Sonho do Pavilhão Vermelho – Capítulo 27

Autores: Cao Xueqin & Gao E
Tradução Nuno Peres

Baochai persegue borboletas até à Pavilhão de Esmeralda Gotejante
Daiyu chora por pétalas caídas ao lado do Túmulo das Flores

Daiyu chorava desconsolada. Nisto, o portão range e ao abrir saem Baochai, acompanhada por Baoyu, Xinren e as outras criadas.
Daiyu tenta aproximar-se de Baoyu para o interpelar, mas acaba por recuar com receio de o embaraçar em frente a tantas pessoas. Então, afasta-se até Baochai sair. Apenas depois de Baoyu e o restante grupo entrarem no pátio e fecharem o portão é que ela decide regressar.
Derrama algumas lágrimas enquanto os seus olhos fitam o portão fechado. De imediato, apercebe-se da futilidade do seu comportamento e regressa ao seu quarto preparando-se apaticamente para dormir.
Zijuan e Xueyan conheciam bem a têmpera de Daiyu: Ela costumava ficar sentada melancolicamente, franzindo a testa ou suspirando por tudo e por nada; ou simplesmente derramava lágrimas sem nenhuma razão aparente.
A princípio, elas haviam tentado confortá-la, julgando que ela tinha saudades dos pais ou de casa, ou que talvez tivesse sido maltratada por alguém.
No entanto, com o passar do tempo, ela continuava a comportar-se assim. Então, habituaram-se e passaram a não lhe prestar mais atenção. Por este motivo, nessa noite, foram-se deitar, deixando-a só na sua melancolia.
Daiyu encostou-se ao balaústre da sua cama e apertou os joelhos nos seus braços. Com os olhos carregados de lágrimas ficou imóvel como uma estátua de madeira ou de argila e não se deitou antes de serem dois geng.
O próximo dia seria o vigésimo sexto do quarto mês do calendário chinês, o Festival de Grão na Espiga. Era costume desde tempos antigos oferecerem-se diversos tipos de presentes e fazer-se uma despedida ao Deus das Flores.
Diziam que o Festival de Grão na Espiga marcava o início do verão, quando murchavam todas as flores e o Deus das Flores deveria abdicar do seu trono e ser deposto.
Como o costume era mais popular entre as mulheres, todas as internas do Jardim da Grande Visão levantaram-se cedo naquele dia.
As raparigas utilizaram flores e vimes para tecer cadeirinhas e cavalos de palha, fizeram galhardetes e bandeiras de seda e gaze. A seguir, amarraram os enfeites que fizeram em todas as árvores e ataram as flores com fitas coloridas, tornando todo o jardim numa chama de cores. Além disso, enfeitaram-se de forma tão graciosa que fizeram corar os pessegueiros e as amendoeiras, inveja às andorinhas e acanhar os rouxinóis.
Mas o tempo impede-nos de descrever aquela esplêndida cena com mais detalhe.
Agora Baochai, Yingchun, Tanchun, Xichun, Li Wan e Xifeng divertiam-se no jardim com a filha de Xifeng, Xiangling e as outras criadas. A única pessoa que não aparecia era Daiyu.
– Porque é que a prima Lin não está aqui? – perguntou Yingchun. – Que rapariga indolente! Ainda estará a dormir?
– Esperem aqui. Vou acordá-la. – disse Baochai quando deixou as suas companheiras e se dirigiu para o Pavilhão de Bambu.
A caminho do Pavilhão, encontrou doze raparigas entre as quais Wenguan. Elas cumprimentaram-na e conversaram durante algum tempo. Apontando para a multidão, Baochai disse:
– Elas estão todas ali. Vocês podem-se juntar a elas. Vou chamar a Menina Lin e já volto. Então, dirigiu-se para o quarto de Daiyu seguindo por um caminho sinuoso.
Quando se aproximou do Pavilhão, viu Baoyu entrar no pátio, o que a fez deter-se. De cabeça baixa, pensou:
Baoyu e Daiyu cresceram juntos desde a infância e não se importam de escarnecer mutuamente ou de mostrar os seus sentimentos um ao outro.
Além disso, Daiyu é bastante ciumenta e mesquinha. Se eu entrar no quarto agora, Baoyu pode sentir-se constrangido e Daiyu pode ficar com ciúmes. É melhor que eu saia.
Voltou a procurar as outras raparigas quando um par de borboletas, cor-de-jade e do tamanho de um leque apareceram à sua frente. As borboletas flutuavam para cima e para baixo, enfeitiçadamente na brisa, o que era muito interessante.
Baochai sentiu vontade de capturá-las. Então, tirou o leque da manga para acertar nas borboletas e seguiu-as até a um ervaçal. Voando para cima e para baixo, às vezes avançando, às vezes recuando, as duas borboletas levaram Baochai a atravessar as flores e os salgueiros até à beira do lago.
Quando se aproximava do Pavilhão da Esmeralda Gotejante, ofegante e suada, Baochai decide desistir e regressar. Só então sente que havia pessoas que conversavam dentro do Pavilhão.
O Pavilhão, no meio do lago, cercado dos quatro lados por corredores cobertos de balaustradas, estava ligado às margens por pontes em zigue-zague.
Baochai deteve-se à entrada do Pavilhão e tentou ouvir o que se dizia.
– Veja este lenço. Se for aquele que você perdeu, guarde-o. Se não for, devolvo-o ao Mestre Yun.”
– É mesmo o meu! Dê-mo.
– Como é que pensa agradecer-me? Você não esperava que fizesse isso em troca de nada, pois não?
– Não se preocupe. Já lhe prometi uma recompensa, não a enganarei.
– Trouxe-lhe o lenço, é natural que você me recompense; mas como é que vai agradecer à pessoa que encontrou o lenço?
– Não diga isso. Ele é um cavalheiro. É natural que devolva as coisas que encontra. Porque terei eu de o recompensar?
– Se não o recompensar, como lhe vou responder? Ele disse-me repetidas vezes que eu não lhe poderia dar o lenço a menos que você lhe oferecesse alguma recompensa.
Houve um curto silêncio e depois uma voz respondeu:
– Está bem. Dê-lhe este objeto meu como recompensa. E se você disser a outros? Tem que fazer um juramento.
– Se eu revelar algo do que se passou a outra pessoa, então que me apareça um furúnculo e morra na miséria.
– Ah! Temo-nos ocupado a conversar. E se alguém nos está a escutar lá fora do Pavilhão? É melhor abrirmos as janelas. Se alguém nos vir, pensará apenas que estamos a cavaquear. Se alguém se aproximar, podemos vê-la e mudar de tema.
Ao ouvir estas palavras, Baochai, pensou surpreendida:
– Não é de admirar o que se diz das pessoas más e desonestas, que são sempre astutas. Quando abrirem as janelas e me virem, decerto ficarão envergonhadas. Além disso, uma das vozes é bastante parecida com a de Honger que trabalha para Baoyu. Ela é presunçosa e uma das criaturas mais estranhas e astutas que conheço. ‘O desespero leva as pessoas a rebelar-se e os cães a saltar um muro.’ Se ela souber que eu descobri o seu segredo, pode-me causar problemas e causar-me algum embaraço. É tarde demais para me esconder. Tenho de pensar numa maneira para evitar que suspeitem de mim, como uma cigarra que se desfaz da sua exúvia.
Ainda não tinha acabado de pensar quando ouviu o ruído de janelas a abrir. Começou imediatamente a correr fazendo os seus passos os mais pesados possíveis.
– Daiyu, onde está escondida? – disse com um sorriso quando se apressou para a frente, de propósito.
Hongyu e Zuier, que tinham acabado de abrir a janela, ficaram pasmadas quando viram Baochai.
Mas Baochai pergunta-lhes alegremente:
– Onde é que vocês esconderam a Menina Lin?
– Menina Lin? Não a vimos. – respondeu Zhuier.
– Vi-a agora mesmo desde o outro lado do lago. Ela estava aqui agachada, a brincar com a água. Tinha pensado em pregar-lhe um susto, mas ela viu-me antes de eu me conseguir aproximar. Correu para o lado leste e desapareceu. Talvez ela esteja escondida dentro do Pavilhão? – disse Baochai quando entrou propositadamente no Pavilhão à procura de Daiyu.
A seguir, saiu do Pavilhão e afastou-se delas, mas antes disse:
– Com certeza que ela está escondida numa gruta entre as rochas. Se uma cobra a morder, ela bem o merece.
Saiu e pensou satisfeita:
Consegui livrar-me desta maçada. Não sei o que elas irão pensar.
Hongyu, de facto, acreditou nas suas palavras. Quando Baochai já estava bastante longe, pegou em Zhuier pelo braço e murmurou:
– Que horror! Se a Menina Lin estivesse aqui, com certeza que tinha ouvido a nossa conversa!
Zhuier ficou silenciosa e nada disse.
– O que devemos fazer? – perguntou Hongyu.
– Mesmo que ela tivesse ouvido alguma coisa, isso não é da conta dela. – respondeu Zhuier. – Cada uma cuida dos seus próprios assuntos.
– Se estivéssemos a falar da Menina Xue, a situação não seria assim tão má. – disse Hongyu. – Mas a Senhorita Lin é mesquinha e gosta de dizer mal das pessoas. Se ela tivesse ouvido a nossa conversa e denunciasse o nosso segredo, o que seria de nós?
A conversa delas acabou por causa da chegada de Wenguan, Xiangling, Siqi e Daishu. Então, começaram a conversar entre elas como se nada tivesse acontecido.
Hongyu viu que Xifeng a chamava desde a encosta. Então, despediu-se das outras raparigas e correu para Xifeng.
– O que posso fazer pela Senhora? – perguntou Hongyu com um sorriso doce.
Xifeng examinou-a minuciosamente e ficou contente pela sua boa aparência e pela sua maneira cordial e agradável de falar.
– Hoje a minha criada não me acompanha. – disse Xifeng com um sorriso. – Mas lembrei-me agora de uma coisa e tenho de mandar alguém fazê-la. Acha que pode transmitir um recado meu de forma correta?
Hongyu sorriu e disse:
– A Senhora pode dizer-me o seu recado. Se eu não conseguir transmitir de forma correta e comprometer esta tarefa a Senhora pode punir-me como desejar.
– Para qual das meninas é que você trabalha? – perguntou Xifeng com um sorriso. Se ela a procurar, poderei explicar-lhe por si.
– Trabalho para o Mestre Bao. – respondeu Hongyu.
Xifeng riu e disse:
– Ah! Trabalha para Baoyu! Então é fácil de explicar. Deixe lá, se ele perguntar, explico-lhe por si. Agora vá à minha casa e diga à sua irmã Ping que ela pode encontrar um pacote com cento e sessenta taéis de prata debaixo da prateleira do prato de porcelana ju que está na mesa da sala exterior. É o pagamento dos bordadores. Quando a esposa de Zhangcai chegar, ela tem que pesar a prata na sua frente antes de você lha dar. Também quero que você faça uma outra coisa. Traga-me a bolsa que está debaixo da almofada na cama do quarto interior.
Despois de receber as ordens, Hongyu dirige-se para a casa de Xifeng. Quando regressa, Xifeng já não estava naquela encosta. Mas viu que Siqi saia de uma caverna e que parou para apertar o seu vestido. Então, Hongyu aproxima-se dela e pergunta:
– Sabe aonde foi a nossa Segunda Senhora?
– Não faço ideia. – respondeu Siqi.
Hongyu olhou em volta e reparou que Tanchun e Baochai estavam à beira do lago a observar os peixes. Então foi lhes perguntar:
– As Meninas sabem aonde foi a nossa Segunda Senhora?”
– Vá procurar no pátio da sua Primeira Senhora. – disse Tanchun.
Então, Hongyu dirigiu-se para o Pátio do Arroz Fragrante. A meio do caminho encontra Qingwen, Qixian, Bihen, Zixiao, Sheyue, Daishu, Juhua e Yinger.
Ao ver Hongyu, Qingwen ralha-lhe:
– Continue a deambular! Não regou as flores do nosso pátio, nem alimentou os pássaros ou acedeu a caldeira do chá. Só sabe deambular e divertir-se por aí fora!
– O nosso Mestre Bao disse ontem que não é preciso regar as flores hoje. Basta regá-las de dois em dois dias. – replicou Hongyu. – Alimentei os pássaros quando a irmã ainda estava a dormir.
“E a caldeira do chá? – perguntou Bihen.
– Hoje não é a minha vez. Então, não perguntem se há chá ou não. – respondeu Hongyu.
– Ouçam o que ela está a dizer! – mofou Yixian. – É melhor que não digamos mais nada e a deixemos continuar a deambular.
– Quem é que disse que eu estou a deambular? A Segunda Senhora mandou-me transmitir um recado e buscar uma bolsa. – replicou Hongyu, quando lhes mostrou a bolsa.
Então, as raparigas deixaram de a repreender e afastaram-se.
– Não é de admirar! – escarneceu Qingwen. – Ela subiu ao ramo mais alto da árvore e agora já não nos dá atenção. A nossa Segunda Senhora apenas lhe dirigiu uma ou duas palavras, não sabia sequer o seu nome e ela já ficou toda cheia de altivez! Olhem a vaidade dela! Transmitir um recado não tem nenhuma importância. Vamos esperar para ver o que vai sair dali! Se ela for assim tão esperta, é melhor que saia deste pátio e fique para sempre naquele ramo alto.
Hongyu não conseguiu encontrar uma maneira adequada para lhe responder. Engolindo o ressentimento, ela continuou a procurar Xifeng. Quando chegou ao quarto de Li Wan, viu que Xifeng e Li Wan estavam a conversar. Hongyu deu um passo em frente e relatou a Xifeng:
– A irmã Ping disse que ela recolheu a prata logo que a Senhora saiu. Quando a esposa de Zhangcai lha foi pedir, ela pesou a prata à sua frente e entregou-lha.- Entregou a bolsa a Xifeng e continuou – A irmã Ping pediu-me para dizer à Senhora que Lai Wang foi há pouco à sua casa pedir as suas instruções antes de partir para a mansão para onde a Senhora o mandou. Ela deu-lhe as instruções conforme as intenções da Senhora.
– Como é que ela transmitiu as minhas intenções? – riu Xifeng.
Hongyu respondeu:
– A irmã Ping disse: A nossa Senhora apresenta os seus melhores cumprimentos à vossa Senhora. O nosso Segundo Mestre não está em casa, por isso, a vossa Senhora não precisa de se preocupar com a demora de alguns dias. Quando a Quinta Senhora melhorar, a nossa Senhora vai visitar a vossa Senhora juntamente com ela. A Quinta Senhora mandou um recado à nossa Senhora, dizendo que a cunhada da nossa Senhora lhe enviou uma carta em que ela apresenta os seus melhores cumprimentos à vossa Senhora e manifestou o seu desejo de pedir duas pílulas de longevidade à cunhada da vossa Senhora. Se a sua cunhada tiver dessas pílulas, a vossa Senhora pode mandá-las para a nossa Senhora. Se alguém for à mansão da cunhada da nossa Senhora, trar-lhas-á.
– Poupe-me! – Li Wan cortou o discurso de Hongyu. – Estou confusa com tantos Senhores e Senhoras.
Xifeng riu e disse:
– É normal que você fique confusa. Existem cinco famílias envolvidas.
Voltou-se para Hongyu e disse:
– Você fez um bom trabalho e transmitiu todas as mensagens de forma correta e clara, não como as outras pessoas que zumbem como mosquitos.
Virou-se para Li Wan e continuou:
– Você sabe, tenho medo de falar com a maioria das criadas, exceto as poucas que ficam sempre ao meu lado. Elas vão prolongar uma frase e cortá-la aos pedaços. Vão falar devagar, balbuciar até e não conseguem transmitir claramente as informações, o que me deixa ansiosa. Antigamente, a minha Pinger também se costumava comportar assim. Perguntei-lhe: Para ser uma beldade, é necessário zumbir como um mosquito? Melhorou o seu comportamento depois de eu ralhar com ela algumas vezes.
Li Wan riu e disse:
– Nem todas as pessoas são mordazes como você.
– Mas gosto desta rapariga. – disse Xifeng. – Embora não tenha falado muito, transmitiu bem as mensagens. – Sorriu para Hongyu e continuou: – Vai começar a trabalhar para mim a partir de amanhã. Vou reconhecê-la como minha filha adotiva. Você vai fazer bons progressos sob a minha orientação.
Ao ouvir as palavras de Xifeng, Hongyu soltou uma gargalhada.
-Porque está a rir? – perguntou Xifeng. – Pensa que não sou muitos anos mais velha do que você e que ainda sou tão jovem que não possa ser sua mãe? Se pensa assim, é porque está muito iludida! Pergunte às outras criadas. Há muitas pessoas cuja idade é muito maior do que a sua que desejam chamar-me de mãe e não as reconheço. Estou a dar-lhe essa honra!
– Não estou a rir por causa disso. – respondeu Hongyu sorrindo. – Estou a rir porque a Senhora se enganou na minha procedência. A minha mãe é sua filha adotiva e agora a Senhora também me pretende reconhecer-me como sua filha adotiva.
– Quem é a sua mãe? – perguntou Xifeng.
– Não sabe quem é esta rapariga? – disse Li Wan com um sorriso. – Ela é a filha de Lin Zhixiao.
– Ah! É a filha dela! – Xifeng ficou bastante surpreendida, então sorriu e continuou: – Não se consegue fazer com que Lin Zhixiao e a sua esposa abram a boca mesmo que os espetem com uma agulha. Tenho dito que eles formam o casal perfeito. Um é surdo e o outro mudo é. Quem imaginaria que iriam criar uma filha tão esperta! Quantos anos tem?
– Dezassete. – respondeu Hongyu.
A seguir, Xifeng perguntou o nome dela.
– Inicialmente, eu chamava-me Hongyu. – respondeu ela. – Agora chamam-me Honger porque o nome do Mestre Bao também tem o caráter ‘yu’ de jade.
Xifeng franziu a testa e abanou cabeça:
– Que desagradável! Todas as pessoas agora querem chamar-se ‘yu’ como se pudessem colher benefícios desse carácter.
Xifeng disse a Li Wan:
– Agora ela pode ficar comigo. Você sabe? Já disse uma vez à sua mãe que a esposa de Lai Da está muito ocupada e não conhece bem as criadas desta mansão. Pedi-lhe que escolhesse um par de raparigas capazes para mim. Ela não escolheu a sua própria filha para ficar comigo e enviou-a para um outro lugar. Será que ela pensou que a rapariga iria sofrer muito se trabalhasse para mim?
– Você é demasiado desconfiada! – Li Wan riu e disse. – Ela já estava a trabalhar aqui quando você lhe fez esse pedido. Como é que pode culpar a mãe dela?
Xifeng disse:
– Amanhã vou falar com Baoyu e pedir que ele procure uma outra criada e que me mande esta rapariga. Não sei se ela mesma quererá trabalhar para mim ou não.
– Não podemos dizer se queremos ou não. – disse Hongyu com um sorriso. – Mas se for trabalhar para a Senhora, posso aprender mais sobre etiqueta e adquirir mais experiência.
Foi naquele momento que uma criada da Senhora Wang veio chamar Xifeng. Então, despediu-se de Li Wan e saiu. E Hongyu regressou ao Pátio do Vermelho Radiante.
Voltamos a Daiyu, que se levantou tarde nesse dia por causa da insónia sofrida na noite passada. Quando ouviu que todas as outras raparigas estavam no jardim a despedir-se do Deus das Flores, apressou-se a lavar-se e pentear-se e saiu do quarto, com receio de ser ridicularizada por causa da sua preguiça. Mal saiu do quarto, viu que Baoyu entrou pelo portão.
– Querida prima, denunciou-me ontem? – perguntou ele com um sorriso. – O meu coração ficou em suspenso durante toda a noite.
Daiyu voltou-se para Zijuan e ordenou:
– Limpe o quarto e depois feche as cortinas de gaze. Se alguma andorinha grande tentar entrar, baixe as cortinas e prenda-as com os leões. E não se esqueça de cobrir o incensório depois de acender o incenso. – disse enquanto ia saindo.
Baoyu pensou que a sua atitude fria se devia às palavras usadas ontem ao meio-dia. Sem saber o que tinha acontecido na noite anterior, ele curvou-se e apertou as duas mãos junto ao peito para manifestar o seu arrependimento. Ainda assim, Daiyu não olhou sequer para ele. Saiu do pátio e foi procurar as outras raparigas.
Baoyu ficou perplexo:
De certeza que não é por causa do que aconteceu ontem. Mas regressei tarde ontem à noite e não a encontrei. Por isso, não há mais nada com que eu a pudesse ter ofendido. – pensava para si enquanto a seguia.
Baochai e Tanchun estavam a apreciar a dança das cegonhas. Quando viram Daiyu, começaram a conversar com ela.
Ao ver Baoyu, Tanchun disse com um sorriso:
– Está tudo bem consigo, irmão Bao? Já não o vejo há três dias.
– Está tudo bem, irmã. – respondeu Baoyu com sorriso. – Perguntei anteontem à nossa cunhada mais velha por si.
– Irmão Bao, venha cá. – disse Tanchun. – Quero conversar consigo.
Baoyu despediu-se de Baichai e Daiyu e acompanhou Tanchun até ao pé de uma romãzeira.
– O nosso pai chamou-o nestes últimos dias? – perguntou Tanchun.
– Não, ele não me tem chamado. – respondeu Baoyu com um sorriso.
– Alguém me disse ontem que ele o chamou.
– Essa pessoa deve ter ouvido mal. Ele não me chamou.
Tanchun sorriu e continuou:
– Consegui poupar uma dúzia de cordões de moedas nestes últimos meses. Quero que os aceite e me compre algumas boas peças de caligrafia e pinturas ou alguns objetos interessantes que conseguir descobrir na próxima vez que sair da mansão.
– Não tenho encontrado nada de interessante nem de refinado durante os meus passeios pela cidade e pelos mercados dos templos. – disse Baoyu. – Nada mais tenho visto do que antiqualhas de ouro, prata, bronze e porcelana, ou coisas como sedas e cetins, guloseimas ou vestimentas.
– Não quero nada dessas coisas! – disse Tanchun. – O que eu quero são coisas como pequenas cestas de vime, ou caixas de incenso de bambu esculpido ou os pequenos fornos de argila que você me comprou na última vez. Adoro esse tipo de coisas delicadas, mas as outras raparigas também gostam muito. Atiram-se a essas coisas como se fossem tesouros.
– Você quer essas coisas. – gargalhou Baoyu. – São baratas. Dê aí umas quinhentas moedas aos criados que eles lhe enchem duas carruagens com esse tipo de coisas.
– Os criados não têm gosto para apreciar essas coisas. – respondeu Tanchun. – Você compre-me coisas simples, mas que não sejam banais, originais, mas que não sejam grosseiras. Vou fazer-lhe um outro par de sapatos. Vou fazê-los com mais primor do que da última vez. Pode ser?
Baoyu riu e disse:
– Por falar em sapatos, lembro-me de que encontrei o nosso pai enquanto usava os sapatos que você me fez. Ele perguntou desgostoso quem os tinha feito. Tive medo de dizer que tinha sido você. Então, disse-lhe que foram um presente da Tia Wang pelo meu aniversário. Ao ouvir isso, ele não pôde fazer mais comentários. Mas depois de um silêncio, ele disse: “Não valia a pena! Que desperdício de tempo, energia e seda!” Quando regressei ao quarto, falei com a Xiren e ela disse-me: “Isso não é nada. Mas a concubina Zhao tem-se queixado irritada: O próprio irmão mais velho dela usa sapatos e meias furadas e ela nem quer saber. Mas faz sapatos para o Baoyu.”
Tanchun ficou arreliada e disse:
– Que absurda que ela é! Ela acha que o meu trabalho é fazer sapatos? Huan não tem roupas, sapatos e meias que cheguem? Além disso, ele também tem muitas criadas que lhe podem fazer sapatos. Do que é que ela se pode queixar? A quem é que ela se tem queixado? Se eu fizer um par de sapatos no meu tempo livre, posso dá-los a quem quiser. Ninguém tem o direito de interferir nas minhas escolhas! Ela irritou-se por isso? É louca!
Baoyu acenou com a cabeça e disse com um sorriso:
– Você não sabe já? É natural que ela pense de uma maneira diferente.
Ao ouvir isso, Tanchun ficou ainda mais abespinhada. Virou de repente a cabeça e disse:
– Você ficou louco também? Decerto que ela pensa nas coisas de uma maneira diferente, de uma maneira dissimulada e insidiosa. Ela pode continuar a pensar dessa forma que eu não me importo. Só ouço as palavras do nosso pai e da sua esposa e não me preocupo com o que os outros dizem sobre mim. Se os irmãos e as irmãs me tratarem bem, vou tratá-los bem sem pensar se ele ou ela é filho de uma esposa ou de uma concubina. Na verdade, eu não devia estar com esta conversa, mas ela é demasiado absurda! Vou contar-lhe uma outra história ridícula. Dois dias depois de eu lhe dar o dinheiro para que você me comprasse coisas para me distrair, fui cumprimentá-la e ela queixou-se da sua falta de dinheiro e das suas dificuldades. Não lhe prestei atenção. No entanto, quando todas as criadas saíram do quarto, ela começou a criticar-me e perguntou-me porque é que lhe dei o dinheiro que eu tinha poupado em vez de o dar a Huan. Ao ouvir isso, não sabia se havia de rir ou de chorar. Então, despedi-me dela e fui até ao quarto da nossa Senhora.
Tanchun ainda estava a falar quando Baochai a interrompeu de longe com as suas palavras sorridentes:
– Ainda não acabaram a vossa conversa? Venham cá. Vê-se mesmo que vocês são irmãos. Deixaram os outros e foram falar sobre os vossos assuntos privados. Não conseguimos ouvir nem perceber uma única palavra da vossa conversa!
Tanchun e Baoyu sorriram e foram-se juntar a ela.
Daiyu tinha saído e Baoyu soube que ela se estava a esconder dele. Ele decidiu esperar alguns dias e aproximar-se dela depois de a sua disposição ter melhorado. Quando baixou a cabeça, viu que o chão estava coberto de flores caídas incluindo pétalas de beijo-de-frade e de flores de romãzeira.
– Ela está tão zangada que nem sequer recolhe as flores caídas no chão. – suspirou Baoyu. – Vou trazer estas flores comigo e tentar falar com ela amanhã.
Baochai convida-os para darem um passeio.
– Vou-me juntar a vocês depois. – disse Baoyu.
Quando Baochai e Tanchun se afastaram, ele recolheu as flores nas suas vestes. Atravessou uma pequena colina, depois um riacho, passou por entre árvores e flores e dirigiu-se para o sítio onde havia enterrado com Daiyu as flores de pessegueiro caídas. Quando chegou ao túmulo das flores e antes de cortar rumo à colina, ouviu o som de soluços que vinham do outro lado da encosta. Era alguém que se lamentava e soluçava, como se tivesse o coração despedaçado.
Deve ser alguma criada que foi maltratada e veio para aqui chorar. – pensou Baoyu. Para quem é que ela trabalhará?
Parou para ouvir a rapariga que murmurejava em gemidos:

Caindo e voando, as flores enchem o céu,
Quem lamentará as cores que desbotam e o perfume que se esvai?
Suavemente, teias de aranha flutuam entre pavilhões primaveris,
Gentis penugens de salgueiro colam-se às cortinas bordejadas.

Suspira a rapariga na sua câmara pelo fim da primavera,
A melancolia enche-lhe o coração.
Sai da alcova de enxada na mão,
Contendo-se em pisar as flores caídas no chão.

Salgueiros e olmos viçosos, verdejantes
Ignoram se são flores de ameixeira ou de pessegueiro que o vento carrega.
As ameixeiras e os pessegueiros voltarão a florescer,
Mas quem restará no quarto na próxima primavera?

No terceiro mês tecem-se ninhos perfumados,
Mas as andorinhas no telhado são cruéis.
Na próxima florescência, voltarão a bicar pétalas,
Os ninhos cairão do telhado e o quarto estará vazio.

Trezentos e sessenta dias por ano,
Ameaçada sem clemência por sabres de vento e adagas de gelo.
Quanto tempo se manterá esta flor fresca e bela?
Soprada pelo vento, irá tombar e desmanchar-se sem encontrar o seu destino.

Caídas, as flores mais viçosas são difíceis de encontrar,
Tristonha, a coveira das flores de pé junto aos degraus.
Sozinha, de enxada na mão, disfarça as suas lágrimas,
Que resvalam pelos galhos vazios como um orvalho de sangue.

Cucos em silêncio ao anoitecer.
Regressa com a enxada e cerra as portas.
Uma candeia a óleo alumia a parede, ainda mal adormeceu,
A chuva fria começa a bater na janela, o cobertor está ainda frio.

O que causou esta minha dupla angústia?
O amor e o despeito à primavera
Porque num repente vem e de repente se vai,
Chega sem aviso e parte sem rumor.

Ontem à noite, do pátio surgia uma canção triste,
Foi o espírito das flores, ou o espírito dos pássaros?
Difícil é conter o espírito das flores ou dos pássaros,
Porque os pássaros não falam e as flores acanham-se.

Anseio por ter asas e flutuar
Com as flores até ao fim do mundo.
Mas mesmo no fim do mundo,
Encontrarei eu uma encosta para sepultar as flores perfumadas?

Melhor será recolher as formosas pétalas numa bolsa de seda,
E enterrar a sua beleza com terra limpa.
Vieste pura e pura partirás,
Sem cair em valas ou suja de lama.

Agora finadas, irei enterrá-las,
Não se sabe o dia em que partirei.
Riem da minha loucura por enterrar flores caídas,
Mas quem me irá sepultar quando morrer?

Vejam, a primavera que finda com as flores que caem,
A beleza que desbota e se desvanece.
Quando a primavera acaba e a beleza murcha,
Quem saberá das flores caídas e da rapariga morta?

Ao ouvir o lamento triste da rapariga, Baoyu desaba numa enorme comoção.
Se o nosso leitor quiser saber mais pormenores sobre esta estória, leia por favor o próximo capítulo.

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