Covid-19 | Xangai saboreia fim de bloqueio que deve deixar cicatrizes

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Reportagem de João Pimenta, da agência Lusa

 

Ansiedade e sensação de liberdade são sentimentos vividos pela população de Xangai que, desde terça-feira, viu o bloqueio de dois meses chegar ao fim. Para trás, ficam relatos de escassez de comida e falta de cuidados médicos. Muitas pessoas aproveitaram para deixar a cidade assim que puderam

 

Os moradores de Xangai já saboreiam o fim de dois meses de bloqueio, mas “o terror” suscitado pela escassez de alimentos, violência e isolamento de casos positivos de covid-19 em condições degradantes deve deixar cicatrizes.

“Ninguém pode compreender a ansiedade e o medo que sentimos nos últimos dois meses”, contou à Lusa Chiara, uma fotógrafa italiana radicada naquela que é considerada a capital económica da China.

Um surto de covid-19 na mais populosa cidade do país, provocado pela variante Ómicron, altamente contagiosa, levou as autoridades chinesas a impor medidas de confinamento extremas, no âmbito da estratégia de “zero casos”.

Durante dois meses, os cerca de 25 milhões de habitantes de Xangai foram proibidos de sair de casa. “Senti hoje o sol na cara, ao fim de 62 dias. Consegues imaginar? 62 dias”, descreveu à Lusa a chinesa Wang Hua.

Todos os casos positivos, incluindo os assintomáticos, foram isolados em centros de quarentena: instalações improvisadas, com as camas distribuídas num espaço comum, sem chuveiros, e com uma casa-de-banho para centenas ou até milhares de pessoas. “O terror de saber que um teste positivo acarretaria ser enviada para um desses campos”, descreveu Chiara. “Algumas pessoas tentaram suicidar-se; animais de estimação foram mortos”, relatou.

As cenas de violência, a falta de alimentos e a aplicação implacável e caótica das medidas de prevenção epidémica provocou protestos raramente vistos na China. Um alto funcionário do Partido Comunista da China em Xangai Li Qiang disse que a cidade fez grandes conquistas no combate ao surto por meio de uma luta contínua.

Segundo a Reuters, a Disneyland de Xangai, que ainda não anunciou a data de reabertura ao público, apresentou ontem um espectáculo de luz ao vivo com a mensagem “celebrar o levantamento do bloqueio em Xangai”, enquanto que nas ruas os barbeiros voltaram a ter a agenda preenchida com pessoas que há muito tempos não cortavam a barba e o cabelo.

Na rede social WeChat, muitas lojas começaram a anunciar os planos de reabertura. Melody Dong contou à Reuters que, assim que pôs os pés na rua, procurou ir comer hotpot e procurar carne grelhada, comidas que não conseguiu confeccionar em casa durante o período de confinamento. “Fui passear o cão à rua e o cão estava muito entusiasmado, porque passou mesmo muito tempo sem sair”, adiantou. Uma espécie de festa aconteceu na zona da antiga Concessão Francesa, onde pequenos grupos de pessoas saíram à rua e beberam champanhe.

A cidade voltou ainda a preencher-se com os habituais grupos de dança nocturnos, que antes do confinamento se reuniam nas praças e ao longo do rio Huangpu.

Na rede social Weibo, equivalente ao Twitter na China, um usuário escreveu: “A sensação hoje é quase como no tempo de escola. Na noite antes do início das aulas costumava estar cheio de expectativas para um novo semestre, mas ao mesmo tempo com muito receio no coração.”

Pessoas ainda fechadas

O Governo local assegurou que todas as restrições vão ser gradualmente suspensas, mas os comités de bairros locais ainda exercem um poder considerável para implementar medidas por vezes contraditórias e arbitrárias. O bloqueio reforçou os poderes destes comités, em quem o Partido Comunista Chinês confia para difundir directrizes e propaganda a nível local, e até mesmo para a resolução de disputas pessoais.

Os comités tornaram-se alvo de críticas, sobretudo depois de terem proibido os moradores de saírem das suas casas, mesmo depois de as restrições oficiais terem sido relaxadas.

“Senti-me sem esperanças”, contou à Lusa outra residente na cidade, que recusou ser identificada. “Um grupo de pessoas que nem sequer têm educação subitamente passou a ter o poder de decidir sobre a minha liberdade”.

Os transportes públicos foram repostos em Xangai, assim como as ligações ferroviárias para outras cidades da China. Ainda assim, mais de meio milhão dos 25 milhões de habitantes de Xangai continuam trancados em casa, em comunidades residenciais onde foram detectados casos do novo coronavírus nos últimos 14 dias.

Centros comerciais, supermercados, lojas de conveniência e farmácias reabriram, mas limitados a 75 por cento da capacidade total. Para ir ao supermercado, por exemplo, é necessário fazer reserva ‘online’ com antecedência, visando limitar as entradas. Xangai registou 15 novos casos nas últimas 24 horas, assinalando o declínio estável, desde que chegou aos mais de 20.000 casos por dia, em Abril.

O bloqueio levou também a um êxodo de residentes chineses e estrangeiros, com multidões a formarem-se junto à Estação Ferroviária de Hongqiao.

Numa altura, em que a maior parte do resto do mundo levantou praticamente todas as restrições, a China mantém a estratégia de ‘zero casos’, que visa extinguir surtos do novo coronavírus através de testes em massa e o isolamento de todos os infectados em instalações designadas pelo governo.

Apesar da difícil situação vivida na cidade durante os dois meses de confinamento, foram raros os protestos por parte da população. Nas redes sociais foram divulgados vídeos de pessoas a bater em tachos e panelas nas janelas de casa à noite, à mesma hora, por exemplo.

“O Governo de Xangai deveria apresentar um pedido público de desculpas a fim de obter a compreensão e o apoio da população e reparar os danos feitos à relação entre o Governo e a população”, escreveu no WeChat Qu Weiguo, professor da Escola de Línguas Estrangeiras da Universidade de Fudan, segundo a Reuters.

“Compreensão” necessária

Numa nota divulgada esta terça-feira, a Xinhua noticiou o encerramento do maior hospital de acolhimento de doentes covid-19. Com 50 mil camas dispostas no Centro Nacional de Exposições e Convenções, esta infra-estrutura fechou portas depois de dar alta aos últimos dois pacientes. No total, estiveram internados neste hospital de campanha um total de 174,308 doentes covid-19.

Também na terça-feira a cidade retomou gradualmente as actividades normais de produção. Numa conferência de imprensa, Zong Ming, vice-presidente da Câmara Municipal de Xangai, explicou que as aulas presenciais vão ser retomadas gradualmente, nomeadamente para os dois últimos anos do ensino secundário e o terceiro ano do ensino médio, embora os alunos possam decidir se querem comparecer.

Zong Ming adiantou também que Xangai “está ainda num estado crítico de prevenção e controlo da pandemia”, sendo por isso necessária “a continuação da compreensão, apoio e cooperação de toda a população”.

O responsável frisou também que “cada residente deve aderir aos padrões da prevenção epidémica e medidas de controlo, manter o distanciamento social, tomar as vacinas [contra a covid-19] e cumprir com todos os regulamentos de prevenção epidémica”.

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