50 anos da morte de Picasso

Onde estava no dia 8 de Abril de 1973? Lembrei-me disto a propósito de Baptista Bastos e do Abril do ano que se seguiria. Ora, nós estávamos a crescer, pelo menos os da minha geração, muitos já iam avançados, outros não sabem, e muitos ainda hão de lembrar. Estávamos exatamente no dia da morte de Picasso […] sim, ele é um acontecimento como qualquer revolução, intempérie natural ou mesmo sobrenatural plasmado nesta nossa humanidade. Este, ainda por cima lindíssimo ser, nasceu lá para os lados das boas heranças peninsulares: Málaga, na Andaluzia, e nunca é demais vincular tal facto: é até bom lembrar a boa origem do sul, que por lá nasceu o melhor da Península Ibérica.

Por quê? Não sei. Talvez pressinta que nada há de melhor que estes mundos atravessados por povos tão morenos como luas, tocadores de cítara, amáveis e culturais, fecundos e macios. São católicos há tão pouco tempo na escala da civilização que nunca enfiaram bem o “barrete”, mas prodigalizaram-no à sua maneira tão terna e trágica! Afinal, é este Sul que nunca parou de jorrar as lendas mouras, a errância cigana, os judeus e os árabes, o vinho e as laranjas, a liberdade e a vida, que sempre nos trouxe a graça dos bem-nascidos.

Não se pode escrever acerca de Picasso sem uma humilde reverência e alguma natural intimidação, afinal falamos de um prodígio que marcou a arte do século vinte como nenhum outro e, por instantes, pensamos que ele tem qualquer coisa que nos escapa como se abordássemos a fonte por onde os feitiços nascem, a razão se esconde, e a prodigalidade acontece. A sua mãe dizia que, quando rapazinho, “ele era um anjo e um demónio de beleza”, ninguém se cansava de olhar para ele. Já o seu pai era um professor de desenho que muito cedo se apercebera da genialidade deste filho, passando-lhe os pincéis, e mais tarde todos os homens seriam esse pai destronado na versão do homem que o filho viria a talhar.

Ele é tido como alguém de muito generoso, preocupando-se com os outros, fazendo que um amigo dissesse que ele deu muitos mais quadros do que vendeu, mas Picasso era também um homem duro por necessidade de se autoproteger, e não perdoava faltas que talvez lhes parecessem absolutamente inestéticas. Mas estamos ainda nos primórdios e Espanha parece cada vez mais atarracada mesmo quando entra na Real Academia das Belas Artes, e vai então para Paris. Corria o ano de 1900. Passa da Fase Azul, passa para a Fase Rosa e rápido entra no Cubismo. O geométrico andaluz elimina o paisagístico e entra na sua herança cultural mais remota. Acabara-se o dom maneirista!

Mas Paris não é uma festa nestes primeiros anos ao contrário do romance de Hemingway e Picasso conhece a grande tribulação – mas Picasso é Picasso – e com seu amigo Max Jacob, que o acompanha no início da jornada, vai ensinar-lhe uma grande lição no meio dessa logística desesperança: aconselha-o a pôr de lado as suas lunetas e deixar de vestir-se como um lojista, dizendo-lhe: — Vive a tua vida como um poeta! Aqui sentimos-lhe a estirpe e a vocação de um anti-miserabilista, um certo garbo e lindíssima definição para neutralizar de vez o temor da sobrevivência. Tudo isto devemos reter.

«Nessa época, não nos preocupámos senão com o que fazíamos. E todos os que faziam se reuniam entre si. Apollinaire, Max Jacob, Salmom… Que aristocratas!» E, como a velha frase de Shakespeare «não há lembrança mais feliz que o tempo feliz na miséria», a morte de Apollinaire põe um fim definitivo à época extraordinariamente produtiva do «grupo Picasso». Era a Primeira Guerra Mundial. Prossegue. Vamos encontrar então mais tarde um Picasso mundano, bastante mais rico, frequentador de serões, dizendo: conduzir um carro é péssimo para os pulsos de um pintor. No seu “smoking” contrata também um motorista. Mas Picasso, rico ou pobre, nunca será um burguês. Já estávamos na Segunda Guerra Mundial, e Matisse afirma que se todos tivessem feito o seu trabalho como ele e Picasso, nada disso teria de novo acontecido. Picasso adere ao Partido Comunista em 1944 e conservará o seu cartão até à sua morte. No entanto a sua lúcida natureza de criativo insurgia-se contra o trabalho artístico poder ser inscrito nas lutas sociais, e dizia que um Rimbaud na Rússia seria tarefa impossível.

Picasso foi um ser humano devorador, pois que a sua noção de vida não era dada pelo cálculo da partilha ou de uma qualquer equidistância para a fastidiosa felicidade, por isso os seus amores foram sugados até ao tutano, mas creio com sinceridade na sua vocação de amante ilimitado, de tal forma que tudo brotou como alimento dado pelos efeitos das suas paixões. Tudo nele vibrou na presença da mulher que em seu tempo amou. Casou-se cinco vezes, por último comprou um castelo no sul de França, instalou-se com Jacqueline Roque, e o efeito foi como sempre: surpreendente. Picasso arde-nos entre os dedos, ele teve vida longa, ciclos diferentes, múltiplas vidas, e em todas elas encontramos o Avatar, aquele trabalhador incansável, o homem justo, o ser raríssimo, a treva e a luz, e a fecunda necessidade de se livrar do medo.

Nasceu a 25 de Outubro de 1881.

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