Filipe de Saavedra, docente: “Falta um centro interpretativo de Camões em Macau”

Professor da Universidade de Ciências e Tecnologia de Macau e estudioso da presença de Camões na Ásia, Filipe de Saavedra entende que falta em Macau um centro interpretativo sobre a vida e obra do poeta. O académico falou ontem na Biblioteca Nacional, em Lisboa, sobre a correspondência escrita por Luís de Camões na Ásia

 

Participou ontem na sessão “De Lisboa a Goa: O que contam as cartas de Camões”. Que percurso a Oriente surge retratado nestas cartas, e a quem foram dirigidas?

As cartas que Camões escreveu da Ásia são na ordem das dezenas. Há nelas erudição, filosofia, e também muito humor, sarcasmo, e sátira de cunho humanista. Algumas foram escritas de Ternate, outras de Malaca, de Macau, provavelmente outras do Camboja, para destinatários na Índia e em Portugal. Com excepção das cartas de Goa, em que a identificação do local de escrita está geralmente presente, mapear as que foram escritas durante o restante périplo asiático dele seria tarefa complexa. Ficam somente dadas como escritas na Ásia.

Pode dar exemplos de cartas escritas neste contexto?

Menciono aqui duas das primeiras que ele enviou para o reino. A epístola cuja primeira linha é “O Poeta Simónides falando” foi redigida em Janeiro de 1554, quando Camões acaba de chegar a Goa, destinando-se ao seu pupilo, D. António de Noronha. É uma carta muito emotiva, dando-lhe conta da tempestade que assolara a Armada no Cabo da Boa Esperança, “vendo a morte d’ante em mim”. Camões sobreviveu a esta experiência limite a bordo da nau São Bento, aliás a única a chegar naquele ano a Goa, e que se perdeu na torna-viagem em frente às terras de Natal, morrendo neste segundo lance o capitão-mor Fernão de Álvares Cabral, e muitos dos que com ele viajavam. Além da notícia da sua salvação, o poeta estava igualmente ansioso por contar ao seu amigo a expedição de D. Afonso de Noronha ao Malabar, em que tomara parte no mês anterior. Em páginas irenistas, Camões condena veementemente o massacre das poucas e mal-armadas tropas nativas pela “armada grossa” do desproporcionado exército vice-reinal. No seu elogio radical da paz, o poeta chama “remédio verdadeiro” à morte precoce que vem curar as manias bélicas dos que querem viver “por cavaleiros”, pois “quem há de andar seguindo o fero Marte traz os olhos sempre em seu perigo”. Palavras cruelmente proféticas: por ironia do destino, no momento mesmo em que o poeta escrevia estas linhas e as enviava, aquele dilecto destinatário, por cuja vida ele tanto temia, jazia já morto, caído durante uma incursão militar em Ceuta a 29 de Abril de 1553, com apenas 17 anos de idade.

E a segunda carta?

Um ano depois, em Janeiro de 1555, escreveu a um amigo uma epístola diferente em tom e em propósito, cuja primeira linha é «Desejei tanto uma vossa», onde evocava o choque que sofreu com a morte de D. António, juntando um soneto que compusera à memória dele. Por aí se percebe que Camões tinha também grande intimidade com este correspondente, que conhecia D. António e a poesia de Camões, de Petrarca e de Boscán. Curiosamente, a carta inclui algumas linhas masculinas, que Camões diz serem obrigatórias em cartas privadas, contendo aquilo a que se pode chamar conversa de balneário, pelo que ser culto ou erudito não impedia que se fosse “bon vivant”.

A presença de Camões em Macau está ainda envolta num certo mito. Quais as provas concretas da sua presença no território?

É preciso separar as águas. A pousadia de Camões nos penedos de Patane, depois chamados “gruta”, está rodeada por uma bela aura lendária. Mas a presença de Camões em Macau, essa não está envolta em “mito” algum, é uma realidade factual e histórica, fundada numa amplíssima variedade de testemunhos, todos eles independentes entre si. Insistindo numa cronologia que constava nas fontes, mas que era flagrantemente errónea, procurou-se deliberadamente confundir as dúvidas que se pudessem ter sobre a permanência dele nos penedos, cabíveis embora injustificadas, com as falsas dúvidas sobre a estadia do poeta em Macau, estas risíveis e desprovidas do mínimo fundamento. O chiste correu célere, e pouco a pouco foi-se incrustando no imaginário colectivo, ao ponto de algumas pessoas menos informadas o tomarem por uma suposta “descoberta” recente. Contudo, o disparate foi lançado em 1907, e logo desmontado em 1911 por Jordão de Freitas. O juiz Eduardo Ribeiro pôs mais “pontos nos iis” a este respeito. A seu tempo publicarei a documentação completa sobre a presença de Camões em Macau, pondo fim definitivo ao mítico “mito”.

Que vida fez Camões em Macau?

Podemos dizer que esses dois anos foram os de maior plenitude profissional, económica e afectiva na vida dele. Se escreveu poesia? Constantemente, como o atesta a dimensão da obra. Uma parte significativa de “Os Lusíadas” foi aqui composta, embora o poema não tivesse sido nem iniciado, nem terminado em Macau. Não menos importante na vida dele foi ter sido em Macau que assumiu publicamente uma relação com uma jovem chinesa, mais exactamente da etnia tanka, de pescadores pobres. Não é de estranhar esta ligação assimétrica e ancilar com uma jovem modesta: só as famílias desfavorecidas não impediriam que as filhas se relacionassem com estrangeiros. Isso explica o facto de ela partir com Camões em 1565 para Goa, com estatuto de concubina. Mas a embarcação particular em que seguiam, pertença de mercadores chineses, sofreu um naufrágio junto ao Camboja, e Camões perdeu ali a “a cordeira gentil que eu tanto amava”. Foi só depois da sua morte que ele viria a crismá-la como Dinamene, uma ninfa grega das águas, para que ela vivesse para sempre no Oceano. Os chineses de Macau têm uma relação especial com Camões, tal como os portugueses e os macaenses.

Como se verifica essa relação?

Já existia no século XVIII em Macau o primeiro monumento em homenagem a Camões, algo que em Portugal só se começou a pensar erigir no século seguinte. Recebeu mesmo uma inscrição em chinês, e até um pavilhão chinês foi construído sobre o santuário dele. Diz o visconde de Juromenha que em 1845 o vice-rei de Cantão e Comissário Imperial Ki-ing ali venerava Camões como o “Confúcio português”. E com razão, pois Camões partilha muitos aspectos dos sábios da tradição chinesa: estabeleceu um diálogo com os mestres através das recriações de obras maiores, cultivou uma tradição milenar (ele glosa poetas dois mil anos anteriores à sua própria época), praticou a itinerância como fonte de “sagesse”, afirmou o primado da poesia, concebeu os rios como entes míticos, chegando mesmo a personificá-los, demonstrou acentuada tendência para moralizar, e epitomou o seu pensamento em sentenças magistrais.

Que ligação teve Camões com Goa?

Ao contrário de Macau, Goa suscitava em Camões sentimentos maioritariamente negativos. As primeiras impressões que dela teve, como uma terra sem lei em que só os videirinhos medravam, não poderiam ter sido piores, como se lê na carta inicial a que aludi: “longa terra, de todo o pobre honrado sepultura”. Na segunda carta prossegue: “Da terra vos sei dizer que é mãe de vilões ruins, e madrasta de homens honrados”. Estas impressões não melhorariam com o tempo, como o corroboram as sátiras que lhe acarretaram a expulsão para Ternate em 1556. Goa, onde ele chegou a ser o protegido dos vice-reis, para cair depois no maior desfavor sob D. Antão de Noronha, foi nos textos dele o espelho invertido do reino, a Babilónia corrupta e corruptora, alfurja da venalidade e da traição a Deus, ao rei e à lei. No que nem é original, pois há outras fontes que reforçam este retrato jeremíaco e apocalíptico da capital do império português do Oriente. Lembremos Bocage: “Das terras a pior tu és, ó Goa”. Isto dito, obviamente que também terá vivido ali horas mais doces, sobretudo sob o vice-reinado dos seus protectores, e no convívio com alguns companheiros das lides poéticas que ali residiam então, e que ele evoca no chamado “Banquete de Trovas”. A um desses espíritos cultos, o poeta Luís Franco, deixou até cópia das suas obras quase completas, incluindo o «Auto de Filodemo» que ali compusera, para que elas se salvassem se outra adversidade sobreviesse na tornada ao reino.

Considera que Portugal deveria dar mais atenção aos seus escritos, dinamizando mais a sua obra? De que forma?

Em Lisboa é necessário construir um grande museu literário dedicado a Camões e às suas criações. O lugar ideal será o Convento de São Bento de Xabregas, onde o seu amigo Dom António teve sepultura no panteão dos Linhares da capela-mor. Também em Goa a estátua de Camões partiu para um exílio no cruelmente denominado “Museu Arqueológico», que não é o local adequado para encerrar a poesia ou a imagem de um Poeta. Sendo o maior património intangível de Macau, Camões tem sido pouco aproveitado nesta região. Falta-nos um centro interpretativo da sua obra, para o qual já houve em tempos propostas, uma espécie de minimuseu, com exposição permanente, biblioteca fundamental e recursos multimédia.

E em Macau? Camões é estudado ao nível do ensino superior?

Dois alunos da Universidade de Ciências e Tecnologia de Macau vão agora defender as suas teses de mestrado. A primeira é um estudo técnico aprofundado da tradução de Zhang Weimin das odes de Camões. A segunda percorre a sobrevivência literária da figura de Dinamene na ficção portuguesa contemporânea, e são ambas excelentes, trazendo novidade.

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