Via do MeioO original inédito de uma carta do jesuíta espanhol Francisco Pérez Hoje Macau - 12 Set 2025 Embaixada, ilusões missionárias, mandarins e elefantes O original inédito de uma carta do jesuíta espanhol Francisco Pérez, escrita de Macau a 7 de Janeiro de 1564 Por Ivo Carneiro de Sousa O autor da carta manuscrita em português que adiante se publica integralmente a partir do seu original pela primeira vez, Francisco Pérez, nasceu cerca de 1514 em Villanueva de Barcarrota, na diocese de Badajoz, na Extremadura espanhola, falecendo a 12 de Fevereiro de 1583 em Negapatão. Encontrava-se já ordenado sacerdote quando, pelos inícios de 1544, chegou ao colégio da Companhia de Jesus de Coimbra para, dois anos mais tarde, a 8 de Abril de 1546, partir na Flor de la Mar para as missões jesuítas na Ásia. Começou por se instalar brevemente em Goa, depois seguindo para Malaca por onde ajudou a erguer a residência jesuíta na cidade-enclave, tornando-se desde a morte de S. Francisco Xavier superior das missões da Companhia de Jesus na Índia Oriental. Dez anos decorridos, parte a 7 de Julho de 1563 para Macau, integrando a alegada “embaixada” de Gil de Góis à China, promovida pelo vice-rei português do chamado “Estado da Índia”, D. Francisco Coutinho, terceiro Conde do Redondo. Frustrada por Cantão a tentativa missão tanto política como religiosa, Pérez instala-se em Macau e ergue com o seu companheiro português, padre Manuel Teixeira, a primeira residência da Companhia, ao lado da primitiva igreja de madeira dedicada a Santo António que serviria de primeiro auditório religioso aos sacerdotes jesuítas. Até à sua saída definitiva de Macau, em 1568, sabe-se que escreveu generosamente para membros da Companhia na Ásia e na Europa, produzindo acervo documental hoje na maioria por recuperar.1Quando, em 1964, a diocese de Macau patrocinou o quinto centenário da chegada dos Jesuítas a Macau (em rigor, tinham chegado no ano anterior de 1563), o padre Benjamim Videira Pires publicou sob o comemorativo título de “cartas dos fundadores” uma missiva de Francisco Pérez para o jesuíta Luís Gonçalves, datada de 3 de Dezembro de 1564, “neste porto de Amacau da China”.2 Esta divulgação do documento com vários erros de leitura viria a ser revista, corrigida e reeditada em 1996 e 1997 pelo Prof. Rui Manuel Loureiro, alargando o reconhecimento do texto.3 A carta servia, entre outras matérias, para se ficar a saber que “Neste porto há muita gente nossa. Dizem que se ajuntaram aqui seis ou setecentos portugueses, fora outra muita gente cristã misturada, como servidores e jurubaças, que são homens que sabem nossa língua e a da China, donde são naturais”. Chame-se agora esta carta inédita na sua versão original escrita por Francisco Pérez quase um ano antes, menos de seis meses após a sua primeira entrada em Macau, datada de sete de Janeiro de 1564 “de amachaon”.4 Redigida em português, pela missiva logo circulam alguns dos mercadores, ricos e bem relacionados, que desde 1557 se foram fixando no porto, em terra, muitos, outros vivendo nos seus barcos: Diogo Pereira, o único entre centenas de comerciantes portugueses que, a 4 de Dezembro de 1552, acompanhou com dois escravos e um criado chinês o enterro de São Francisco Xavier em Sanchoão, homem abonado, muitos navios, abundante escravatura e criadagem, mais boas ligações a comerciantes e mandarins de Cantão; era nesta altura capitão-mor, praticamente eleito pelos seus companheiros; aparece também o seu irmão, Guilherme Pereira, e o curioso “provisor” João Soares, personagem que se documenta nestes primeiros anos de circulação portuguesa por Macau como singular “homem de leis”, pese embora se dedicar aos mesmos tratos mercantis de quase todos os outros. Prefere Francisco Pérez com os seus dois companheiros – o padre Manuel Teixeira e o irmão André Pinto – “pousar” na casa de Pedro Quintero, um veterano soldado castelhano que havia tomado ainda parte na expedição pioneira de Ruy López de Villalobos às Filipinas, em 1543. Estabelecido em Macau para se dedicar aos combates mais lucrativos das mercancias, Quintero ainda estava activo em 1579 quando acolheu e recebeu o franciscano espanhol Pedro de Alfaro, ajudando-o a fundar o convento de São Francisco de Macau, conseguindo obter autorização do bispo-patriarca Melchior Carneiro, o homem mais poderoso e temido do lugar, mas que detestava viver em Macau.5 Feito em madeira, o pequeno convento não resistiu ao primeiro tufão. A carta sugere as ilusões missionárias destes primeiros jesuítas na conversão da China que Francisco Pérez perdeu rapidamente quando, em visita a Cantão, em Novembro de 1565, ficou a saber que os dois pedidos que tinha enviado em português e chinês às autoridades da província tinham sido totalmente rejeitados, não autorizando, como sempre, a circulação de estrangeiros, muito menos missionários, no império.6 A missiva desvenda entre muita distância cultural a prefiguração do inevitável falhanço da “embaixada” de que Pérez também fazia parte. Depois de encetadas as primeiras negociações com os “mandarins do porto”, vieram as chapas e os controlos de Cantão, concluindo-se com a visita de “outro mandarim que dizem ser dos principais da corte”. Recebido com aparato, o mandarim exigiu ver as peças do presente da “embaixada” na melhor igreja da povoação. Admirou-se, mas respeitou, as imagens sagradas e “foi-se direito ao altar maior e olhou a imagem de Nosso Senhor crucificado e de Nossa Senhora e perguntou o que era aquilo”. Viu e tomou nota de todos os presentes da embaixada que eram espelhos, cristais, espadas, joias e muitos têxteis indianos. Ontem como hoje, Diogo Pereira regalou-o com jantar ainda não certamente muito “à portuguesa”, oferecendo “conservas e com água” que o alto mandarim parece ter apreciado porque “foi contente”. Demorou-se mais uns dias pela povoação e Diogo Pereira não poupou em despesas para o agradar. Quando saiu de Macau, todos ficaram com a esperança de que a embaixada seria recebida em Cantão: “Agora ao presente está o negócio da embaixada esperando um regedor grande para dar sua voz. E segundo lá dizem que não há dúvida senão que se Receberá. Porém, como esta embaixada é nova e seja para eles grande, e que há mister muito conselho, se há dilatado até agora.” Ainda assim, o padre Francisco Pérez que era homem perspicaz e cuidadoso, percebeu rapidamente que nas negociações os mandarins chineses esperavam “peitas, porque já a coisa está em quanto me darás.” Por isso, o jesuíta espanhol não se afigura ter ficado muito convencido do valor e do acolhimento favorável dos presentes da embaixada de Gil de Góis. A fechar a sua carta ao provincial da Companhia na Índia, padre António Quadros (1528-1572), Pérez avisa que o Rei de Portugal vai ter “muito trabalho” e “algumas despesas” para abrilhantar os seus presentes ao grande imperador da China, pelo que lhe parece “que mandará pedir o embaixador será dois alifantes e outras coisas que depois escreverei”. O leitor interessado nestas embaixadas quinhentistas entre mito e realidade com alifantes de que D. Manuel, em 1514, tinha inaugurado a solenidade ao enviar ao papa Leão X um elefante vivo, não têm de se preocupar em desvendar documentação arcana ou procurar complicada prosa académica, sendo bem mais preferível revisitar estes singulares investimentos de aparato imperial lendo o romance de José Saramago “A Viagem do Elefante”, obra genial publicada em 2008. O que não liberta, a seguir, a leitura interessada que se quer histórica e quase documental de acompanhar esta carta do nosso Francisco Pérez convocada do seu manuscrito original. * historiador [ivocarneiro@gmail.com] Referências 1 ALONSO ROMO, Eduardo Javier. “Un extremeño en las indias portuguesas: Francisco Pérez (c. 1515-1583) y sus escritos”, Revista de Estudios Extremeños, vol. 58, nº 3 (2002): 1047-1069; BACKER, Augustin de; DEHERGNE, Joseph. 1973. Répertoire des Jésuites de Chine de 1552 à 1800. Roma: Institutum Historicum, S.I – Paris: Letouzey & Anê, p. 201: 628; MATEOS, Francisco. “Compañeros españoles de San Francisco Javier”, Missionalia Hispanica, vol. 9 (1952): 347-353; SCHURHAMMER, Georg (1992). Francisco Javier. Su vida y su tiempo. Bilbao: Mensajero, III, 230-232; WICKI, Josef. “Dos neuentdeckte Xaveriusleben des P. Francisco Pérez”, Archivum Historicum Societas Iesu, vol. 34 (1965): 36-78; WICKI, Josef. “Pérez, Francisco”, in: O’NEILL, Chrles E. & DOMÍNGUEZ, Joaquín Maria (dir.). Diccionario Histórico de la Compañía de Jesús. Biográfico-temático. Roma-Madrid: IHSI – Universidad Pontificia Comillas, 2001, III: 3090. 2 PIRES, Benjamim Videira. “Os três heróis do IV centenário. Cartas dos Fundadores”, Boletim Eclesiástico da Diocese de Macau, vol. 62 – no. especial “O IV Centenário dos Jesuítas em Macau: 1564-1964” (Outubro-Novembro 1964): 768-777. 3 LOUREIRO, Rui Manuel (1996). Em Busca das Origens de Macau. Lisboa: Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses; Macau: Museu Marítimo de Macau, 1997. 5 Existe edição de cópia tardia incompleta com omissões, cortes e variantes desta carta original inédita feita por FREITAS, Jordão (1988). Macau Materiais para a sua História no século XVI. Macau: Instituto Cultural de Macau, pp.27-28. Este trabalho segue cópia de meados do século XIX das transcrições que se queriam “paleográficas” realizadas em Macau entre 1742 e, provavelmente, 1748 pelos jesuítas padre José Montanha e irmão João Álvares que estão na origem dos 61 códices formando actualmente a colecção Jesuítas na Ásia da Biblioteca da Ajuda, em Lisboa. Não se trata, assim, de colecção de documentos originais, os quais se encontram tanto no arquivo de Roma da Sociedade de Jesus como em arquivos e bibliotecas de Madrid (Biblioteca Nacional, Arquivo Histórico Nacional e Real Academia de História), visto que o antigo arquivo e livraria do Colégio de São Paulo de Macau seguiu, após a expulsão dos jesuítas, em 1762, para o Colégio de Santo Ildefonso de Manila, depois rumando cerca de 1770 para Espanha. A investigação científica histórica está, naturalmente, obrigada a recuperar e trabalhar com documentação original. 7 Carta de Pedro Quintero a Fr. Pedro de Alfaro, 1579, 5 de Novembro – Macau (Archivo General de Indias, Filipinas 79, no. 7). 9 ESCOBAR, João de. Comentários sobre a Embaixada de Gil de Góis (LOUREIRO, Rui Manuel (1996). Em Busca das Origens de Macau. Lisboa: Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, pp. 149-157 e Revista de Cultura, no. 31 (II Série), Abril/Junho de 1997: 67-74). Contexto: Nos últimos três anos, Ivo Carneiro de Sousa concluiu pesquisas sistemáticas em arquivos de Espanha e Itália que permitiram recolher os textos que, em 2026, darão origem à publicação de “Memórias, Viagens e Viajantes Espanhóis por Macau (1564-1900)”. Na sequência do primeiro trabalho desta série, os 4 volumes publicados pelo Instituto Cultural, em 2022, de “Memórias, Viagens e Viajantes Franceses por Macau (1609-1900)”, a documentação reunida de viajantes e viagens espanholas por Macau permitiu recolher 111 memórias, manuscritas e impressas: 24 textos do século XVI; 20 do século XVII; 16 do século XVIII; 51 do século XIX. Muitos destes textos são inéditos ou praticamente desconhecidos, a começar pela carta que abre esta obra, escrita a 7 de Janeiro de 1564 pelo jesuíta espanhol Francisco Pérez. Este documento encontra-se guardado no Arquivo dos jesuítas em Roma, o Archivum Romanum Societatis Iesu, simplesmente conhecido pela sigla ARSI, albergando-se ao quinto volume da colecção conhecida por Japonica-Sinica. Compreendendo 84 volumes de milhares de documentos originais e cópias, os primeiros quatro volumes desta colecção são especialmente procurados por reunirem centenas de documentos e xilogravuras em chinês. Durante várias décadas, historiadores e investigadores interessados em estudar as missões católicas na China e no Japão, desde meados do século XVI, foram esperando pela prometida edição pública desta colecção. Em 2002, dois jesuítas, John W. Witek e Joseph Sebes, publicaram os Monumenta sinica. I: (1546-1562). Roma: Institutum Historicum Societatis Iesu. Foi tudo. Os editores entretanto faleceram, a edição não continuou, pelo que só resta aos investigadores o trabalho sempre sinuoso e desafiante de arquivo, perseguindo vestígios, por vezes fantasmas, chegando-se às vezes a resultados como este de recuperar documento importante e raro para a investigação dos primeiros anos da circulação e, depois, instalação portuguesa em Macau.