Via do MeioA Nutrição na Filosofia Chinesa Ana Cristina Alves - 26 Nov 2022 A nutrição é um dos princípios mais importantes da filosofia chinesa, cruzando a área teórica de encontro à prática científica e à Medicina Tradicional Chinesa. No Clássico da Via e da Virtude (《道德经》), Laozi (老子, 280-233 a.C?) chama a atenção para a necessidade de se encherem as barrigas e esvaziarem as mentes logo no terceiro dos oitenta e um capítulos que compõem a obra, quando declara: O sábio governa esvaziando os corações, enchendo as barrigas, fortalece os ossos, enfraquece as ambições. (是以圣人之治/虚其心/实其腹/弱其志/强其骨/) (Graça de Abreu, 2013: III). No entanto, é preciso perceber que esta nutrição, apesar de ser multifacetada, deve ser frugal, porque a frugalidade é, como sabemos, um dos três tesouros que acompanham o sábio ou a pessoa verdadeira taoista (真人 zhen rén). Além disso, no que respeita à alimentação nada como aquela que é fornecida directamente pela Mãe Natureza, em estreita ligação com o Tao (道 Dào), a Mãe do Universo: o sol, a água, o vento, os frutos, as sementes, mas também as paisagens naturais, que elevam o espírito, como a contemplação de um pôr do sol, de um luar, do céu estrelado, do mar numa bela manhã de Primavera ou de Verão, tal como nos é dito pelo filósofo no capítulo vinte num registo confessional: Sou diferente dos demais, alimento-me da Mãe do Universo. (我独异于人/而贵食母) (Graça de Abreu, 2013: XX) Na verdade, a nutrição a que o filósofo se refere, na base da concreta e real é muito refinada. Seguindo esta ordem de ideias, compreendemos bem o que Zhuangzi (庄子, 396- 286 a.C.), o segundo maior filósofo taoista nos pretende transmitir na fábula “A Coruja e a Fénix”, do capítulo dezassete da obra homónima, quando relata o encontro com Huizi (惠子), primeiro-ministro de Liang (梁国 Liáng Guó), depois deste o ter mandado prender, sem sucesso, por temer que ele desejasse roubar-lhe o posto. Ao invés, o próprio filósofo vai ter com ele, contando-lhe a seguinte fábula: “Conheces um pássaro do Sul de nome fénix? Partiu do Mar do Sul e voou em direcção ao Mar do Norte. Apenas pousou nas árvores sagradas, só comeu rebentos de bambu, bebendo unicamente doce água das fontes celestes. Ao sobrevoar uma coruja que mastigava um rato já decomposto, esta piou de susto ‘Huuu!’: Assim, vós não estareis consternado, piando contra mim por causa do vosso cargo no Reino de Liang? ” (南方有一种鸟,名叫鵷鶵, 您知道吗?那鵷鶵,从南海出发,向北海飞翔,不是梧桐树它不休息,不是竹子的果实它不吃,不是甜美的泉水它不饮。在这个时候,一只猫头鹰得到一只腐烂了的老鼠,鵷鶵从那里飞过,猫头鹰抬起头望着鵷鶵空了一声:嚇!如今您想用您的梁国的宰相禄位来吓我一声吗?) (Zhuangzi, XVII. 12). Para o ponto de vista que desejo defender, a saber, que a nutrição é um princípio fundamental da filosofia chinesa, julgo que é importante considerar a fábula de um modo tão literal quanto possível. Percebe-se que ao nível figurativo, o rato em decomposição representa o cargo do primeiro-ministro e a coruja o próprio Huizi, ao passo que Zhuangzi se identifca com a fénix. No entanto, para o argumento em jogo, não é por acaso que um come rebentos de bambu e o outro um rato já em estado de degradação avançada. Na filosofia chinesa, os nutrientes por que optamos, vão definir não apenas a nossa saúde física como ainda abrir ou fechar as nossas possibilidades mentais. A nutrição não é, portanto, um conceito exclusivamente físico, tem grande importância em termos espirituais, podendo aproximar ou afastar da verdadeira realidade. Assim, há uma permuta constante entre os alimentos espirituais e físicos. A filosofia come-se, um pouco à semelhança do que no outro lado do globo num pequeno país à beira-mar, muitos séculos volvidos, Natália Correia viria a defender mutatis mutandis num verso célebre “Ó Subalimentados do sonho!/ a poesia é para comer”, mas para que seja da melhor, da mais rara, da mais refinada, há que começar pelo corpo e ao nível dos nutrientes mais elementares, com paciência, simplicidade e perícia. Cada um terá que estudar para o seu caso e seu estilo próprios quais os elementos a misturar e em que doses, para obter o efeito filosófico fundamental de misturar os seus elementos primordiais feminino Yin (阴) e masculino Yang (阳) , de modo a equilibrá-los, a fim de entrar em harmonia consigo mesmo e daí com o mundo que o rodeia, inclusive mais além, em ressonância com todo o cosmos. A nutrição, física e espiritual são essenciais para o bem-estar psicossomático das pessoas. Não têm conta as obras no âmbito da Medicina Tradicional Chinesa dedicadas ao estudo das propriedades constitutivas dos alimentos e seus benefícios para os seres humanos. A título de exemplo, aconselho a leitura de The Art of Long Life. Chinese Foods for Longevity de Henry C. Lu (1996). Uma boa alimentação não deverá ser rica, nem pobre, mas equilibrada, já que cada alimento ingerido poderá danificar ou beneficiar os nossos órgãos, tecidos, fluídos, orifícios, enfim, todo o corpo e mente. Portanto, há que ter em conta os sabores, ao nível micrcósmico, mas também as condições climatéricas e as estações do ano, em termos macrocósmicos. Como nos recordam Cecília Jorge e Beltrão Coelho em Medicina Chinesa, Em Busca do Equilíbrio Perdido (1988) “Particularmente a saúde e a alimentação estão profundamente ligadas, de um modo muito mais íntimo do que em qualquer outra civilização”. (Jorge, Coelho, 1988: 25). Tal implicará uma atenção filosófica voltada para a busca do equilíbrio através da nutrição. O quinto dos sessenta e quatro hexagramas do Clássico das Mutações, o primeiro de todos os tratados filosóficos chineses, é dedicado à Nutrição (需 xū), como não podia deixar de ser ou a tese aqui defendida não teria fundamento. Este hexagrama também conhecido pelo sugestivo nome de Espera recorda-nos o facto de a nutrição não ter apenas consequências imediatas, mas sim progressivas, que implicam a assimilação e digestão dos nutrientes. No entanto, com a postura certa, quer dizer, sincera perseverante e calma é possível obter boa sorte, seja qual for a aventura em que desejemos embarcar. Quais são os trigramas constituintes da nutrição? Na base encontramos o Céu Criativo (乾 Qián), no topo a Água Abismal (坎 kǎn). Pelo que a imagem do hexagrama nos diz: “Erguem-se nuvens no Céu: A imagem da espera Assim a pessoa superior come e bebe mantendo-se alegre e de boa disposição” 《象曰: 云上于天,需;君子饮食宴乐。》 Zhang, 84:36 Recordo que quando me debrucei sobre este hexagrama, do ponto de vista literário, escrevi o seguinte poema em Visitações: Nuvens no Céu Indicam a chuva e o alimento, Aguarda-se a Água e o sucesso, Haverá perigo mas a aventura é melhor do que o exílio. A espera atenta e persistente É a única garantia da futura alegria, Há ainda a surpresa pelo meio De poder abraçar o infortúnio. (Alves, 2022: 134) Na verdade, o Céu concede a força que permite, com a atitude correcta, ou seja, numa interpretação aconselhada a ser o mais literal possível, que se coma e se beba, o mesmo é dizer, se aguarde pacientemente e com abertura de espírito para que sejam criadas as condições, favorecidas no cultivo da força interior necessária à conversão das nuvens em água benfazeja, nutritiva, diluente dos obstáculos físicos e psíquicos conducentes à realização da obra intelectual, mas também do empreendimento físico, requerido na sua realização. Só com uma boa e progressiva nutrição, realizada pelos alimentos no tempo e medida certos, poderemos construir a longevidade e até imortalidade, sustentados pela força do poder criativo que transforma o perigo em oportuna fertilidade para a qual as circunstâncias exteriores e alheias à vontade de cada um também contribuem. Resumindo, será preciso confiar em mais do que nós mesmos, quando o princípio da nutrição se torna um valor fundamental de uma filosofia. Há que cultivar a abertura que nos vem da natureza e seus múltiplos nutrientes. Estes começam no pão, arroz, vinho ou chá que levamos à boca, progredindo daí para a luz que nos entra e sai da mente-coração (心xīn) no contacto com os outros e com a natureza. Neste panorama mental, é caso para dizer que consoante os alimentos ingeridos e digeridos assim receberemos as filosofias. Bibliografia Alves, Ana Cristina. 2022. Visitações. Fafe: Labirinto. Correia, Natália. 2006-2022. “A Defesa do Poeta”. Poema e Poesia de Natália Correia. Portal da Literatura. Disponível em: https://www.portaldaliteratura.com/poemas.php?id=1291, acedido a 20 de novembro de 2022. Graça de Abreu, António. 2013 (trad.). Laozi. Tao Te Ching. 《道德经》. O Livro da Via e da Virtude. Edição Bilingue. Lisboa: Vega. Jorge, Cecília, Beltrão Coelho. 1988. Medicina Chinesa, Em Busca do Equilíbrio Perdido. Macau: Instituto Cultural de Macu, Círculo dos Leitores. Lu, C. Henry. 1996. The Art of Long Life. Chinese Foods for Longevity. Pelanduk Publications. Merton, Thomas. 1999. A Via de Chuang Tzu. Petrópolis: Editora Vozes. Wilhelm, Richard (Trad.). 1989. I Ching or the book of changes. London: Arkana, Penguin Books. 張中鐸(編) (Zhang Zhongduo)《易经提要白話解》台南市:大孚,民84. Zhuangzi (《庄子》). 1999. Vol. I e II Trad para Inglês de Wang Rongpei e para Chinês moderno de Qin Xuqing e Sun Yongchang. Hunan, Beijing: Hunan People’s Publishing House, Foreign Language Press.