Além da Grande Muralha

I Um Pouco de História

A Grande Muralha (长城 Chángchéng), estendendo-se por mais de cinco mil quilómetros entre Jieshi, Liaodong a Leste, e Lintao, atual distrito de Minxian em Gansu, a Oeste, nasceu em 214 a.C por ordem do Primeiro Imperador, Qin Shihuang (秦始皇), o unificador da China, que pôs termo ao período dos Estados Combatentes (战國, 476-221 a.C), fundando a dinastia Qin (秦, 221-206 a.C). Esta teve um propósito histórico-geográfico definido, separar os chineses, sobretudo os sedentários Han (汉), constituídos por uma população agrícola e pacífica, das tribos nómadas das estepes mongóis e da Manchúria.

Ergueu-se como uma enorme fortaleza, com tropas estacionadas em posições estratégicas. Muitos foram os chineses que pagaram com o seu sangue, a construção da muralha e por sinédoque do próprio país em cada guerreiro que caía no combate aos invasores vindos de além da Grande Muralha como os mongóis, que fundaram a dinastia Yuan (元, 1206-1368) ,e os manchus da dinastia Qing (清 1644-1911), apenas para citar os casos de invasão mais persistente.

A Grande Muralha tem o sentido figurativo imediato de inexpugnável, apesar de sabermos que não o foi. Representa ainda, pelo lado positivo, a heroicidade em louvor de todos os que contribuíram para este feito notável, que implicou a proteção da civilização e cultura chinesas por muito tempo, mas, pelo lado negativo, recorda quanto sofrimento e dor implicou a sua construção e a defesa da própria China. Por exemplo na expressão proverbial, aqui traduzida literalmente, “A Construção da Grande Muralha por Qin Shihuang será avaliada pelas gerações futuras” (秦始皇修长城-功过后人评Qínshǐhuáng xiū Chángchéng-gōngguò hòurén píng), surgindo este provérbio associado às lágrimas amargas da Menina Mengjiang (孟姜女Mèng Jiāng Nǚ), que protagoniza uma das mais belas e tristes histórias de amor da China.

Resumindo, a menina de nascimento mágico, já que vem ao mundo dentro de um melão, é partilhada por duas famílias vizinhas muito amigas, a família Meng e a Jiang, do Sul da China, de Songjiang (松江). Ostenta no próprio nome a junção das duas famílias, cresce feliz por entre carinhos e abastanças até certo dia se cruzar com um garboso rapaz, Fan Xiliang (范喜良), estudante dedicado que procurava escapar ao triste destino de recrutamento para trabalhar na construção da Grande Muralha, que já havia sacrificado muitas vidas, dadas as péssimas condições de trabalho. Foi recebido pelo casal Meng e em breve conquistava toda a gente da família, incluindo a Menina Mengjiang. Denunciado por um criado ambicioso que almejava à mão de Mengjiang, vieram os soldados que o forçaram a ir trabalhar para a Grande Muralha. Mengjiang viu-o partir inconsolável e, adiante, conseguiu convencer os pais a visitar o marido para lhe levar agasalhos, a fim de o proteger do agreste Inverno do Norte. Quando chegou à Passagem de Shanghai (山海关), contaram-lhe que o marido sucumbira aos trabalhos forçados, engrossando assim o número de mortos. O seu desgosto foi tal, que o Céu se compadeceu: “De repente, ouviu-se um enorme estrondo, a que se seguiu o desmoronamento de uma parte da muralha, numa extensão de 400 quilómetros, revelando o cadáver do noivo, entre muitos outros” (Wang, Alves, 2009:119). Enfim, o imperador ficou muito zangado com o sucedido, mas logo quis perdoar à donzela, ao ver a sua beleza, transformando-a em concubina. Ela não aceitou e acabou por se deitar ao mar, morrendo afogada.

Se a história nos fala de tanto sacrífico por amor ao país, o provérbio aponta também para uma outra dimensão, em que serão as gerações vindouras a julgar os aspetos positivos e negativos desta obra imperial, na qual os seres humanos são sacrificados à comunidade, ou melhor, ao labor em prol da colectividade. De acordo com a tradição da China, a Grande Muralha deu confiança aos chineses, sobretudo da maioria étnica Han, sentiam-se protegidos por ela, muito embora tivessem consciência do que era pedido a quem a construísse e aos que continuaram pelos séculos a defendê-la, pelo que ela se transformaria num dos símbolos fundamentais da civilização chinesa ao longo dos tempos: para os nacionais, ela representa positivamente a nação e a condição de possibilidade do próprio país; para muitos estrangeiros, figura negativamente a China como um espaço fechado, hermético, cujos habitantes são muito difíceis de entender.

2 Literatura relativa à Grande Muralha

Note-se o sentimento de muralha que nos é transmitido por Wang Wei ( 王維701-761) poeta, pintor, calígrafo, músico e eremita, traduzido por António Graça de Abreu em 1993. Na obra intitulada Poemas de Wang Wei, pode ler-se “Subindo à torre da muralha de Hebei”, um dos troços da Grande Muralha (Abreu, 1993: 46/47):

Na aldeia, sobre a falésia de Fu

o Pavilhão dos viajantes, entre bruma e nuvens.

Do alto da muralha, contemplo o sol poente,

o rio distante espelha as montanhas verdes.

Nas águas uma luz brilha em barca solitária,

anoitece, pescadores e aves de regresso.

Adormecem os espaços do céu e da terra

e meu coração em paz, como o grande rio.

登河北城樓作

井邑傅巌上

客亭雲霧間

高城眺落日

極浦映蒼山

岸火孤舟宿

漁家夕鳥遠

寂寥天地暮

心與廣川閒

A paisagem do alto da muralha transmite uma sensação de imenso bem-estar e paz ao poeta. Este sente-se bem e protegido, embora nunca utilize a primeira pessoa, como é de regra na poesia clássica chinesa, mas nós podemos intuir o seu sentir por meio dos traços que empresta à paisagem, ele é como a barca solitária deslizando suavemente pelo rio, e todo este cenário é recolhido, como que cuidado atentamente por aquele espaço fechado, onde até há lugar para os viajantes poderem descansar, eles próprios em movimento e transformação como o rio, que flui incessantemente sob o olhar fixo e vigilante das pedras que constituem a muralha.

Já Li Bai ( 李白,701-762), o grande contemporâneo de Wang Wei, também traduzido por António Graça de Abreu, prefere destacar o simbolismo guerreiro da Grande Muralha em “Lutámos a sul das muralhas” (战成南)1 (Abreu, 2021: 184/185) : a sua história de violentas batalhas, os Qin que a construíram, os Han e os imensos combates, o sangue dos soldados, os cadáveres, terminando com o pensamento, citação do capítulo 31 do Clássico da Via e da Virtude (《道德經》) obra fundante do Taoismo atribuída a Laozi (老子):

Para quê generais sem exército?

Abomináveis e cruéis as guerras!

O homem de bem só obrigado as faz.

(士卒涂草莽,将军空尔为。

乃知兵者是凶器, 圣人不得已而用之。)

Pela mesma linha vociferante contra guerras e muralhas se ergue Du Fu (杜甫, 712-770), outro dos expoentes poéticos da China, ainda traduzido por António Graça de Abreu, muito embora reconheça na Grande Muralha um dos principais marcos da civilização chinesa e por isso a refere, lingando-a a uma das grandes festividades do calendário lunar chinês, a da Pura Claridade em poema homónimo ( 清明 Qīngmíng), no qual o poeta se declara cansado, triste, velho, doente em viagem pela “Grande Muralha”, pelo “reino de Qin”, pelo “Império Han”. Neste poema, a imponente construção a simboliza a memória coletiva e a ligação aos antepassados, pelo que apresento a segunda parte do mesmo (Abreu, 2015: 464/465):

O regresso pela estrada da Grande Muralha púrpura,

Um dos meus acende o lume com ramos verdes do ácer.

Nas vilas do reino de Qin, pavilhões, pagodes entre flores e fumo,

No império Han montanhas e rios de brocado,

Chuva da Primavera, mais cheio o lago Dongting,

Claros os trevos de água, triste o coração do velho de cabelos brancos.

(旅雁上雲歸紫塞

家人鑽火用青楓

秦城耬閣烟花裏

漢主山河錦繡中

風水春來洞庭闊

白頻愁殺白頭翁

Foram rolando os tempos até chegarmos ao aforismo hoje por todos os chineses conhecido, aqui numa tradução direta: “Só é um verdeiro Han, quem foi à Grande Muralha” (不到长城非好汉Bù dào Chángchéng fēi hǎohàn). Este surge no poema de Mao Zedong (毛泽东) escrito em outubro de 1935, significando que um verdadeiro chinês, representado pela maioria étnica Han, tem espírito de luta, é herói, já que é capaz de percorrer passo a passo os cerca de cinco mil quilómetros de muralha, que se estende no Norte da China, sendo este e outros feitos de carácter sobre-humano que o distinguem, em prol de ideais maiores. Não é inocente a alusão à Grande Muralha, já que constitui historicamente o marco de uma nova era, a de uma China unificada.

《清平乐·六盘山》

天高云淡,望断南飞雁。

不到长城非好汉,屈指行程二万。

六盘山上高峰,红旗漫卷西风。

今日长缨在手,何时缚住苍龙?

Eis a minha tradução:

Serenata à Alegria Pacífica na Cordilheira Liu Pan2

No Céu claro surgem nuvens auspiciosas,

à distância, vislumbram-se gansos rumo ao Sul.

Só é herói quem percorra de lés a lés a Grande Muralha.

nos picos altaneiros da Cordilheira Liu Pan,

Bandeiras vermelhas agitam-se ao vento Oeste.

Agora que a Revolução é tecida pelo Partido comunista,

não será altura de enrolar o Partido Nacionalista?

A Grande Muralha, símbolo da defesa do país, contra forças estrangeiras e/ou nacionais aliadas a estrangeiros, teve lugar de destaque durante o Maoísmo mais exacerbado. Hoje em tempos de Reforma e Abertura, que foram inaugurados por Deng Xiaoping (邓小平,1904-1997), o presidente da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês entre 1978 e 1983, lançou o plano de Reforma e Abertura da China (改革开放Gǎigé kāifàng), e manifestou uma vontade política muito diferente da expressa por Mao Zedong. Esta linha foi continuada por Xi Jinping (1953 -), nomeadamente no programa da Nova Rota da Seda (新丝绸之路 Xīn sīchóu zhī lù), que se viria a impor com a subida deste ao poder em 2013. É então introduzido um princípio directivo, “Uma Faixa, Uma Rota ” (一带一路Yīdài yīlù) que para se concretizar integralmente depende do sucesso de modernizações e de invenções, bem como da ligação entre a China e o resto do mundo, por onde se escoam pessoas e se comunicam conhecimentos, através de corredores terrestres e marítimos.

É neste novo tempo que o poeta Yao Jingming (姚京明, 1958 – ), cujo nome artístico é Yao Feng (姚風), nascido em Beijing, mas a viver há muitos anos em Macau, onde é professor catedrático da Universidade de Macau, se tem distinguido por uma vasta obra poética e pela ligação entre as culturas e línguas portuguesa e chinesa, o que lhe valeu prémios e distinções como a Ordem Militar de Santiago da Espada. Na sua poesia mostra-se filho de um novo tempo, porém sem esquecer a importância do peso da história para a civilização chinesa. Em 長城隨想及其他, obra traduzida para inglês em 2014 por Kit Kelen (客遠文), Karen Kun (管婷婷) e Penny Fang Xia (房霞), sob o título de Great Wall and Other Poems, dedica alguns poemas inteiramente à Grande Muralha, logo no início do livro, recordando a sua importância enquanto esforço coletivo, que exigiu tanto aos chineses enquanto pessoas, conduzindo-os ao sacrifício extremo de pagaram com a sua própria vida a manutenção do país. Após lembrar repetidamente o papel deste importante símbolo nacional na história, na guerra e como monumento vivo à união nacional, e ao sofrimento causado nos que o construíram e por ele lutarem, termina com um poema muito bonito, numerado a 8, sinal de prosperidade na China e de infinito em todo o lado, onde se coloca junto aos arautos do novo tempo, que ultrapassam a Grande Muralha rumo às portas abertas, à liberdade (Yao, 2014: 25) e ao sentimento de pertença ao mundo inteiro, sem muros nem quaisquer divisões:

太陽脫掉夕陽

再次升起

我醒来了

從群山中醒来

從石頭中醒来

從一個個夢境中醒来

從一個個“我”中醒来

我再次开始行走

沿着這條起伏的大道

向著山海關

向著東方

我要走出長城

我要走向大海

走向遼闊自由的世界

Aqui fica a minha tradução para este belíssimo poema

O sol deita-se

Para de novo se erguer

Eu despertei

De cada cordilheira acordo

De cada pedra acordo

De cada sonho acordo

De todos os eus acordo

E torno a avançar

Acompanhando as voltas do caminhar

Rumo à Passagem de Shanhai3

Rumo ao Oriente

Quero ir além da Grande Muralha

Quero ir em direção ao mar

E ao vasto mundo da liberdade

Referências Bibliográficas

Graça de Abreu, António (Trad.) 1993. Poemas de Wang Wei. Macau: Instituto Cultural de Macau.

__________________2021. Cem Poemas de Li Bai 李白诗一百首. Póvoa de Santa Iria: Lua de Marfim.

__________________2015. Poemas de Du Fu 杜甫詩選. Macau: Instituto Cultural da R.A.E. de Macau.

Baidu. 2023. “不到长城非好汉

”https://baike.baidu.com/item/%E4%B8%8D%E5%88%B0%E9%95%BF%E5%9F%8E%E9%9D%9E%E5%A5%BD%E6%B1%89/3556008, acedido a 14 de novembro de 2023.

Wang Suoying, Ana Cristina Alves. 2009. Contos e Lendas da Terra do Dragão: Lisboa: Caminho.

Yao Feng (姚風).2014. 《長城隨想及其他》Great Wall and Other Poems. Tradução de Kit Kelen(客遠文), Karen Kun (管婷婷) e Penny Fang Xia (房霞) .

Respeita-se o registo escrito em que nos são oferecidos os poemas, de modo que este artigo apresenta poemas em chinês simplificado e tradicional, de acordo com os textos originais.

Cordilheira Liupan no Norte da China.

Passagem de Shanhai no Extremo Oriental da Grande Muralha.

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