Entrevista MancheteAntónio Pedro Costa, autor de “D. Paulo José Tavares – O bispo diplomata”: “Ele foi uma lufada de ar fresco “ Andreia Sofia Silva - 22 Fev 202322 Fev 2023 D. Paulo José Tavares era bispo em Macau no período do movimento “1,2,3”, em 1966, ficando para a história como a figura que estancou a penetração do maoísmo nas escolas católicas. Lançado a 25 de Janeiro, o livro “D. Paulo José Tavares – O bispo diplomata” conta a história de vida do eclesiástico que saiu de Rabo de Peixe, nos Açores, passou pelo Vaticano e deixou uma marca no Oriente Como começou esta aventura de escrever sobre a vida de D. Paulo José Tavares? É uma figura muito conhecida aqui em Rabo de Peixe [Açores]. Temos uma estátua, uma escola e uma rua com o nome dele. No entanto, muita gente, sobretudo as actuais gerações, não conhece nada da figura que ele foi no seio da Igreja, apesar de ser uma figura que merece todo o destaque. Percebeu-se, aqui na paróquia, que as pessoas não tinham a verdadeira noção da importância da figura de D. Paulo José Tavares e foi assim que me foi lançado o desafio de escrever este livro. Percebi que não havia muita informação sobre ele e a própria família também não sabia muitas coisas, porque a irmã mais nova, que ainda é viva, era muito pequena [quando ele deixou os Açores]. Não foi uma pesquisa fácil, pois precisava de alguns dados do Vaticano, consegui falar com algumas pessoas que tentaram ajudar-me, mas não foi possível obter informação daí, nem de outros locais. D. Paulo José Tavares esteve em Macau num período muito particular, nos anos 60, durante o movimento “1,2,3”. Chegou ao território com o objectivo de modernizar o clero local. Ele tinha vários objectivos [com essa missão] e foi escolhido para ser o bispo de Macau porque era uma figura muito importante em termos de diplomacia. Esteve na Secretaria de Estado do Vaticano, tinha capacidade de lidar com situações complicada e o território estava precisamente a passar por uma situação complicada. Tentou abrir mentalidades e fez com que se implementasse em Macau a equiparação entre o clero chinês com o clero europeu. O clero de Macau era muito conservador e ele teve dificuldades aí. Ele equiparou os vencimentos dos padres locais com o clero europeu e isso proporcionou um salto qualitativo muito grande. Além disso, fez com que as pessoas de Macau vissem nessas atitudes alguém que vinha valorizar a população. Perante a ideia colonial que havia, de que a Europa era detentora de todo o saber, ele abriu-se às questões locais e fez com que houvesse uma proximidade muito forte [com a população]. Ele tinha as portas do gabinete abertas e era um bispo que não estava na sua cadeira pontifícia. Era um bispo que ouvia as pessoas e valorizava os locais. Teve um papel importante na dinamização religiosa da população e promoveu algumas iniciativas inéditas, como foi o caso da celebração dos 50 anos das aparições de Fátima [celebradas em 1967]. Isso fez com que, pela primeira vez, se tenha criado a “Festa do Doente” em Macau, que levou a uma grande mobilização das pessoas. Foi, portanto, uma figura acarinhada pela comunidade chinesa. Exacto. Essas atitudes de valorização da comunidade chinesa levaram a uma aproximação e ao estabelecimento de uma relação de confiança. Só assim conseguiu levar os seus objectivos adiante, pois percebeu que tinha de ter a população do seu lado. Mas isso trouxe-lhe muitos dissabores com o clero europeu, que não concordava com a postura de D. Paulo José Tavares. Fez com que a população tenha visto nele um aliado e não uma pessoa que vem de fora e que impõe as suas ideias. Passando ao período do “1,2,3”. Ele é tido como a figura que impediu o maoísmo de penetrar nas escolas católicas. Foi um período muito conturbado e ele soube lidar com a situação que era bastante complexa. A elite comercial e política local estava contra ele e os próprios estudantes. Tentaram afastá-lo e ele resistiu. Foi a sua habilidade diplomática que fez com que se contornassem todas essas situações. Chegaram a pintar o paço episcopal com letras vermelhas contra a religião e ele resistiu estoicamente a tudo isso, fazendo com que, nas escolas católicas, não se ensinasse o maoísmo. Temos de ser justos: ele foi a única personalidade do território com capacidade para estancar esse movimento, graças à sua capacidade diplomática. Se ele não tivesse tido o papel que teve na abertura das escolas, na melhoria do ensino e das estruturas, certamente que no “1,2,3” não haveria capacidade de estancar o movimento. O seu percurso é que lhe deu autoridade para lutar contra esta situação. Como eram as escolas católicas na altura e o ensino religioso? Havia muita coisa a melhorar? Macau tinha uma situação idêntica a Portugal, com um regime [político] muito fechado e conservador. Ele introduziu o inglês, chinês e português nas celebrações litúrgicas e isso trouxe uma grande abertura. Foi uma lufada de ar fresco. Via-se, nas festas que aconteciam nas escolas, a adesão das pessoas. Teve a capacidade de ir introduzindo [mudanças] e provocou uma abertura a uma prática colonial e conservadora da religião e do ensino. Qual o aspecto do legado de D. Paulo José Tavares que lhe parece mais importante? Ele passou por Macau e deixou um legado, que foi a emancipação das pessoas que viviam no território, indo contra as ideias coloniais. Atribuiu um papel aos locais e deu o mote que os locais tinham de ser valorizados, teve uma visão de futuro e marcou a vida da população. Muitos chineses eram católicos e isso foi importante para a própria emancipação do território. No processo de pesquisa para este livro teve acesso à tese de doutoramento em Direito Canónico de D. Paulo José Tavares, a qual entregou ao académico Moisés da Silva Fernandes, que está a ultimar uma obra sobre ele. Foi por acaso que a família obteve a tese. Muita da documentação que existia desapareceu e uma sobrinha de D. Paulo José Tavares tinha a tese em casa e jornais antigos de Macau que serviam para embrulhar cálices e outras peças. Foi um achado muito interessante, pois pude analisar esses pedaços de jornais e descobrir mais sobre o pensamento dele e a riqueza suas das obras. Queria ter tido acesso às cartas apostólicas que emitiu, mas acredito que este livro vai espoletar outras investigações. Tenho a convicção de que a partir daqui a figura de D. Paulo José Tavares vai passar a ser melhor conhecida. Como olha para a presença do catolicismo em Macau ao longo destes anos, tendo em conta as especificidades políticas do território? A Igreja sempre teve um papel determinante em Macau e acho que foi importante para modelar a sociedade. O cristianismo, com os seus valores, é uma mais-valia para o território. Mesmo sem ter relações diplomáticas com Portugal, a China olhava para Macau como um ponto de equilíbrio e uma ponte entre as duas nações. O humanismo do cristianismo foi, de facto, uma luz que surgiu e continuou em Macau depois de D. Paulo a modelar ao pensamento e cultura do território.