Terceiro acto – Cena 5

Os dois amigos deixam-se ficar em silêncio durante algum tempo. Há uma fina cortina de fumo que paira na sala. Apesar da janela estar fechada, ainda se ouve o murmúrio da floresta no exterior.

Gonçalo
E se a tua aluna te vê assim?

Valério
Assim, como?

Gonçalo
Deitado no sofá, afundado no poço, com as lágrimas a caírem-te dos olhinhos…

Valério
Pois… [pausa] Isso não pode vai acontecer.

Gonçalo
Ela até pode achar interessante… um estímulo positivo na vossa nova relação: um professor inteligentíssimo, que faz mergulhos de escafandro na sua própria depressão… “Ai, ele é incrível, até domina o seu lado mais negro…”

Valério
Mais uma razão para eu ficar quieto.

Gonçalo
… Ou então ela resgata-te do poço e deixas aos poucos de fazer os teus mergulhos higiénicos, muito apreciados pela tua alminha sensível…

Valério
Talvez…

Gonçalo
E depois dás por ti a sentir falta dos mergulhos, daquele hábito diário, tão entranhado que estava… e pouco a pouco começas a detestá-la: primeiro a evitar o olhar dela, depois o toque… depois vais deixando de lhe falar… [pausa] Até que ela acaba por desistir de tentar comunicar e vai-se embora… sem nunca saber o que terá acontecido.

Valério
Perspectiva animadora, sim senhor.

Gonçalo
Mas realista, não?

Valério
Em que sentido?

Gonçalo
De deixar andar… até apodrecer.
Valério
Talvez.

Gonçalo
Seria o mesmo com bebida ou com droga… o amor salva, mas também limita. [pausa] Quem disse que queríamos ser salvos?

Gonçalo vai até à mesa e começa a desarrolhar outra garrafa de vinho tinto. Os seus movimentos são atabalhoados, ele próprio ri-se da sua falta de jeito potenciada pelo nível crescente de álcool no sangue.

Valério
[rindo]
São umas egoístas, essas pessoas.

Gonçalo
Já não se pode beber até cair sem que nos chamem à atenção para a vida que estamos a deitar fora!

Valério
E para o tempo desperdiçado…

Gonçalo volta ao seu lugar. Antes de se sentar, serve os dois copos que Valério segura. Os dois erguem os copos e fazem um brinde desajeitado. Pega cada um no seu cigarro e acendem à vez, partilhando o isqueiro. Regressa o silêncio, acamado pelo murmúrio que vem lá de fora.

Valério
Não tens vizinhos?

Gonçalo
Boa pergunta… não faço ideia. [pausa] Há por aí umas casas…

Valério
Não me lembro de ver nenhuma no caminho.

Gonçalo
Da estrada não se vêem muitas, mas se andares pelo meio da floresta…

Valério
Tens de me levar a passear, então…

Gonçalo
Sim, quando amanhecer.

Mais uma vez deixam que o silêncio invada a pequena casa de montanha. Gonçalo vai até à lareira. Pega num toro de madeira com a tenaz e põe-no por cima das brasas incandescentes. Sopra- as brasas para atiçar o lume.

Valério
Porque é que não foste ao funeral?

Gonçalo observa as chamas que consomem a madeira recém-chegada. Dá várias passas seguidas no seu cigarro. Depois de terminado, atira a ponta para as brasas. Tira outro cigarro do maço que tem no bolso e usa a tenaz para trazer uma pequena brasa à boca. Acende o fumante, pousa a brasa e a tenaz, e põe-se outra vez a observar as pequenas labaredas.

Valério
Ninguém te levou a mal… não há maneira certa de reagir à morte. [pausa] Acho eu… Mas houve perguntas… “Onde é que ele está?”… “Porque é que ele não veio?”… “Andavam chateados?”…

Gonçalo
E as tuas?

Valério
As minhas quê?

Gonçalo
Perguntas… Quais são as tuas?

Valério
Não tenho… [pausa] Quer dizer, já a fiz.

Gonçalo
Pois…

Gonçalo regressa ao seu lugar, ao lado do amigo, e põe-se a olhar um ponto distante, como se pensasse cuidadosamente no que irá dizer.

Gonçalo
Estive quase a sair de casa… mas não me consegui levantar do sofá. Estava com o casaco vestido, tinha as chaves de casa no bolso e os óculos escuros postos. Mas não me consegui levantar… [pausa longa] Há aqui um filão a explorar, não sei se reparaste…?

Valério
[surpreendido]
Qual?

Gonçalo
Homens solteiros e solitários… sofá… depressão…

Valério
Não é novidade.

Gonçalo
Certo… [pausa] A que horas acabou?

Valério
Por volta as cinco.

Gonçalo
Pois. Foi quando finalmente me levantei… mais coisa, menos coisa.

Valério
Estiveste essas horas todas sentado?
Gonçalo
Estive, pois.

Valério
Uns descem ao poço deitados, outros descem sentados.

Gonçalo
Não sei se desci.

Valério
[sorrindo]
Foi só cobardia?

Gonçalo
Talvez…

Valério
Estou a brincar.

Gonçalo
Eu percebi… Mas talvez tenha sido, sim.

Valério
Não é preciso desceres ao fundo do poço… às vezes já andas sem saber.

Gonçalo
Verdade.

Valério
É uma vibração constante, muito ténue… que às vezes não se nota, mas está lá sempre presente. [pausa] Talvez eu use as minhas sessões de descensão precisamente para reconhecer a existência dessa pequena nota constante na minha vida.

Gonçalo
És muito poético em relação a esse estado…

Valério
Pois sou.

Gonçalo
Romantiza-lo muito, na minha opinião…

Valério
Talvez… [pausa] Uns sentam-se e apagam, outros deitam-se e romantizam.

Gonçalo
E há os que escondem essa música durante uma vida inteira… e quando finalmente são apanhados e a ouvem, vão atrás dela, como a criançada vai atrás do flautista… e adeus.

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