Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasDa Rússia, com amor António Cabrita - 14 Abr 2022 Segundo Chesterton, os anjos conseguem voar porque se enxergam a si mesmo com leveza. A leveza que a guerra nos retira, imersos num clima inamistoso que nos recorda a advertência de Confúcio em Analectos: nenhum país é governável quando nem os amigos se entendem. Um desalinho que não nos deixa sorrir. Bastou a Putin acenar com a mijinha territorial e levanta-se o clamor contra o famigerado desequilíbrio que (na selva) a Nato quis provocar. Esquecem-se, entretanto, de referir – aqueles para quem a Nato, na esteira de Putin, teve movimentos expansionistas adentrando-se nas fronteiras de influência da Rússia – que os países que se candidatam à Nato, não são aliciados; pelo contrário: é por pedido expresso dos países que a sua entrada na Nato tem lugar. É um pormenor: pede protecção quem não se sente seguro em relação às “boas” intenções do vizinho. Demonstradas na Geórgia e na Crimeia. São os países (soberanos) que pedem protecção à Nato. Ainda ontem o porta-voz do Kremlin ameaçou suecos e finlandeses, hoje já as tropas russas se avolumam nas fronteiras finlandesas. Com que direito? Nas entrevistas de Putin com Oliver Stone, o posicionamento do novo Czar é muito claro: ele rejeita o comunismo e capturou o sistema para forjar um novo regime, mais próximo dos nacionalismos tradicionais e místicos que ramificam na extrema-direita. Daí as ligações de Putin a Marine Le Pen. É difícil entender a adesão de tanta gente de esquerda às teses de Putin a não ser por reflexo de uma nostalgia patológica face a uma referência revolucionária de todo perdida. Para ilusoriamente se manterem fiéis aos “princípios” aterram nos hangares da extrema-direita. Mesmo com a “saudosa” União Soviética a solidariedade da Internacional Socialista era uma cilada com aspectos tão reprováveis como as manobras dos países doadores na sua “ajuda” aos países africanos. E assim, “legitimamente”, a União Soviética rapava todo o peixe das costas moçambicanas e deixava aos camaradas moçambicanos o carapau, com tal exclusividade que nos anos oitenta (à falta de outros espécimes na mesa) até sobremesas de carapau se inventaram. De modo semelhante, os chineses hoje rapam as florestas, os espanhóis o marisco, os franceses o gás e, etc. Cada “apoio” ao orçamento de estado corresponde sempre ao interesse velado de mamar em qualquer matéria-prima. Daí que os países africanos não se sintam “gratos” o suficiente para alinharem com o repúdio do Ocidente à agressão russa: têm sido espoliados por todos. Há também a fobia aos EUA, convulsiva, na escolha de muitos. Aí, entre uma adesão decapitadora e uma rejeição epidérmica, irracional, instala-se um ímpeto cego de crença. É a prova definitiva de que a disputa política raras vezes escolhe a razão como ringue. É igualmente preocupante o facto do Ocidente estar a pôr todos os seus trunfos num peão que lhe despertou uma chama heróica, mas que igualmente não é impoluto. É provável que, em não sendo a guerra, Zelensky estivesse a contas com alguma crise no seu governo, dado o que foi revelado nos Panama Papers, e a sua bizarra aliança com o sinistro batalhão Azov. A guerra foi-lhe favorável, e fica mais difícil penetrar na obscuridade com que as informações e as contrainformações saturam de luz o palco. Porém, há coisas que são muitíssimo claras, para além da inaceitabilidade da invasão da Ucrânia. A primeira agressão de Putin é ao próprio povo russo. Para perpetrar a invasão, Putin mentiu aos seus recrutas e enviou-os para uma armadilha. Os atarantados lá foram, sem saber ao que iam. Neste momento, anulada a mínima liberdade de informação, o russo foi massivamente arredado de qualquer noção da realidade. Proibido de inteirar-se do que se passa, o povo russo é tratado como uma massa infantil a quem se proíbem os bombons porque apesar do espelho reflectir corpos franzinos o regime dita que estão obesos. As notícias indirectas chegadas através da inflacção galopante, do desaparecimento dos produtos no mercado, ou do estranho sumiço dos filhos idos para os exercícios militares, fazem-lhes pressentir algo que, sob pressão de uma ansiedade habituada a reprimir-se, os leva a ceder à paranoia: como no estalinismo, os russos já denunciam colegas e vizinhos (e professores) pela posição crítica em relação à guerra. A vergonha desta bufaria levará gerações a ser ultrapassada. A segunda agressão de Putin ao seu povo é a denegação da morte. Os nazis encobriram o máximo de anos possível a existência de campos de concentração e a sua indústria de morte programada. Da Rússia, com um mês de combates, já sabemos que – se, em relação ao inimigo, visa sem escrúpulos os civis – incinera os seus militares mortos para que o grosso deles “desapareça” em combate, adiando o mais possível a entrega do cadáver aos familiares. Para Putin, a morte, sempre exterior, nada significa. Como para os nazis, os mortos deixaram há muito de ter nome, são exclusivamente números, abstracções dispensáveis. Mas quanto a isto, se o seu inimigo já o sabe, os russos que não participam directamente da guerra estão a leste duma consciência clara sobre o estado volátil dos seus mortos. Apesar da democracia ser um sistema imperfeito, há uma diferença abismal entre a persuasão retórica e a repressão que coage os próprios pensamentos, entre os desequilíbrios sociais que renhidamente vão sendo denunciados e os desequilíbrios fundados em castas duma instância política inamovível, entre a corrupção que vive na ilegalidade e a que impele (sob risco da miséria) toda a gente a participar do esquema; etc., etc. A democracia ainda permite a disseminação de simulacros culturais que moldam novos ritos e mediações, o actual regime russo vive na e da lei da selva. A da impossível reparação. Não creio que possa haver escolha. Escreveu uma criança ucraniana para a mãe, morta: “Mamã, desejo-te boa sorte, no céu”. Depende, se aí ainda houver leveza.