LGBT | ViuTV arrisca com comédia sobre triângulo amoroso gay

A série “Ossan’s Love” estreou-se na televisão de Hong Kong no mês passado e o impacto ainda se faz sentir em Macau. É o programa mais visto de sempre da ViuTV, muda o paradigma das personagens gays na televisão, tornou-se um programa de culto para fãs da banda Mirror e recebe elogios da comunidade LGBT

 

“Ossan’s Love” (em português Paixão de um Homem com Meia Idade) é a série televisiva do momento em Macau e Hong Kong e o programa mais visto de sempre do canal ViuTV. Desde que a série sobre um triângulo amoroso homossexual começou a ser transmitida no mês passado, os impactos em Hong Kong e Macau foram profundos, principalmente entre os telespectadores mais novos e o público feminino.

Ao contrário dos enredos habituais na televisão de Hong Kong, o triângulo amoroso envolve três homens e é essa a grande novidade que tem contribuído para a grande popularidade. A escolha para o elenco de membros da popular boys band Mirror foi a cereja no topo do bolo que garante o sucesso de “Ossan’s Love”.

O enredo é importado do Japão. A ViuTV fez um remake de uma série que já tinha sido gravada e transmitida no país nipónico, dentro do género Boys’ Love (Yaoi, em japonês), ou seja, histórias de rapazes extremamente bonitos que se apaixonam.

A comédia é construída a partir do momento em que o patrão de uma empresa, a personagem Zaak Kwok Keung, interpretada por Kenny Wong, um homem mais maduro, se apaixona pelo subordinado Tin Yat Hung, um jovem representado por Edan Lui. No meio de alguns comportamentos excessivos de Zaak, que servem o propósito da comédia, Tin, heterossexual, sente necessidade de desabafar com o colega Ling Siu Muk, também ele mais jovem, interpretado por Anson Lo. É nessa altura que o jovem Tin percebe que, além do patrão, também o amigo está apaixonado por si.

A imagem positiva

Em termos de audiências televisivas, em Macau não existem dados disponíveis, mas nos restaurantes é mais comum ver televisões sintonizadas na TVB do que na TDM, o que mostra a preferências pelos canais da RAEHK.

Em Hong Kong, de acordo com os dados revelados pelo portal HK01, a ViuTV conseguiu um share de 6,4 por cento, nos dias da semana entre 28 de Junho e 2 de Julho. Foi com uma larga distância a melhor marca de sempre um programa deste canal televisivo, que aposta numa audiência mais jovem, em comparação com a TVB.

Em Macau, entre a comunidade LGBT, sucesso da série é encarado como um sinal de progresso. Foi o que contou ao HM Anthony Lam, líder da Associação Arco-Íris de Macau. “É positivo haver um programa que mostra às audiências de Hong Kong e Macau casais do mesmo sexo”, destacou. Lam desvaloriza o excesso da comédia, por considerar que as pessoas têm a capacidade para diferenciar entre a vida real e o que acontece no pequeno ecrã.

Uma opinião semelhante foi apresentada por Jason Chao, activista dos direitos da comunidade LGBT e um dos fundadores da Associação Arco-Íris de Macau. Apesar de estar a estudar em Inglaterra, Chao não deixou de ver o primeiro episódio. “O género Boys’ Love tem contribuído para a promoção da inclusão social das relações românticas homossexuais, porque por norma apresenta uma imagem positiva, com actores extremamente bem-parecidos, de homens gays, seja em séries, desenhos animados, mesmo em músicas ou pinturas”, explicou Chao.

“Fico feliz por saber que a indústria de Hong Kong está finalmente a aderir a este género e a utilizar alguns elementos de Boys’ Love”, acrescentou.

Mudança de paradigma

A aceitação de “Ossan’s Love” e a aposta no género Boys’ Love reflecte uma mudança mais profunda na forma como a comunidade LGBT é representada nos média, e, em particular, no cinema e na televisão.

Até à década de 90, as personagens homossexuais eram ignoradas ou quase sempre associadas a características negativas e doentias. Foi o que explicou, ao HM, Lei Pan Chin, professor assistente no Departamento de Comunicação da Universidade de Macau. Além de doutorado em Estudos Culturais e dos Média, Lei tem-se dedicado à investigação nas áreas do cinema chinês, cultura popular, estudos de género e média.

“Antes de meados da década de 90, as representações de gays e lésbicas no cinema de Hong Kong eram muito negativas. Na televisão eram inexistentes. Por exemplo, no filme “Pantyhouse Hero” (1990) os homossexuais são apresentados como assassinos tarados e efeminados”, contou Lei Pan Chi em relação ao filme realizado e protagonizado por Sammo Hung. “É uma situação que reflecte o que também se passava em Hollywood. Nessa altura, havia essencialmente dois tipos de representação de homossexuais: o primeiro tipo era para fazer as pessoas rir, o segundo era para assustar”, complementa.

É em meados da década de 90 que as coisas começam a mudar na direcção de maior aceitação da homossexualidade nos média. Segundo Lei, um dos exemplos mais precoces da mudança foi o filme “Happy Together”, de 1997, realizado por Wong Kar Wai. O filme retrata um casal gay, interpretado pelas superestrelas Leslie Cheung e Tony Leung, que procura reacender a chama de uma relação turbulenta. As cenas de sexo não foram deixadas de fora.

Anthony Lam também sublinhou que “Ossan’s Love” tem o mérito de mostrar personagens gays através de um prisma positivo. “Antes os homossexuais eram apresentados como criminosos ou tarados, mas esta série optou por reflectir a vida normal das pessoas homossexuais. Eles trabalham e vivem como todos os outros”, justifica.
Lam faz ainda o paralelismo entre a personagem Zaak, o patrão de meia idade, e a vida das gerações mais velhas.

“Remete-nos para a triste realidade de muitos homens gay que eram forçados a entrar em famílias mainstream, através do casamento com uma mulher. Alguns até tiveram filhos”, indicou. “Quando estas pessoas se tornam mais velhas, e com os filhos crescidos, começam a sentir-se mal por se esconderem. Tal como acontece na série, algumas pessoas homossexuais escolhem divorciar-se e viver a vida como gays, seja abertamente ou secretamente”, frisou.

As razões do sucesso

Segundo a análise de Lei Pan Chin há três razões que permitiram à ViuTV lançar um projecto novo com tanto sucesso: a maior abertura da sociedade, a aposta num segmento jovem e a popularidade dos actores que fazem parte da boys band Mirror.

“Depois de muitos anos, o movimento social fez com que a sociedade esteja mais aberta para os assuntos das comunidades gay e lésbica. Isto é um dos factores que explica o sucesso de ‘Ossan’s Love’”, atirou.

Porém, Lei não esquece que a série, à imagem do canal, aposta numa audiência mais jovem. “Quando olhamos para a programação da ViuTV, é notório que têm uma mentalidade muito mais aberta e são muito mais criativos, em comparação com a TVB, que é um canal muito conservador”, justificou.

Por último, Pan destaca a aposta na banda do momento em Hong Kong. Edan Lui e Anson Lo, dois dos protagonistas da série, já contam com uma significativa e dedicada base de fãs da banda a que pertencem. “A popularidade dos Mirror ajuda muito. Estamos a falar de estrelas masculinas que se estão a tornar cada vez mais populares e que têm cada vez mais fãs. De certeza que todos estes fãs assistem lealmente à série”, sustentou o académico.

“Os membros dos Mirror são também rapazes bonitos e com um ar angelical, o que contribui significativamente para a popularidade da série”, acrescentou. “Acredito que se os actores escolhidos fossem os que normalmente fazem parte do elenco da TVB, que a série não teria tido este sucesso”, rematou.

O amor entre rapazes extremamente atraentes é uma das características essenciais do género Boys’ Love, e, de acordo com Pan, parte da popularidade explica-se com as “audiências femininas” que “gostam de ver dois rapazes bonitos tornarem-se namorados”.

Por sua vez Jason Chao admite ser fã do género Boys’ Love e ver alguns programas muito pela beleza dos actores. Todavia, não deixa de reconhecer que o género não é totalmente pacifico, por contribuir para uma imagem irrealista: “Uma das críticas que normalmente é feita pelo movimento LGBT ao género Boys’ Love é que apenas apresenta o melhor lado das relações gay. E nós sabemos que na realidade, há homossexuais com todas as idades e vindos de todas as classes”, destaca.

Considerações à parte, “Ossan’s Love” está a ser um sucesso e a ViuTV já se comprometeu a gravar mais episódios, desta feita originais, sem seguir o enredo japonês.

Boys’ Love: a pensar nas mulheres

Boys’ Love é um género da banda desenhada japonesa, criado nos anos 70. As histórias normalmente giram em torno de romances entre dois homens, a pensar nas audiências femininas. As personagens masculinas tendem a apresentar traços idealizados, e muitas vezes traços de personalidades mais associados a personagens femininas. Por sua vez, a mulher assume um papel secundário nas narrativas. Tradicionalmente, o género tem sido desenvolvido por mulheres e para mulheres, o que também faz com que se distinga da manga erótica homossexual. Este é um género de manga que conquistou o seu espaço, e chegou ao Ocidente, onde encontrou se tornou popular entre a comunidade LGBT.

Mirrormania

Muito do sucesso da série “Ossan’s Love” está na dupla Anson Lo e Edan, membros da banda Mirror. Criado em 2018, no programa de talentos Good Night Show – King Maker, também do canal ViuTV, os Mirror são constituídos também por Keung To, Ian Chan, Alton Wong, Anson Kong, Frankie Chan, Jer Lau, Jeremy Lee, Lokman Yeung, Stanley Yau e Tiger Yau, num total de 12 membros. A popularidade da banda é atestada não só pelos espectáculos realizados, mas pelos contratos de publicidade dos seus membros, com cadeias internacionais de hambúrgueres, marcas de gelados, entre outras. Nos aniversários dos membros, os fãs pagam outdoors, anúncios publicitários em autocarros e barcos especiais em Hong Kong para desejar os parabéns aos cantores. Com um sucesso assinável entre o público feminino, a banda esteve na origem da criação da página em língua chinesa “A Minha Esposa é Fãs dos Mirror por isso o Nosso Casamento Ruiu”. A página tem mais de 250 mil seguidores e é actualizada praticamente ao minuto.

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