Entrevista MancheteAna Cristina Alves, autora e académica: “Este livro é um diálogo intercultural” Andreia Sofia Silva - 1 Jun 2022 DR Acaba de ser lançado, com a chancela da editora Labirinto, o novo livro de poesia de Ana Cristina Alves, especialista em filosofia chinesa, docente e responsável pela área educativa do Centro Científico e Cultural de Macau. “Visitações” reúne poemas que estabelecem um diálogo permanente entre as espiritualidades ocidental e oriental, partindo da base do “I Ching – O Livro das Mutações” Como surgiu a possibilidade de editar esta obra? Foi uma experiência poética. A última vez que estive em Macau foi em 2015, mas andei muito pelo Oriente e pelo sul da China. Entre 2011 e 2015, estive muito voltada para temas religiosos, fiz investigação na Academia Sínica, recolhi dados sobre templos, que são cerca de dez mil. A pesquisa para o trabalho científico não foi publicada, ficou na gaveta. Nos dez anos que estive em Macau visitei sempre os templos. Sempre gostei muito da espiritualidade chinesa, porque é aberta a receber influências de várias religiões e nenhumas se zangam umas com as outras. Sobre esse projecto que ficou na gaveta… Sim, ficou ali. Entretanto, chegou a pandemia, que nos remeteu a todos para casa. Sempre encarei a arte como terapia, sou capaz de estar o dia todo a ouvir música, por exemplo. Como nesses dois anos de pandemia estive bastante tensa, e como gosto muito de escrever e de poesia, foi uma maneira de me agarrar à vida pelo lado positivo, pois fomos bombardeados com notícias negativas todos os dias. Recordei-me então das experiências que vivi nas visitas ao Oriente e começaram a surgir espontaneamente poemas que estão divididos em vários capítulos. Como dividiu tematicamente o conteúdo? Os capítulos são sobre divindades chinesas, seres sagrados do Oriente e do Ocidente, porque eu sou portuguesa e o meu olhar ocidental está lá inevitavelmente. Escrevi também poemas sobre festividades e seres sagrados ligados a divindades. Outros escritos resultaram de visitas a templos. Tudo do ponto de vista poético, não científico, através de um diálogo intercultural. A última parte do livro é sobre poesia de adivinhação, numa tentativa para chegar a um amor diferente, objectivo, mas também compreender o mistério que não se deixa compreender por palavras. Quanto mais nós tentamos entrar em certas esferas e explicar tudo de forma racional, pior é. Peguei no clássico I Ching – O Livro das Mutações. Já a Fernanda Dias [poetisa] tinha feito uma experiência deste tipo, em Macau, porque a obra tem 64 hexagramas. Ela fez um poema para cada um deles, em “O Fio de Seda”, publicado em 2012. Utilizei a filosofia da complementaridade e fiz poemas sobre 32 hexagramas, porque acredito sempre nos opostos que não são oposição, mas que são complementares. Qual o objectivo desse exercício? Foi uma tentativa de entrar neste mistério que não entendemos, mas que sentimos através da nossa intuição, de que há qualquer coisa da qual é difícil falar do ponto de vista racional. São 32 poemas dedicados à adivinhação. Mas foi muito compensador. De cada vez que escrevia um poema, por muito más que fossem as notícias sobre a pandemia, nunca me deixavam muito maldisposta. A arte compensava e era como se estivesse a fazer terapia. Esta obra, “Visitações”, surge num momento muito particular da nossa história colectiva e individual, em que nos confrontamos com a pandemia. Alguns poemas mostram esse lado. Em que sentido? Por exemplo, há uma divindade muito malandra (Na Tcha), um menino que provoca muitos desacatos e que acaba por magoar um dos filhos do Rei Dragão, que nunca lhe perdoa. Esta divindade está mesmo ao lado das Ruínas de São Paulo [Templo de Na Tcha] e tem um dom especial: combater epidemias. É óptimo para estes tempos. Como descreve este livro? É um diálogo intercultural, que aponta para uma espiritualidade, mas que não a define, não diz “é assim”, ou de outra forma. Não há dogmas, mas leituras de possíveis caminhos espirituais, uma espiritualidade muito aberta, com a mistura de divindades. Um dos capítulos é sobre seres divinos, sagrados e monstros, no Ocidente e no Oriente, sempre numa tentativa de diálogo. Na primeira parte do livro temos poemas dedicados à minha sensibilidade reservada, enquanto que a maior parte dos poemas têm como fio temático a espiritualidade chinesa e o diálogo com a espiritualidade ocidental. O que significa esta sensibilidade reservada? São poemas mais seculares, mais do dia-a-dia, que surgem em confronto com situações. Tenho lido muito e gosto muito de Fernando Pessoa, dos clássicos, mas também de Luís de Camões e Sophia de Mello Breyner. Mas o meu despertar poético é sempre sobre situações da vida e por qualquer coisa que se está a passar no aqui e agora. A guerra na Ucrânia preocupa-me muito, por exemplo. Não é tanto a sensibilidade de receber influência dos outros poetas, mas quando me surge este chamamento poético, este diálogo, é sempre sobre algo que está a acontecer na minha vida. Que poema destaca nesta obra? “Macau Tricolor” é um poema de que gosto muito. Dentro das experiências poéticas uma das que gosto de fazer é misturar línguas dentro do próprio poema, é um traço da minha poesia. Este poema é sobre Macau e surge na sequência do 24 de Junho, antigo Dia de S. João, quando ocorreu a batalha contra os holandeses, em 1622. Começa por ser escrito em português, depois passa para patuá, graças ao pouco que aprendi com o Adé, e depois termina em chinês. Celebro os portugueses, os macaenses com a sua especificidade e os chineses que estão em Macau, a quem pertence não só a terra como a administração. Escreveu outros poemas sobre a China? Há muitos poemas sobre a China e as festividades tradicionais chinesas, sobre a festividade dos barcos dragão e o ano novo chinês. Mas esta China é aquela que eu deixei em 2015 e não a de hoje. No livro “Migrando pelos Dias” falo mais da China dos dias de hoje. Este livro aborda a China espiritual e tradicional, assim como o contacto com o Ocidente também cultural e espiritual. Tenho um poema sobre o São Martinho, o Natal e a Páscoa. Saí de Macau há sete anos, e o que me lembro da China e de Macau está mais na cultura do que na vivência diária. Porquê o nome “Visitações”? A capa, que está muito bem conseguida, tem duas portas fechadas. Então é como bater à porta de algo, de um mundo misterioso, e a visitação é a tentativa de entrar nesse mundo, mas a porta mantém-se fechada. Está semi-aberta com a nossa sensibilidade, mas pouco compreendemos sobre esse mundo com seres sagrados e divindades. “Visitações” é então essa ideia de visitar um mundo transcendente. Acredito que com a poesia se consegue lá chegar. Tem uma larga experiência como investigadora, sobretudo na área da filosofia oriental. Escrever estes poemas trouxe-lhe outra perspectiva da China? Desta vez usei o clássico “I Ching – O Livro das Mutações”, que o padre Joaquim Guerra chamava “A Bíblia Chinesa”. Dá uma outra visão menos pragmática e utilitária da cultura chinesa. Leva-nos à cultura tradicional que valorizava a sensibilidade poética. Não nos podemos esquecer que os governantes, para passarem os exames imperiais, tinham de fazer poesia e saber interpretá-la, para chegarem a oficiais e mandarins. Este contacto com os clássicos é a entrada no mundo da história, que hoje muitas vezes é esquecido na China contemporânea porque valores económicos, e outros, se levantam.