A Zhu

As várias partidas do mundo, os lugares, as cidades, as paisagens, unicamente reivindicam espaço na nossa memória quando algum traço particular as distingue. A esses espaços fica associada uma emoção, logo ali sentida ou mais tarde emergente, que a mente, ávida de acção, guarda com deleite. Certos sítios são lembrados pela sua beleza, outros pela extravagância; mas a montanha do Salgueiro e a sua particular fauna conseguem ultrapassar estas categorias e intrometer-se no mundo dos homens de forma relevante e inesperada.

É que por ali existe uma ave, com a forma aproximada de uma grande coruja, cuja aparição é suposto anunciar alterações importantes na hierarquia política de toda uma região. Chamam-lhe zhu e, provavelmente, ostenta uma penugem rubra escura, da cor do vinho feito de uva. Sendo uma ave, dotada da capacidade de voar, surge do nada ao crepúsculo, encontra o seu recanto num ramo onde se agarra com firmes dedos — pois a zhu não possui patas de pássaro, mas mãos humanas, que lhe saem de baixo do seu volumoso corpo — e dali os seus olhos penetrantes fixam o mundo como se o quisessem hipnotizar. De quando em vez, emite um som que lembra o seu nome: “Zhuuu…”

Não é bom sinal, garantem, avistar esta ave. Alguns mestres dizem ser um presságio de índole tão ruim como ver um cometa atravessar os céus ou encontrar uma baleia morta a flutuar entre as ondas. Reza a tradição que, quando uma destas aves aparece, tal quer dizer que o rei vai destituir, exilar ou matar grande parte dos seus oficiais superiores. É então fácil de prever a confusão gerada pelo rumor do avistamento de uma zhu; e imaginar os espíritos em desordem, a tessitura de conspirações, a emergência de terrores, a catadupa de planos e, amiúde, levianas mas trágicas decisões. Invocar a zhu é garantir o conflito e a desarmonia.

O poeta Tao Yuanming reforça a crença no mau agouro desta ave. Em breves linhas, irónico, sugere por ali ter andado uma zhu, quando o rei Huai de Chu baniu o famoso Qu Yuan, um importante oficial e trágico poeta. Não se pense, contudo, ter advindo de suas poesias a má sorte que lhe selou o destino ou que podemos dar como garantida a aparição de uma zhu naquele final do século IV a.E.C.. Arrebatado pelo desgosto de assistir ao espectáculo degradante de uma governação, maculada de práticas corruptas e inoperante pelo desleixo da realeza, Qu Yuan cometeu suicídio, atirando-se às águas barrentas de um rio. Este seu acto tornou-o num herói, num santo, numa data, todos os anos comemorada pelo povo.

Compreende-se o temor que a zhu inspira. A sua presença é disruptiva, não da ordem individual, ou seja, da vida de cada um, eventualmente da vida do sujeito que a avistou, mas de toda uma ordem social. Não é incomum, por exemplo, a visão de uma zhu acender o rastilho de guerras civis ou, no mínimo, criar um período de incerteza entre os mais qualificados oficiais. Aristocratas, generais, comerciantes milionários, todos eles sentem vacilar o seu poder e, por isto, pela aparição de uma simples ave, quantas vezes não são estragadas famílias, queimadas colheitas, arrasadas aldeias, sacrificadas raparigas e destruída toda uma geração?

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