Diplomacia | China apadrinhou restabelecimento das relações diplomáticas entre Irão e Arábia Saudita

Para surpresa geral da comunidade internacional, a diplomacia chinesa conseguiu mediar na passada sexta-feira o que parecia impossível: o restabelecimento das relações entre a Arábia Saudita e o Irão. O acordo entre as duas potências do Médio Oriente foi assinado na China, onde as duas partes mantiveram negociações com o apoio de Pequim, segundo um comunicado conjunto dos três países

 

“A República Islâmica do Irão e o Reino da Arábia Saudita decidiram retomar as relações diplomáticas e reabrir as suas embaixadas no prazo de dois meses”, pode ler-se no inesperado comunicado, assinado em Pequim, que deixou o Médio Oriente na expectativa de uma diminuição dos conflitos na região.

As conversações para retomar as relações diplomáticas foram conduzidas em Pequim de 6 a 10 de Março, de acordo com uma declaração trilateral da China, Arábia Saudita e Irão, informou a Xinhua. “Tanto a Arábia Saudita como o Irão manifestaram o seu apreço e agradecimento ao Iraque e a Omã por acolherem múltiplas rondas de diálogo entre 2021 e 2022, e aos líderes chineses e ao governo chinês por acolherem, apoiarem e contribuírem para o sucesso das conversações”, lê-se na declaração final.

O papel que a China desempenhou na ajuda aos dois países, que são velhos rivais, suscitou elogios generalizados após o seu anúncio, com uma esperada excepção. Segundo Pequim, “isto mostra que a filosofia diplomática chinesa, que visa promover a paz e o desenvolvimento, é muito mais apelativa do que a táctica de alguns países de alimentar o confronto para expandir o seu próprio domínio político na região do Golfo”.

“Esta é também uma das melhores práticas no âmbito da Iniciativa de Segurança Global (ISG) que a China propôs e que poderia ter implicações de grande alcance e um efeito demonstrativo noutras regiões que enfrentam problemas semelhantes de confrontação e conflito”, acrescentaram fontes próximas da diplomacia chinesa.

Já o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da China afirmou no sábado que “a China espera ver uma comunicação e um diálogo mais estreitos entre a Arábia Saudita e o Irão e está pronta a continuar a desempenhar um papel positivo e construtivo na facilitação de tais esforços”.

“O seu diálogo e o acordo estabelecem um bom exemplo de como os países da região podem resolver disputas e diferenças e alcançar uma boa vizinhança e amizade através do diálogo e da consulta. Isto ajudará os países regionais a livrarem-se da interferência externa e a tomarem o futuro nas suas próprias mãos”, disse o porta-voz, observando que a China continuará a contribuir com os seus conhecimentos e propostas para a realização da paz e tranquilidade no Médio Oriente.

Ao mesmo tempo que felicita as duas partes por terem dado um passo histórico em frente, Wang Yi, director do Gabinete da Comissão dos Negócios Estrangeiros do Comité Central do Partido Comunista da China (PCC), disse que a China apoia as duas partes a darem passos firmes, tal como acordado no acordo, para trabalharem para o futuro brilhante comum com paciência e sabedoria. “Como amigo de confiança dos dois países, a China continuará a desempenhar um papel construtivo”, disse Wang.

Hussein Ibish, um académico residente no Instituto dos Estados Árabes do Golfo em Washington, afirmou numa entrevista à CNN que “o facto de ter sido acordado em Pequim é muito significativo para a China e a sua ascensão como actor diplomático e estratégico na região do Golfo”. “Isto parece reconhecer o papel único da China em ser capaz de intermediar as relações entre Teerão e Riade, entrando numa posição que tinha sido anteriormente ocupada por países europeus, se não pelos Estados Unidos, e isto não será particularmente agradável para Washington”, disse Ibish.

Redução de conflitos

O acordo entre o Irão e a Arábia Saudita para a retoma dos laços diplomáticos pode ter efeitos a longo prazo em todo o Médio Oriente e não só, reduzindo as hipóteses de conflitos armados entre rivais regionais. Uma análise da agência Associated Press (AP), sobre os países afectados por este acordo, refere o Iémen, país onde quer a Arábia Saudita, quer o Irão, estão profundamente envolvidos na sua longa guerra civil.

A Arábia Saudita entrou no conflito em 2015, apoiando o Governo exilado do país, enquanto o Irão apoiou os rebeldes houthis, que em 2014 tomaram a capital, Sanaa. Diplomatas têm procurado uma forma de encerrar o conflito, que gerou um dos piores desastres humanitários do mundo e que se transformou numa guerra por procuração entre Riade e Teerão. O acordo saudita-iraniano pode dar um impulso aos esforços para acabar com o conflito.

Já no Líbano, há muito que o Irão apoia a poderosa milícia xiita libanesa Hezbollah, enquanto a Arábia Saudita apoia os políticos sunitas do país. O alívio das tensões entre Riade e Teerão pode levar os dois a procurarem uma reconciliação política no Líbano, que enfrenta um colapso financeiro sem precedentes.

Por outro lado, na Síria, o Irão apoiou o Presidente sírio, Bashar al-Assad, na longa guerra civil deste país, enquanto a Arábia Saudita apoiou os rebeldes que procuram derrubá-lo. No entanto, nos últimos meses, principalmente após o terremoto que devastou a Síria e a Turquia, as nações árabes aproximaram-se de Al-Assad. O acordo diplomático desta sexta-feira pode tornar mais apelativo para Riade interagir com Al-Assad.

O americano intranquilo

No ‘outro lado do mundo’, o Governo norte-americano, liderado por Joe Biden, não quer acreditar no que se passou sob “as suas barbas” e sublinha que está “céptico” de que o Irão irá honrar os seus compromissos e garantem que estarão atentos. O papel da China na mediação feriu o papel dos EUA na região e, no que se refere à batalha entre Washington e Pequim pela influência na região e não só. Temerosas, as autoridades norte-americanas realçam que “não está claro” se os esforços chineses serão bem-sucedidos.

O acordo com a Arábia Saudita pode fornecer a Teerão novos caminhos para contornar as sanções, depois de já ter aprofundado laços com a Rússia e até armado Moscovo com ‘drones’ de ataque utilizados contra a Ucrânia.

Já na Arábia Saudita, o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman pretende gastar dezenas de milhões de dólares em megaprojetos para reformular o reino rico em petróleo perante as ameaças impostas pelas alterações climáticas. Preocupações com ataques e conflitos regionais apenas colocaria esses projectos em dúvida.

Sem “agenda escondida”

Entretanto, perante as dúvidas e o mal-estar dos EUA, a China garantiu que o seu papel no restabelecimento das relações diplomáticas entre o Irão e a Arábia Saudita não tem uma agenda escondida e que não pretende preencher um vazio no Médio Oriente.

“A China não persegue qualquer interesse egoísta” e vai continuar a apoiar os países do Médio Oriente “a resolver as suas diferenças através do diálogo e em consultas para promover a paz e estabilidade duradouras em conjunto”, lê-se numa declaração colocada no site do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

A posição da China surge depois de ter mediado a reaproximação entre os dois países, e na sequência de preocupações de vários analistas e países, como os Estados Unidos, sobre as reais intenções da mediação chinesa.

A intervenção chinesa no reatamento das relações diplomáticas entre os dois países, incluindo a reabertura de embaixadas depois de sete anos, foi vista como uma grande vitória diplomática da China, com os países do Golfo a considerarem que os Estados Unidos reduziam a sua intervenção na região.

“Respeitamos o estatuto dos países do Médio Oriente como senhores desta região e opomo-nos à concorrência geopolítica no Médio Oriente”, lê-se ainda na declaração. “A China não tem intenção e não vai procurar ocupar o chamado vazio ou erguer blocos exclusivos”, afirma-se ainda, numa aparente referência aos Estados Unidos.

A diplomacia chinesa, no Médio Oriente, é encarada como um parte neutra, com fortes laços quer ao Irão, quer à Arábia Saudita, bem como com Israel e a Autoridade Palestiniana.

ONU, Europa e países do Golfo saúdam o acordo

A União Europeia (UE) considerou positivo o acordo para o restabelecimento de relações diplomáticas entre o Irão e a Arábia Saudita e espera que possa contribuir para a estabilização do Médio Oriente. “A UE saúda o acordo para o restabelecimento das relações diplomáticas entre o Reino da Arábia Saudita e a República Islâmica do Irão e aguarda agora a sua implementação. Uma vez que ambos são fundamentais para a segurança da região, o restabelecimento das suas relações bilaterais pode contribuir para a estabilização da região como um todo”, declarou, em comunicado, o Serviço Europeu de Ação Externa.

A UE, que reconheceu “os esforços diplomáticos que levaram a este importante passo”, destacou que a promoção da paz e da estabilidade, bem como a redução das tensões na região, são prioridades do bloco comunitário e declarou-se “preparada para estar em contacto com todos os actores da região de forma inclusiva e com total transparência”.

Também o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, saudou o acordo e elogiou a China, Omã e o Iraque por promoverem as conversações. Países como o Qatar, os EAU, Iraque, Omã, Líbano, Bahrein, entre muitos outros, também expressaram sentimentos positivos em relação à decisão dos dois países de retomar os laços diplomáticos, informou a Reuters.

Séculos de tensões entre Irão e Arábia Saudita

As relações entre o Irão (indo-europeu) e a Arábia Saudita (semita), dois “pesos-pesados” do Médio Oriente, são tensas há séculos devido a rivalidades religiosas e à luta de influências na região. Seguem-se alguns pontos essenciais na história de relações tensas entre os dois países.

Século VII
Povos árabes invadem o Irão (império sassânida) impondo o Islão e eliminando o zoroastrismo.

Século VIII
Irão adopta o xiismo, criado na sequência do massacre a uma caravana onde seguia Ali (quarto califa), a sua mulher Fátima (filha do profeta Maomé) e o filho de ambos.

Século XX
Revolução iraniana e guerra
Após a criação da República Islâmica do Irão, em abril de 1979, na sequência da revolta popular desse ano, os países sunitas acusaram Teerão de pretender “exportar” a revolução xiita para os abafar. Em 1980, o Iraque atacou o Irão, desencadeando uma guerra de oito anos durante a qual a Arábia Saudita apoiou financeiramente o regime iraquiano.

Peregrinos mortos, relações rompidas
Em 1987, as forças de segurança em Meca, na Arábia Saudita, reprimem uma manifestação anti-norte-americana não autorizada organizada por peregrinos iranianos. Mais de 400 pessoas, na maioria iranianas, são mortas. Iranianos, furiosos, saquearam a Embaixada Saudita em Teerão e, em 1988, Riade cortou relações diplomáticas, o que se prolongaria até 1991.

Oposição na Síria e no Iémen
Enquanto os protestos da Primavera Árabe atingem a região em 2011, Riade envia soldados para o Bahrein, onde os xiitas estão a manifestar-se em apoio à revolução. A Arábia Saudita acusa o Irão de alimentar tensões. Os dois países rivais confrontam-se novamente em 2012, quando irrompe a crise síria. O Irão apoia o Presidente sírio, Bashar al-Assad, enquanto a Arábia Saudita sai em defesa dos rebeldes. No Iémen, em 2015, Riade formou uma coligação árabe sunita para intervir em favor do Presidente iemenita para tentar derrotar os rebeldes xiitas Houthi, apoiados por Teerão.

Debandada mortal em Meca
Uma debandada durante a grande peregrinação anual a Meca, em 2015, matou cerca de 2.300 peregrinos estrangeiros, incluindo centenas de iranianos. O líder supremo do Irão, ayatollah Ali Khamenei, diz que a Arábia Saudita não merece administrar os locais mais sagrados do Islão.

Relações novamente rompidas
Em 2016, a Arábia Saudita executou o proeminente clérigo xiita Nimr al-Nimr, uma dos principais líderes dos protestos antigovernamentais, por “terrorismo”. A execução deixa o Irão furioso. Manifestantes atacam missões diplomáticas sauditas no Irão. Riade rompe novamente as relações com Teerão.

Hezbollah, Qatar
Em 2016, as monarquias árabes do Golfo consideram a poderosa milícia xiita libanesa Hezbollah, aliada do Irão, como uma “organização terrorista”. Em 2017, foi em Riade que o primeiro-ministro libanês, Saad Hariri, anunciou a renúncia ao cargo, argumentando com o “controlo” do Irão no Líbano através do Hezbollah. Mais tarde, Hariri irá retratar-se. No mesmo ano, a Arábia Saudita e aliados cortam relações diplomáticas com o Qatar, acusando-o de manter laços “muito estreitos” com o Irão e de apoiar o extremismo, o que Doha nega. A Arábia Saudita e respectivos aliados restabelecem as relações em 2021.

Nuclear iraniano
Em 2018, numa entrevista a uma cadeia de televisão norte-americana, o príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman avisou que, se Teerão adquirir armas nucleares, a Arábia Saudita fará o mesmo “o mais rápido possível”.

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