Citius, Altius, Fortius – Veritas

Têm sido os Jogos das atletas: à falta de público nas bancadas, da habitual ostentação de impantes patrocinadores, da procura de visibilidade mediática para dirigentes desportivos e políticos com mais ou menos propósito e dependentes de posicionamentos geo-políticos diversos, estas Olimpíadas têm tido pouco mais do que o exercício dos jogos em si mesmo, a competição desportiva reduzida à sua essência, atletas a disputar vitórias e medalhas perante câmaras que hão-de dar visibilidade a uma solidão improvável para as Olimpíadas. Não é que tenham faltado motivos para, por exemplo, se reacenderem velhas Guerras Frias, mas mesmo a compulsiva exclusão da Rússia havia de ser sabiamente compensada e drasticamente atenuada pela participação da enigmática ROC, sigla inicialmente incompreensível para espectadores com menos dedicação à causa, mas hoje já familiar a quem acompanhe os Jogos, mesmo com alguma reserva e distância.

Foi aliás num desses momentos mais propícios à frieza da guerras geopolíticas antigas que a História foi registando em Olimpíadas diversas que as atletas decidiram afinal oferecer um exemplo magnífico e anacrónico de desportivismo, respeito por rivais, solidariedade entre quem dedica esforço máximo e quase toda a vida a dar o melhor de si para se aperfeiçoar no exercício desportivo, na celebração do jogo: a formidável equipa de ginástica dos Estados Unidos tinha perdido a sua melhor atleta em plena competição, teve que disputar a final colectiva com essa inevitável desvantagem, acabaria por ver interrompida uma hegemonia planetária de quase 30 anos, agora conquistada pela Rússia, aliás a ROC, a maior herdeira da magnífica tradição soviética que nas últimas décadas foi sistematicamente derrotada pelas rivais da América do Norte, essas que no momento da derrota atravessam ténues fronteiras implícitas nos territórios do pavilhão, para beijarem e abraçarem as novas campeãs olímpicas, transformando subitamente guerras frias em amizades quentes. Disso certamente pouco se falará, que os tempos mediáticos são mais propícios à exaltação do sangue que possa correr em cada arena competitiva, à glória de quem ganha e à miséria de quem perde, com pouco ou nenhum espaço para eventuais e anacrónicas fraternidades entre quem joga o jogo que tem a jogar e sabe da efemeridade de cada resultado.

Foi nessa prova que se assistiu a um dos mais dramáticos momentos dos Jogos até agora: a desistência da ginasta norte-americana Simone Biles, super-favorita a conquistar todas as medalhas em disputa, individuais e por equipas, em qualquer dos aparelhos. Era também candidata a igualar ou melhorar históricos recordes de medalhas conquistadas por ginastas em Olimpíadas anteriores e tinha sobre si todos os olhares de quem aprecia a modalidade.

Falharia rotundamente, no entanto, em até em sentido literal: que o corpo faça pirueta e meia quando estava preparado, treinado e programado para duas piruetas e meia é suficiente para confundir e desestabilizar um cérebro que ali e naquele momento opera em concentração máxima, quando cada centésimo de segundo é decisivo para a performance que dura alguns minutos, poucos mas que oferecem corolário inevitável a anos de esforço, preparação, mentalização, criatividade, inteligência, superação a cada dia, todos os dias. É essa a vida de qualquer ginasta e nem vale a pena entrar nos detalhes do percurso particular que levou Simone Biles até Tóquio, que também inclui um ambiente familiar violento e casos de abuso sexual por parte de um médico da equipa de ginástica dos Estados Unidos. Afinal, no tapete é só ela e os seus demónios, assume a super-ginasta, um prodígio atlético, que afinal assume tranquilamente a sua fraqueza perante o mundo, a sua verdade, a importância de preservar a saúde mental neste planeta em que o lema olímpico “mais rápido, mais alto, mais forte” parece ter sido abusivamente adaptado para servir de mote a uma sociedade despojada de solidariedade comunitária e obcecada com vertiginosos processos competitivos onde, na realidade, acabamos sempre por perder qualquer coisa.

Simone Biles não foi, no entanto, a única super-estrela do firmamento desportivo a sair sem a espera glória mas com inesperada humildade desta peculiar edição dos Jogos, marcada por esse triste isolamento e distanciamento social que a convivência possível com a pandemia de covid-19 implica. Também Naomi Osaka, tenista de excelência, a jogar no Japão e pelo Japão, o seu país de nacionalidade mas onde nem sempre viveu e onde os filhos de pessoas japonesas com pessoas estrangeiras, como ela, são carinhosamente tratadas por “metade”, acabaria por ter uma participação em competição muito abaixo do que os seus pergaminhos nos rankings internacionais poderiam fazer prever. Neste caso, as fraquezas até já se tinham revelado antes dos Jogos: jogar é bom mas enfrentar a avidez da imprensa é um acto de violência para o qual se assume impreparada, recusando até participar em torneios do chamado “Grand Slam”, naturalmente com muito generosos prémios, para não ter que enfrentar despropositados interrogatórios de jornalistas a seguir ao esforço do jogo. Tal como Simone Biles, Naomi Osaka, quer pôr a integridade possível da sua saúde mental à frente da insanidade competitiva das sociedades contemporâneas e da respectiva implacável mediatização permanente. Ficamos com a generosidade da verdade destas fraquezas humanas para agradecer a estas super-atletas.

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