Da tradução de poemas de Su Dongpo

Traduzir poemas de Su Dongpo (1037-1011) para língua portuguesa.

Quase nada sei, e contemplo o universo todo na arte abstrusa do tradutor. Uns pingos de clarividência, tentar conhecer umas resmas largas de caracteres, a sequência das palavras, passear pela língua chinesa, espreitar cuidadosamente traduções inglesas e francesas, movimentar-me nas assombrações da vida fantástica de Su Dongpo, o real com toneladas de sofrimento à espreita em cada esquina, mais os caminhos por alamedas plenas de alegria e humor. A estrutura da língua chinesa tão diferente e afastada das línguas ocidentais. Desbravar o infinito.

A tradução próxima e distante. Lá do Extremo Oriente, do rendilhado das margens do lago Oeste, em Hangzhou, da ilha de Hainan ou da província de Shandong lançam-me música, um erhu chinês, um violino, uma pipa, o guzheng a enobrecer sentimentos.

Acompanho Su Dongpo, com a sorte de tentar conhecê-lo, de ser seu amigo, de ter viajado por parte importante dos lugares do Império do Meio onde o poeta nasceu há mil anos atrás, desempenhou funções de mandarim, cruzou montes e vales, subiu e desceu rios, jornadeou pelos espaços do vazio, foi afastado para o outro lado do mar, para terras do degredo e do exílio.[1]

Em prefácios a traduções anteriores de grandes poetas da China, sobretudo Li Bai, de 1990, Han Shan, de 2009 e Du Fu, de 2015, debrucei-me, tanto quanto sabia e era capaz de explicar, sobre o trabalho de tradução. O tradutor assume-se como o feitor de uma tarefa diferente, que se abre a partir de um outro código linguístico, mas no português de chegada têm de estar a raiz original das palavras e um mesmo sentir. Em Su Dongpo, encontrar a delicadeza, a suavidade, o encanto, a frescura da grande poesia clássica chinesa. Depois, difícil de fazer bem feito, mas é por aí que caminho.

Yan Fu (1853-1921) um dos primeiros grandes tradutores de obras literárias inglesas e norte-americanas para língua chinesa falava nos três princípios fundamentais de uma tradução譯事三難:信 xin, ou seja fidelidade ao texto original, 達 da ou seja, fluência e legibilidade e 雅ya , ou seja, elegância e beleza, assim se harmonizando a língua de partida com a língua de chegada.

Min Xiaohong (1963-), professora na Universidade de Senzhen, especialista em Su Dongpo, diz que “Translation is an art of transforming everything in form while changing nothing in meaning.”[2]

Nuno Júdice, num texto brilhante sobre David Mourão Ferreira tradutor, refere George Steiner, no seu Depois de Babel onde o autor fala da tradução como “contrabando” processado a partir da língua e da cultura originárias para a língua e cultura de chegada. [3]

No que me diz respeito, sei que no poema traduzido tem de estar a voz e o sentir do poeta chinês, mais a minha própria leitura poética, em língua portuguesa. Porque se o poema sínico parece intraduzível (por isso eu o traduzo!) tudo o mais é reinvenção, recriação, reimaginação, transcriação, retradução. E o poema contrabandeado já é outro poema. É de Su Dongpo, mas também é meu. Do grande universo da poesia da China clássica passou para o mundo da língua de Camões, Machado de Assis e Fernando Pessoa. Contrabandear, com certeza, considerando um produto poético em busca de qualidade literária também na língua de chegada. E, porque os conhecimentos de língua chinesa serão sempre reduzidos, a necessidade da viagem por traduções noutras línguas mais próximas do português, sobretudo as boas traduções inglesas e norte-americanas.

Vamos a um exemplo de um poema de Su Dongpo, conhecidíssimo na China, objecto de múltiplas traduções. É um 绝句 jueju, uma espécie de quadra, com sete caracteres por verso, assim:
Eis uma tradução portuguesa possível, caracter a caracter:

Meio Outono Lua

Anoitecer nuvem juntar excesso límpido frio
Via Láctea ausência silêncio tornar-se jade prato
Esta vida esta noite não extensa boa
Próximo ano brilho lua onde contemplar

Minha tradução

A lua do Meio Outono

Anoitece, novelos de nuvens desaparecem na limpidez fria do céu,
em silêncio, a Via Láctea dá a volta na abóbada de jade.
Se esta noite, no nosso existir, não fruimos prazeres,
no próximo ano estaremos onde, contemplando o luar?

Agora a tradução inglesa du professor chinês Xu Yuanzhong, com rimas emparelhadas que não existem no original de Su Dongpo. Recordo que o poema tem outras rimas tonais praticamente intraduzíveis, características dos jueju:

Evening clouds dispelled, a jade plate turns on high,
Pure, cold flood overwhelms the silent silver sky.
We can’t oft in this life have a mid-Autumn night,
Where shall we see next year a harvest moon as bright?[4]

A tradução do mesmo poema pela chinesa Wang Yun, há muitos anos radicada nos Estados Unidos da América:

Dusk clouds vanish as a crystal chill blooms
The moon’s jade plate turns against the soundless Milky Way
This life this night is a flower about to fade
Where will we see this lustrous moon next year[5]

Por último, a tradução do norte-americano Bill Porter, aliás Red Pine:
As evening clouds withdraw a clear cool air floods in
the jade wheel passes silently across the Silver River
This life this night has rarely been kind
Where will we see this moon next year[6]

Tenho tido como mestre no meu labor de tradutor, o velho Arthur Walley (1889-1966). O historiador Jonathan Spence (1936-), talvez hoje um dos mais brilhantes estudiosos e divulgadores da cultura e civilização chinesa no mundo da língua inglesa, e não só, referia-se a Arthur Waley como tendo aprisionado no seu peito o que de melhor existia nas literaturas chinesa e japonesa. Spence diz que nunca ninguém fez nada de parecido, embora “there are now many Westerners whose knowledge of Chinese or Japanese is greater than his, and there are perhaps a few who can handle both languages as well. But they are not poets, and those who are better poets than Waley do not know Chinese or Japanese.” [7]l

Waley era um bom poeta e muitas das suas traduções foram incluídas como poemas seus integrados na literatura inglesa, por exemplo no Oxford Book of Modern Verse 1892-1935, ou no Penguin Book of Contemporany Verse (1918-1960). Recebeu, em 1952, a condecoração de Commander of the Order of the British Empire e, no ano seguinte The Queen Medal for Poetry.

Su Dongpo é um poeta maior, atravessando os trinta e um séculos de poesia chinesa, amado e lido em toda a China, até hoje, não muito conhecido em Portugal, embora a modernidade da sua mensagem poética contemple o perpassar do tempo.

Talvez com alguma surpresa, o leitor de traduções de poesia chinesa para língua portuguesa descubra que Su Dongpo já foi objecto de umas tantas versões, recriações e traduções poéticas em português.

Foi António Feijó (1859-1917) quem, em finais do século XIX, no seu Cancioneiro Chinês, traduziu do francês quatro poemas atribuídos a Su Dongbo, que, na realidade, não saíram do pincel e da inteligência do nosso poeta. Feijó traduziu e reinventou setenta e um poemas aparentemente chineses que formam o Livre de Jade, de Judith Gautier e de Tin Tun-ling, de 1867, um sucesso literário na Europa culta da época. Ora os poemas chineses pretensamente traduzidos pela jovem filha de Theóphile Gautier, são, quase todos uma reinvenção absoluta. No que a Su Dongpo diz respeito cito as frases do estudo de Ferdinand Stocès: “Du poème de Su Dongpo Bloqué par le vent sur le lac Ci, qu’elle intitule Un navire à l’abri du vent contraire, sur les cinquante-six caractères de ce poème de huit vers, Judith Gautier et son tuteur — en ont identifié quatre, ce qui ne leur a point permis de saisir le message du poète chinois.” [8] As engenhosas traduções parnasianas de António Feijó são assim, quase todas traduções de não traduções.
Camilo Pessanha, em Macau, interessou-se pela poesia chinesa e chegou a traduzir, com a ajuda de um letrado chinês e do seu amigo José Vicente Jorge, pelo menos oito poemas chineses, de poetas menores da dinastia Ming (1368-1644).

Pessanha tinha admiração pela língua chinesa que, na sua opinião, era “a mais formosa e a mais sugestiva de todas as línguas literárias vivas ou mortas.” Pena os maiores poetas da China, homens como Li Bai, Du Fu, Bai Juyi, Su Dongpo ou a delicada Li Qingzhao terem passado ao lado da caneta de Camilo Pessanha. Existe a lenda de que na última vinda a Portugal, em 1915, trouxe de Macau sete mil páginas manuscritas com poemas que entretanto desapareceram. Não será de acreditar, dada a desorganização completa com que, nesta fase da sua vida, já afundado em ópio, Pessanha tratava os seus papéis.

Gil de Carvalho, no seu trabalho Uma Antolologia de Poesia Chinesa, Lisboa, Assírio e Alvim, 2ª. Edição, 2010, traduziu sete poemas de Su Dongpo. Na primeira edição, de 1989, havia incluído apenas um poema do nosso poeta.
Adelino Ínsua, poeta e editor, publicou no ano 2000, na Pedra Formosa Edições, a primeira antologia de Su Dongpo em língua portuguesa, constituída por apenas 27 poemas e uma apresentação de duas páginas que intitulou A Flor da Ameixieira, Poemas de Su Dongpo.

Trata-se de um pequeno trabalho, deveras simpático. Na também pequena antologia de poesia chinesa que Adelino Ínsua publica em 2002, sob o título Pavilhão da Chuva, aparece um poema de Su Dongpo. Em 2013, com o apoio de Carlos Morais José, eu próprio organizei uma grande antologia que intitulámos 500 Poemas Chineses, com uma edição feita em Macau e outra da responsabilidade da Vega Editora, em Lisboa, 2014. Su Dongpo entra com 18 poemas, com traduções António Feijó, Alberto Osório de Castro, Jorge Sousa Braga, Adelino Ínsua, Gil de Carvalho e António Graça de Abreu. Eu tive a ousadia de traduzir cinco poemas de Su Dongpo.

No Brasil, tanto quanto sei, Su Dongpo não tem sido muito traduzido. Em 2022, foi defendida na Universidade de São Paulo, uma dissertação de Mestrado, da autoria de César Augusto Matiusso, intitulada “Meditação sobre o passado: tradução comentada da poesia de Su Dongpo.” Bom será que seja colocada na net ou editada em livro. Su Dongpo e os leitores de língua portuguesa merecem tudo.

 

[1] Nos dois volumes de Toda a China, Lisboa, Guerra e Paz, 2013 e 2014, ver os textos sobre as minhas jornadas pelas actuais províncias de Sichuan, Hunan, Hubei, Shaanxi, Shanxi, Henan, Shandong, Jiangsu, Zhejiang, Guangxi, Guangdong e ilha de Hainan, de quando em quando na companhia de grandes poetas da China Clássica, como Su Dongpo.
[2]Ambos os textos estão na net, onde é infindável a busca por Su Dongpo, com milhares e milhares de entradas e pistas de trabalho. Ver também o You Tube, tendo a vida e carreira de Su Dongpo sido na China objecto de uns tantos filmes e telenovelas.
[3] Nuno Júdice, in Jornal de Letras, nº. 1290, 11.03.2020, pag. 10.
[4] Su Dongpo – a NewTranslation,,(bilingue), Xu Yuanzhong (trad.), Hong Kong, The Commercial Press, 1982, pag 98.
[5] https://www.amazon.com/Dreaming-Fallen-Blossoms-Poems-Dong Po/dp/194568027X/ref=sr_1_2?crid
[6] Poems of the Masters, Red Pine (trad.), Port Townsend, Copper Canyon Press, 2003, pag. 319.
[7] https://site.douban.com/106369/widget/notes/134616/note/137774609/
[8] https://www.cairn.info/revue-de-litterature-comparee-2006-3-page-335.htm. E também de Ferdinand Stocès, O Livro de Jade, de Judith Gautier, características gerais das edições de 1867 e 1902, Revista Oriente, Lisboa, Fundação Oriente, 2002, pags 3 a 20.

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