Estudo | Essência da comida macaense está a ser “diluída”

A comercialização ligada ao turismo, a redução da comunidade e as mudanças geracionais estão a fazer com que a autêntica cozinha macaense esteja a caminho da diluição. A tendência é indicada num estudo publicado na revista Journal of Tourism and Cultural Change

 

A comida macaense tradicional está em processo de diluição devido a várias alterações pós-era colonial e até o turismo contribui para ameaçar “esta arte culinária”. As conclusões são de um artigo publicado na revista científica Journal of Tourism and Cultural Change, com o título “An anatomy of the dilution of a local cuisine in a post-colonial destination – evidence from Macao” (A anatomia da diluição da cozinha local num destino pós-colonial – o caso de Macau, em português), da autoria dos académicos Ren Lianping (Instituto de Formação Turística), Henrique Fátima Boyol Ngan (IFT), Fiona X. Yang (Universidade de Macau), Ka Kui Yan (Universidade Politécnica de Hong Kong) e Rob Law (Universidade de Macau).

Segundo o artigo, algumas das principais características da cozinha macaense resultam de ser uma “fusão de culturas”, ter por base receitas caseiras e uma forma muito característica de ser apresentada e cozinhada, transmitida ao longo dos anos de geração em geração. Contudo, as características da gastronomia macaense são igualmente identificadas como vulnerabilidades, para os autores.

Uma das dificuldades apontadas na preservação da comida macaense, tem por base o facto de estar muito ligada à comunidade macaense. “Esta gastronomia, que originalmente se baseia em receitas caseiras/familiares, está intimamente ligada à comunidade macaense. As pessoas que não são macaenses têm um conhecimento muito limitado da verdadeira essência desta gastronomia, o que faz com que seja muito difícil preservar e transmitir a cozinha macaense, ao contrário do que acontece com outras gastronomias populares”, é justificado.

A redução da população macaense é igualmente identificada como factor que contribui para a ausência de uma verdadeira “força de renovação” e para o acelerar da diluição de “diversas tradições e receitas”. “As novas gerações, que não memorizaram a essência da comida macaense tradicional, também enveredam pelo campo das inovações. Esta situação faz com que a diluição desta gastronomia se acelere”, é explicado.

Outro dos vectores da desvirtualização da gastronomia macaense é o turismo. Por um lado, é indicado que apesar de ser uma das grandes atracções do território, muitos dos turistas não têm conhecimento sobre a comida, o que faz com que lhes possam ser servidas refeições longe do que é a comida tradicional. Por outro lado, com os restaurantes orientados para gerar lucros, as receitas tendem a ser alteradas de acordo com as opiniões dos clientes servidos, o que no entender dos autores até produz “alterações indesejadas” ao nível das receitas e que conduzem a uma ameaça à autenticidade. “A comercialização da comida macaense é uma das principais razões que tem diluído a imagem e o sabor desta comida”, é vincado.

Caminho para a protecção

Apesar do cenário de preservação da comida autêntica apresentar vários desafios, os autores indicam formas de preservar a essência da comida macaense.

Segundo uma das formas apresentadas, e que já começou a ser praticada, as associações locais e a restauração devem cooperar para documentar ao máximo a maneira de cozinhar e apresentar os pratos macaenses, para manter viva a memória desta gastronomia.

O estudo indica também que, apesar da população macaense estar a diminuir, esta tem apresentado uma grande capacidade de regeneração fundamental para a preservação das suas características e gastronomia. Neste sentido, é deixada a esperança de que a comunidade possa desenvolver mais actividades com vista à preservação da sua comida, como estudos ou seminários.

Além de poder constituir uma ameaça, o turismo também pode ser a salvação. Os autores sugerem que se siga o exemplo do povo Cajun, descendentes da primeira vaga de colonizadores na América do Norte e que no século XVIII foi expulso do Canadá. Porém, este povo conseguiu estabelecer-se no Louisiana, no sul dos EUA, e através do turismo conseguiu preservar não só a sua gastronomia, mas também a sua identidade. “O palco do turismo é uma arena para a expressão de diferenças étnicas, e para ajudar a perpetuar as fronteiras étnicas, que de outra forma desapareceriam devido à aculturação”, é apontado.

Finalmente, é destacado que a nomeação de Macau pela UNESCO como uma cidade gastronómica é um forte sinal de confiança para a protecção da comida macaense e que pode ser utilizado para manter a sua essência.

O artigo foi escrito com base em entrevistas com donos e cozinheiros de restaurantes com comida macaense. Além disso, os investigadores recorreram a vários documentos sobre as tradições e comida macaense.

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