Cidade de Xiamen厦门 (Amoy) mais a excelente ilha de Gulangyu鼓浪屿

No recuado ano de 1981, na Biblioteca Central de Xangai, onde não havia ainda ficheiros organizados numa língua estrangeira e os computadores estavam em absoluta gestação, pedi ao funcionário de serviço que me trouxesse livros e documentos em inglês ou em português sobre Aomen澳门, o nome chinês da nossa Macau.

O pressuroso empregado apareceu-me uns dez minutos depois sobraçando uma resma enorme de livros, todos referentes a Xiamen厦门, a cidade costeira no sul da província de Fujian. Na altura, na China Popular pouco ou nada se sabia sobre Macau, e quem ouvia o nome associava-o frequentemente a um bairro de Hong Kong.

O topónimo Aomen 澳门, que significa “porta da baía”, prestava-se a alguma confusão com Xiamen 厦门que se pode traduzir por “porta da mansão” dado que ambas as cidades são portos de mar situados no sul do império chinês.

Na altura, ainda com tanta China por conhecer, parecia-me improvável um dia desembarcar de comboio, barco ou avião em Xiamen, a velha cidade de Amoy. Aconteceu no ano de graça de 2013, tendo chegado de avião exactamente desde Taipé, Taiwan, logo ali do outro lado do estreito da Formosa, coisa impensável há uma dúzia de anos. Mas hoje tudo são facilidades, com as ligações aéreas entre a capital de Taiwan e as principais cidades da China Popular.

Xiamen ou Amoy – assim se leêm os dois caracteres厦门, primeiro em mandarim e depois no dialecto hokkien de Xiamen, variante do min do sul falado em Fujian –, é a segunda maior cidade da província de Fujian com 1,8 milhões de habitantes.

Cresceu sobretudo a partir do século XVI quando as duas grandes cidades portuárias de Zhangzhou e Quangzhou que lhe estão próximas começaram a diminuir de importância devido ao assoreamento dos rios que lhes davam acesso marítimo. Por volta de 1545, o porto, ou portos de Xiamen dado que a ilha engloba vários embarcadouros ou cais, chegou a ser usado pelos navegadores e mercadores portugueses nas suas deambulações ao longo da recortada costa chinesa, nesta região polvilhada por mil ilhas, baías, embocaduras de rios, mares amarelos e terras de todas as cores.

No século XIX, Xiamen era o grande porto por onde se escoava o chá, até então unicamente produzido na China. Após, a Guerra do Ópio (1839-1842), a sua importância cresceu dado ser um dos “Cinco Portos” abertos ao comércio internacional após a derrota chinesa na guerra às mãos dos ingleses e a assinatura do humilhante, para a China, tratado de Nanquim, em 1842. Os outros portos abertos foram Cantão, Fuzhou, Ningbo e Xangai.

Hoje Xiamem é uma cidade airosa, desempoeirada, acho que quase livre de poluição. A proximidade do mar, o clima subtropical com chuvas frequentes, a própria abertura do centro urbano para o litoral, a natureza da terra fazem de Xiamen um dos lugares com melhor qualidade de vida em toda a China. E a cidade mantém um interessantíssimo centro histórico, com ruas e construções coloniais europeias que datam de finais do século XIX.

Visita ao templo budista de Nanputuo. Inicialmente construído durante a dinastia Tang (618-907), o templo foi várias vezes arrasado e os pavilhões que tenho diante de mim são todos dos séculos XVIII e XIX. Resta a originalidade de terem sido construídos neste estilo chinês do sul da província de Fujian, com as extremidades dos telhados, às vezes sobrepostos, muito reviradas, os templos intensamente decorados e coloridos por fora e por dentro.

Nanputou estende-se para o céu, ascendendo pela montanha que lhe fica por detrás o que, em termos de feng shui 風水favorece a sua localização, um monte atrás, o mar em frente, o céu por cima. Vale a pena subir algumas centenas largas de degraus para, do alto, em plataformas aqui e acolá com motivos budistas, se ter uma desafogada vista sobre esta parte da cidade e sobre o mar.

Logo abaixo, encontramos o vasto campus da Universidade de Fujian, uma das mais famosas da China. Depois do templo, atravessei a pé todo o complexo universitário em direcção à praia que fica do outro lado. Últimos dias de Junho de 2013, as aulas e os exames estão a acabar, há novos doutores e doutoras que, academicamente paramentados à inglesa ou à americana tiram retratos e retratos junto ao lago central da sua Universidade. Nas janelas e varandas dos dormitórios dos estudantes há verdadeiros festivais de roupa a secar, mas a Universidade parece funcional, com departamentos e faculdades a ocuparem ora edifícios modernos, ora complexos dos anos vinte do século passado, bem conservados, tudo aparentemente bem equipado.

As praias de Xiamen são um extenso sufoco por causa da quantidade de porcaria e dejectos que se acumulam na areia grossa e que bóiam nas águas mansas do Oceano Pacífico. Ali nem deu para molhar os pés.

Em 1949, quando dos derradeiros combates entre comunistas e nacionalistas, antes da fuga definitiva destes últimos para Taiwan, os soldados de Chiang Kai-shek conseguiram segurar a pequena ilha de Jinmen金門, Kinmen ou Quemoy, no dialecto local, que se situa apenas três quilómetros a leste de Xiamen. Contra todas as expectativas ainda mantêm a ilha na sua posse, o que é motivo de interessada visita por parte dos turistas da República Popular da China que têm logo ali, ao alcance da mão ou de duas ou três braçadas, um território capitalista para comparar com a sua China de Mao Zedong e de Xi Jinping. Acabado de chegar de Taiwan, não fui à pequena ilha nacionalista de Jinmen.

O melhor de Xiamen, para turista ver, espairecer e se surpreender é a ilha de Gulangyu, 鼓浪屿 mesmo em frente do centro da cidade, a menos de um quilómetro de distância que se percorre em sete minutos numa espécie de cacilheiro, sempre apinhado de chineses. A partir de meados do século XIX, depois da abertura do porto de Xiamen ao mundo, os estrangeiros começaram a chegar e fixaram-se sobretudo nesta bonita ilha de Gulangyu, com cerca de dois quilómetros de comprimento por um de largura. A ilha tem água doce, praias, imensa vegetação, tudo o que é necessário para a vida.

Treze países, incluindo a França, a Grã-Bretanha e o Japão aqui estabeleceram os seus consulados e em 1903 Gulangyu passou a ser designada Território Internacional, tendo governo e polícia própria, a segurança era feita pelos shiks que, tal como aconteceu com os indianos que funcionaram como polícia em Xangai, os ingleses foram buscar ao norte da Índia.

Curiosíssima é a arquitectura colonial dos cerca de 500 edifícios que foram construídos em Gulangyu, sobretudo entre 1890 e 1920 e que, restaurados, ainda se conservam. Trata-se de mais um museu a céu aberto, um conglomerado de casas e grandes mansões, de igrejas e jardins, de palácios e hospitais, tudo numa mais do que heterogénea mescla de estilos, nada sínicos, de talhe e arquitectura ocidental, ao modo do que se construía na Europa no início do século XX.

Felizmente, e para satisfazer a multidão de turistas chineses — são tantos que diariamente chegam a atravancar o trânsito pedonal numa ilha que não autoriza veículos motorizados –, Gulanyu tem praias (também não muito limpas) e recantos sossegados onde se pode fruir a natureza, ou a nostalgia do encanto perdido do passado. E tem hotéis e pensões onde apetece ficar, sobretudo a partir de meio da tarde, após a saída da avalanche de turistas chineses.

Então Gulangyu fica por nossa conta e que prazer ouvir um piano — a ilha conta com um estupendo museu com mais de cem pianos e órgãos de várias épocas –, olhar o pôr-do-sol, imaginar, mui ao de leve, as fantásticas histórias dos velhos habitantes de Gulangyu quando chineses abastados se passeavam de riquexó, homens de negócios europeus, de colete, casaco e gravata caminhavam pelas ruelas junto ao mar, e damas chinesas, mais do que formosas nas suas cabaias de brocado e seda, inebriavam a brisa da tarde.

Numa das lojas de rua em Gulangyu, província de Fujian, República Popular da China, fiz uma compra absolutamente inédita em 36 anos de viagens e estadias no mundo chinês, uma peça em massa dura e pesada de plástico, com duas figurinhas, Mao Zedong e Chiang Kai-shek, ambos sentados num banco de jardim, abraçados e ternurentos, sorrindo para as gerações futuras. Malhas que o império tece…

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