h | Artes, Letras e IdeiasTerceiro acto – Cena 5 Gonçalo Waddington - 23 Fev 2022 Os dois amigos deixam-se ficar em silêncio durante algum tempo. Há uma fina cortina de fumo que paira na sala. Apesar da janela estar fechada, ainda se ouve o murmúrio da floresta no exterior. Gonçalo E se a tua aluna te vê assim? Valério Assim, como? Gonçalo Deitado no sofá, afundado no poço, com as lágrimas a caírem-te dos olhinhos… Valério Pois… [pausa] Isso não pode vai acontecer. Gonçalo Ela até pode achar interessante… um estímulo positivo na vossa nova relação: um professor inteligentíssimo, que faz mergulhos de escafandro na sua própria depressão… “Ai, ele é incrível, até domina o seu lado mais negro…” Valério Mais uma razão para eu ficar quieto. Gonçalo … Ou então ela resgata-te do poço e deixas aos poucos de fazer os teus mergulhos higiénicos, muito apreciados pela tua alminha sensível… Valério Talvez… Gonçalo E depois dás por ti a sentir falta dos mergulhos, daquele hábito diário, tão entranhado que estava… e pouco a pouco começas a detestá-la: primeiro a evitar o olhar dela, depois o toque… depois vais deixando de lhe falar… [pausa] Até que ela acaba por desistir de tentar comunicar e vai-se embora… sem nunca saber o que terá acontecido. Valério Perspectiva animadora, sim senhor. Gonçalo Mas realista, não? Valério Em que sentido? Gonçalo De deixar andar… até apodrecer. Valério Talvez. Gonçalo Seria o mesmo com bebida ou com droga… o amor salva, mas também limita. [pausa] Quem disse que queríamos ser salvos? Gonçalo vai até à mesa e começa a desarrolhar outra garrafa de vinho tinto. Os seus movimentos são atabalhoados, ele próprio ri-se da sua falta de jeito potenciada pelo nível crescente de álcool no sangue. Valério [rindo] São umas egoístas, essas pessoas. Gonçalo Já não se pode beber até cair sem que nos chamem à atenção para a vida que estamos a deitar fora! Valério E para o tempo desperdiçado… Gonçalo volta ao seu lugar. Antes de se sentar, serve os dois copos que Valério segura. Os dois erguem os copos e fazem um brinde desajeitado. Pega cada um no seu cigarro e acendem à vez, partilhando o isqueiro. Regressa o silêncio, acamado pelo murmúrio que vem lá de fora. Valério Não tens vizinhos? Gonçalo Boa pergunta… não faço ideia. [pausa] Há por aí umas casas… Valério Não me lembro de ver nenhuma no caminho. Gonçalo Da estrada não se vêem muitas, mas se andares pelo meio da floresta… Valério Tens de me levar a passear, então… Gonçalo Sim, quando amanhecer. Mais uma vez deixam que o silêncio invada a pequena casa de montanha. Gonçalo vai até à lareira. Pega num toro de madeira com a tenaz e põe-no por cima das brasas incandescentes. Sopra- as brasas para atiçar o lume. Valério Porque é que não foste ao funeral? Gonçalo observa as chamas que consomem a madeira recém-chegada. Dá várias passas seguidas no seu cigarro. Depois de terminado, atira a ponta para as brasas. Tira outro cigarro do maço que tem no bolso e usa a tenaz para trazer uma pequena brasa à boca. Acende o fumante, pousa a brasa e a tenaz, e põe-se outra vez a observar as pequenas labaredas. Valério Ninguém te levou a mal… não há maneira certa de reagir à morte. [pausa] Acho eu… Mas houve perguntas… “Onde é que ele está?”… “Porque é que ele não veio?”… “Andavam chateados?”… Gonçalo E as tuas? Valério As minhas quê? Gonçalo Perguntas… Quais são as tuas? Valério Não tenho… [pausa] Quer dizer, já a fiz. Gonçalo Pois… Gonçalo regressa ao seu lugar, ao lado do amigo, e põe-se a olhar um ponto distante, como se pensasse cuidadosamente no que irá dizer. Gonçalo Estive quase a sair de casa… mas não me consegui levantar do sofá. Estava com o casaco vestido, tinha as chaves de casa no bolso e os óculos escuros postos. Mas não me consegui levantar… [pausa longa] Há aqui um filão a explorar, não sei se reparaste…? Valério [surpreendido] Qual? Gonçalo Homens solteiros e solitários… sofá… depressão… Valério Não é novidade. Gonçalo Certo… [pausa] A que horas acabou? Valério Por volta as cinco. Gonçalo Pois. Foi quando finalmente me levantei… mais coisa, menos coisa. Valério Estiveste essas horas todas sentado? Gonçalo Estive, pois. Valério Uns descem ao poço deitados, outros descem sentados. Gonçalo Não sei se desci. Valério [sorrindo] Foi só cobardia? Gonçalo Talvez… Valério Estou a brincar. Gonçalo Eu percebi… Mas talvez tenha sido, sim. Valério Não é preciso desceres ao fundo do poço… às vezes já andas sem saber. Gonçalo Verdade. Valério É uma vibração constante, muito ténue… que às vezes não se nota, mas está lá sempre presente. [pausa] Talvez eu use as minhas sessões de descensão precisamente para reconhecer a existência dessa pequena nota constante na minha vida. Gonçalo És muito poético em relação a esse estado… Valério Pois sou. Gonçalo Romantiza-lo muito, na minha opinião… Valério Talvez… [pausa] Uns sentam-se e apagam, outros deitam-se e romantizam. Gonçalo E há os que escondem essa música durante uma vida inteira… e quando finalmente são apanhados e a ouvem, vão atrás dela, como a criançada vai atrás do flautista… e adeus.