O Preto e o Negro Chineses

No Ano do Coelho de Água, que dominará em 2023 e afectará particularmente nativos deste signo entre 22 de Janeiro de 2023 e 10 de Fevereiro de 2024, estamos sob o domínio do Coelho Yin ( 陰/阴兔Yīntù) do elemento Água, cuja cor é o preto.

Começando pelo sítio certo. Há uma ligação ao princípio feminino Yin (陰/阴 Yīn), que se sabe ser complementar do princípio masculino Yang (陽/阳 Yáng), representando o masculino, do ponto de vista caligráfico, o lado solar da encosta, e o feminino, a sua parte nebulosa ou sombria. O Yin, enquanto propiciador de uma tabela de categorias, é receptivo, pesado, escuro, opaco e lunar, sendo complementar do Yang Criativo, leve, claro, transparente e solar.

No Clássico das Mutações, se pensarmos em termos de cor, surge ligado ao hexagrama 2 do feminino e receptivo, à mãe Terra (坤 kūn), que tem como representante cromático o preto, mas uma vez que este animal se associa também à Água (水 shuǐ), carrega consigo as características do abissal e perigoso, que nos são transmitidas no hexagrama 29 (坎卦Kǎn Guà), numa conjugação dos dois trigramas da Água, na qual duas linhas Yin receptivas têm ao centro uma linha Yang criativa ou, numa outra leitura possível, são atravessadas por uma linha Yang, o que implica um mergulho nas profundezas escuras do oceano para nele conseguir captar a luz. Ou ainda, numa leitura antropológica, a linha Yang será a alma no interior do corpo, indicando o Juízo deste hexagrama: “O Abissal repetido. Se fores sincero, alcançarás o sucesso com o teu coração. E tudo o que fizeres, será bem-sucedido”/ 習坎,有孚,維心亨。行有尚。 (Wilhelm, 1989:115; 張 84: 127).

Neste hexagrama confronta-se o perigo com o bom exemplo da água, que flui encontrando o melhor caminho sem desafiar os obstáculos, por envolvimento, penetração e diluição. Quanto ao Coelho, regente deste ano, de acordo com a astrologia chinesa, é um animal sensível, pacífico, familiar, diplomático e, neste ciclo, sábio, advindo-lhe esta última virtude da ligação ao elemento Água. Ao indagar-se pelas características da Água, de acordo com a divisão dos cinco elementos, realizada na Medicina Tradicional Chinesa, obtemos que pertence à Noite; ao Inverno, enquanto estação do ano; ao Frio, como categoria climatérica; à Saliva, a título de fluído; aos Ossos, para os tecidos; aos Genitais, como orifício; aos Rins, na categoria de órgão; e ao Salgado na qualidade de sabor. É da água, portanto, o domínio da noite, das profundezas, da escuridão, intimamente ligadas, por um lado, ao preto, por outro, ao negro. Preto e negro não significam o mesmo, embora apontem para a mesma referência cromática.

Preto, diz-se em chinês hei (黑hēi), opõe-se à cor branca, bai ( 白bái). Do ponto de vista caligráfico, o preto é uma chama (炎 yán) sob uma janela ou chaminé, à qual vai escurecendo com o seu fumo ou fuligem. O preto é então o traço complementar do fogo, os vestígios e as marcas da chama nas paredes, a sua sombra. Está intimamente associado à existência concreta. Na língua chinesa, é empregue a título de oposto do branco em heibai (黑白 hēibái), “preto e branco” no sentido de contraste, do certo e errado, onde o positivo surge do lado do branco e o negativo do lado do preto, mas também para caracterizar as cores concretas, incluindo de pessoas e etnias, sendo os africanos apelidados heiren (黑人hēirén), tal como aos americanos e ingleses lhes chamam Black people.

O preto é, ainda, empregue para definir o lado sombrio e marginal da existência, por exemplo, em black market, aquele ao qual os portugueses catalogam de “mercado negro”, em chinês, heishi (黑市hēishì), sendo também pretas as sociedades criminosas, as heishehui (黑社会hēishèhuì), bem como pessoas extremamente ambiciosas, engenhosas e até maliciosas, dessas afirma-se no calão chinês que possuem “coração preto”黑 (心) (李、顏1998:90). Pelo que também as palavras enganosas se dizem “palavras pretas” ou heihua (黑話/话), seguindo a mesma lógica, há um “humor preto”, ao qual os portugueses chamariam “humor negro”, quer dizer, heise youmo (黑色幽默hēisè yōumò ).

No que se refere ao dia-a-dia da língua chinesa, vê-se então que o preto está frequentemente associado ao mundo marginal, o das seitas, da economia paralela, das pessoas extremamente ávidas, que não olham a meios para atingir os fins, desregradas e até das que manifestam as forças do mal heishili (黑势力 hēishìlì); mas não se pode esquecer o lado positivo, no qual surge a terra preta, denominada heitu (黑土hēitǔ) e a noite negra, em chinês, heiye (黑夜 hēiyè).

Chegou a altura de analisar a distinção entre o preto e o negro. Este último assume uma dimensão filosófica que não é atribuída à cor preta, telúrica e basilar. O negro, do ponto de vista elemental, projecta para uma zona misteriosa das profundezas oceânicas, ou ainda das alturas celestiais, quando se visualiza uma luminosa noite negra ou, em máxima complementaridade, um imenso e misterioso buraco negro.

A pérola negra é uma das metáforas preferidas dos taoistas, nomeadamente Zhuangzi (莊子/庄子), o segundo maior filósofo desta linha, que viveu durante o Período dos Reinos Combatentes entre c. 396-286 a.C. Na obra homónima, 《庄子》 procurou transmitir o núcleo dos seus princípios filosóficos recorrendo a metáforas e parábolas de grande valor artístico, da melhor literatura de todos os tempos. O filósofo emprega no Livro 12 a imagem da Pérola Perdida para se referir ao Tao (道 Dào) , sendo este descrito como uma pérola misteriosa, caso se prefira, mágica, que tudo pode transformar sem se perceba nem o seu saber, nem como o realiza e muito menos porque razão o faz tão espontaneamente, deixando todos surpreendidos, a começar pelo Imperador Amarelo (黄帝 Huángdì), o símbolo da sabedoria discursiva, clara, luminosa e disciplinada, a complementar, portanto, a mais enaltecida pelos taoistas, a lunar, difusa, aquática e intuitiva, enfim a verdadeira sabedoria que se encontra a um nível numenal e, por isso, escapa por completo ao entendimento humano. Conta Zhuangzi:

O Imperador Amarelo quando se dirigia para o Norte das Águas Vermelhas, subiu à Montanha Kunlun e olhou na direção Sul. Ao regressar a casa, percebeu que tinha perdido a sua pérola negra (玄珠 xuánzhū). Enviou então o conhecimento à procura dela, mas ele não a conseguiu descobrir; mandou de seguida a visão em seu encalço, que não a encontrou; ao que se seguiu o discurso que também não a achou. Por fim, encarregou o Nada desta missão, que a encontrou. Ao que o Imperador Amarelo exclamou: “Que estranho! Só o Nada descobriu a pérola cor-da-noite”.

(黄帝游乎赤水之北,登乎昆仑之丘而南望。还归,遺其玄珠。使知索之而不得,使离朱索之而不得,使喫诟索之而不得也;乃使象罔,象罔得之。黄帝曰:“异哉!象罔乃可以得之乎!“ ) (Zhuangzi, 1999, XII: 4)

Concluindo, o preto assume, tanto em chinês como em português, um sentido filosófico importante quando é elevado a negro, desapegando-se assim da realidade imediata, concreta e material. Adquire então uma forma profunda, misteriosa e mágica que o colocam em ligação espontânea e directa com o mundo numenal.

Liberta-se de toda a carga fenomenal de que é investido no mundo que nos rodeia, também conhecido em algumas filosofias como mundo das ilusões e da aparência. Há portanto para o preto duas dimensões distintas, uma em que é uma cor vulgar ao mesmo nível das outras, partilhando das acepções positivas e negativas que lhe são atribuídas no mundo chinês, e não só; outra misteriosa, abissal em que tudo pode, como representante duma dimensão transcendente, na qual é portador das energias primordiais, sendo uma espécie de “cinturão negro” marcial, uma prodigiosa manifestação energética na vida, que se eleva aos céus ou mergulha nas profundezas misteriosas, para resolver dificuldades e transpor os obstáculos de um modo aparentemente fácil, munido da simplicidade modelar que lhe advém da sua ligação ao princípio Yin e à sabedoria da Água.

 

Bibliografia

Alves, Ana Cristina. 2005. Sabedoria Chinesa. Cruz Quebrada: Casa das Letras/ Editorial Notícias.
Jorge, Cecília, Beltrão Coelho. 1988. Medicina Chinesa. Em Busca do Equilíbrio Perdido. Macau: Instituto Cultural de Macau/ Ciclo dos Leitores.
Li Shujuan, Yan Ligang . Ed. (李淑娟, 颜力鋼). 1998. Chinese-English Dictionary of Modern Slang of China. 《漢英中國新俚語》. 香港:海峰出版社.
Merton, Thomas. 1999. A Via de Chuang Tzu. Petrópolis: Editora Vozes.
Shi Zhengyu. 1997. Picture Within a Picture. An Illustrated Guide to the Origens of Chinese Characters. Beijing: New World Press
Wilhelm, Richard. 1989. I Ching or Book of Changes, versão inglesa de Cary F. Baynes, Prefácio de C.G Jung, 4ª ed. London: Arkana Penguin Books.
張中鐸(編)《易经提要白話解》台南市:大孚,民84.
Zhuangzi (《庄子》). 1999. Vol. I e II Tradução para Inglês de Wang Rongpei (汪榕培) e para Chinês moderno de Qin Xuqing e Sun Yongchang. (秦旭卿、孙雍长) .Hunan, Beijing: Hunan People’s Publishing House, Foreign Language Press

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