e de crença” (Quental, 2010, 12). A suavidade em nome da harmonia e do bom viver é então uma característica partilhada por chineses e portugueses, que têm ou tiveram, ainda, outra afinidade notável, a importância da família como base e sustentáculo da pirâmide social. Esta virá a perder terreno para uns e outros, fruto das grandes alterações sociais, impressas na China, primeiro pela revolução comunista de 1949, na qual as massas populares e a coletividade passariam para primeiro plano, depois pelo movimento de reforma e abertura (1978/9) arquitetado por Deng Xiaoping (1904-1997), que aliou o socialismo à economia de mercado e ao desenvolvimento de uma classe média pronta a enriquecer, mas também a tornar-se cada vez mais egoísta e individualista, como refere António Caeiro em Novas Coisas da China ― «Mudo logo existo» “A emergência da classe média chinesa é a maior história da nosso tempo” (2015, 28), baseado em dados da Forbes Magazine de 2011. É indesmentível, que os chineses hoje em dia se aproximam muito em individualismo dos portugueses. Há um outro traço que partilham por tradição e que os afasta na atualidade, o amor ao pensamento teórico, às formalidades e formalismos. No entanto, fruto de um trauma brutal no século XIX, as duas guerras do ópio (1839-1842; 1856-60), as autoridades e os pensadores e filósofos chineses, tais como Sun Yat-sen, Feng Yulan (馮友蘭/冯友兰,1895 -1990), entre outros, incentivaram os conterrâneos a aprender ciência com os ocidentais em nome da modernização. Hoje a China tem uma elite científica já com pensamento próprio e sem necessidade de seguir os modelos ocidentais, sendo este um dos fatores, aliado ao combate à corrupção e ao desenvolvimento de um modelo de ciência tão ecológica quanto possível, o que mantém o partido comunista na liderança governativa do país, tornando o seu sistema político difícil de descrever para grandes autores como Francis Fukuyama: chama-se-lhe muitos nomes como “capitalismo vermelho” (Caeiro, 2015, 174/5), que não é uma democracia à maneira ocidental, nem um ditadura ao jeito clássico, mas antes um país governado por um partido “ – de partido revolucionário, o PCC transformou-se em partido dirigente de um processo de modernização. Antes era a vanguarda do proletariado, hoje dirige a nação” (Caeiro, 2015: 42), segundo a opinião de muitos chineses. Ou seja, enquanto tiver um plano para a modernização do país, sobretudo em termos educacionais e científico-tecnológicos, que inclua o combate às desigualdades sociais e ao problema endémico da corrupção e promova uma forte classe média, o governo da China não será discutido. Os chineses aderiram às mudanças, sobretudo científicas e estão na linha da frente em muitos setores tecnológicos. E neste aspeto houve um grande distanciamento em relação ao seu modo de estar tradicional, que enfatizava a expressão estética e, sobretudo poética, bem como o saber livresco, culminando numa imensa repetição dos Clássicos, que se estendeu desde a antiguidade até ao início do século XX. Há, no entanto, uma interessante característica a salientar no modo de estar chinês que, guiado pelo princípio da transformação, importante pilar filosófico e cultural, muda, sem mudar. Como é isso possível? Mantendo as suas estruturas essenciais intactas. “O antigo e o novo confundem-se. Áreas «históricas» são reconstruídas de raiz, «novos edifícios antigos» substituem os velhos. Em vez de preservar, destrói-se e a seguir faz-se igual” (Caeiro. 2015, 14). O princípio de transformação permite a mudança, mas não radical, do ponto de vista de mentalidades, por exemplo, e relativamente às categorias de interioridade vs exterioridade, há um fundo que permanece numa civilização habituada a cultivar a interioridade. Pense-se na mentalidade religiosa, formada por séculos de meditação, favorecida pelas escolas taoista e budista. A transcendência não surge como uma divindade exterior, está dentro e quando o meditador se volta para o interior encontra o divino em si. E é justamente a relação interior/ exterior que mais distingue os modos de ser português e chinês, tanto do ponto de vista religioso como filosófico, a divindade portugusa é exterior e no mundo filosófico sempre houve o cuidado de separar o transcendente e o imanente, o sujeito e o objeto, etc. Portanto, na maneira de estar portuguesa a exterioridade foi determinante na filosofia e na ciência, pelo menos nos últimos séculos, já que tudo o que vem de fora é extraordinário e bom, leia-se a propósito o excelente artigo de Fernando Pessoa “O caso mental português”, no qual esta idolatria e bajulação do estrangeiro é classificado sem contemplações pelo poeta-pensador como “provincianismo” ; mas pelo lado positivo, esta tendência pode ser perspetivada como força anímica impulsionadora e inspiradora, dos pontos de vista geográfico e científico, já que a “nossa expansão” permitiu o desenvolvimento do pensamento científico e experimental, recordem-se a propósito as palavras de João Brás “a capacidade de iniciativa e até vanguardista que encontrámos nos séculos XV e XVI” (Brás, 2022:114), bem como o escape à pobreza e o bom viver à custa de terceiros. Quando se atenta na história e geografia da China, nota-se que os momentos expansionistas foram mínimos, baseados na ocupação de territórios fronteiriços, logo assistiu-se a um alastramento de dentro e não uma saída mar fora. E quando se lançaram para o exterior, fizeram-no no século XV com o auxílio duma frota comandada por um muçulmano, não para ocupar territórios, mas para envidar esforços diplomáticos relativamente aos países circundantes e até à África oriental. Há a acrescentar que, sobretudo no século XIX os chineses se viriam muito pressionados pela péssima situação económica, fruto das guerras, a emigrar e a imitar o estrangeiro, em pleno período considerado de decadência pelos chineses. Portugueses e chineses têm um grande respeito pelas suas tradições históricas e heróis antigos e ambos os povos se veem confrontados com a premência de se modernizarem, no entanto, os chineses têm sido mais eficazes nas respostas encontradas, talvez por não terem esquecido os últimos séculos sob o jugo de uma dinastia estrangeira, pelas guerras e turbulência que tiveram de ultrapassar, e daí tenha resultado uma capacidade de esboçar planos a longo prazo que contribuiu para que a sociedade se mobilizasse e aceitasse as reformas, lendo-as como uma verdadeira possibilidade de emancipação socioeconómica, através da promoção de uma classe média ávida de um conhecimento que outrora pertencia apenas às elites, por muito que se apregoasse que o sistema meritocrático chinês era bom para todos, a verdade é que havia sempre que contar com o “privilégio sombra” da aristocracia que detinha o poder. A maneira de estar portuguesa só voltará a aproximar-se da chinesa quando a necessidade de desenvolvimento e modernização, que passará inevitavelmente pela implementação de reformas, for assumida por cada um de nós de uma maneira consciente e organizada, como já o pediam Antero de Quental e a geração de 70 nos finais do século XIX, o que não será assim tão difícil de acontecer, se cada um de nós se preparar para a transformação ética: “Não são necessárias pessoas excepcionais, mas auto-responsabilidade, civismo, espírito crítico e exigente, a ideia de que a mudança começa principalmente por cada um de nós.” (Brás, 2022, 110)2. Referências Bibliográficas Brás, João Maurício. 2022. O Atraso Português ― Modo de Ser ou Modo de Estar. Lisboa: Autor e Guerra e Paz Editores. Caeiro, António. 2015. Novas Coisas da China ― «Mudo logo existo». Lisboa: D. Quixote. 馮友蘭 (Fung Yu-lan/ Feng Youlan).2006.《中國現代哲學史》香港:中華書局有限公司. Gil, José.2017. Portugal, Hoje. O Medo de Existir. Lisboa: Relógio D’ Água. Pessoa, Fernando. “O caso mental português”. Fernando Pessoa. Obra Poética e em Prosa, pp.1306 /1312. Quental, Antero. 2010. Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos Últimos três Séculos. Sintra: Padrões Culturais Editora. Notas: Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, sendo as opiniões expressas no artigo da inteira responsabilidade dos autores” https://www.cccm.gov.pt O filósofo João Brás não segue a grafia do novo acordo ortográfico.