Divina Comédia h | Artes, Letras e IdeiasA arte de viajar sem sair do lugar Nuno Miguel Guedes - 25 Jun 2021 Roda de amigos, conversa mansa e sem destino como é sempre a melhor conversa. Alguém que diz, falando dos tempos que correm: “O que sinto mais falta é de viajar”. Curioso, pensei e disse na altura, repetindo agora para supremo benefício do leitor benévolo. A mim não me faz falta nenhuma. Na verdade, nunca fui grande adepto de viagens e mesmo que fosse atraído por algum romantismo inerente ao viajante profissional isso estaria destruído pela burocracia sanitária que nesta altura nos infligem. Pode parecer triste para alguns ou até mesmo algo cínico e limitado – e isto garanto que na altura não terei dito – mas a verdade é que a noção de descobrir povos, lugares e costumes tendo de me deslocar nunca me foi atraente. Para minha magra defesa sempre direi que tive a sorte de viajar e conhecer algum mundo e na devida altura. Aprendi, como sempre se aprende, com a diferença ou as semelhanças inesperadas. Em alguns lugares, como a minha amada Irlanda, terei sido “feliz”, para usar uma formulação utilitária. Mas mesmo assim. Ao procurar razões para este sedentarismo convicto deparei-me sem surpresas com o passar do tempo: as coisas perdem novidade, o entusiasmo decresce, o tédio avança e o gosto pelo familiar domina naturalmente à vontade. Para o nómada voluntário e ansioso de se misturar com outras “culturas”, isto seria desastroso e compreendo. Para quem sempre esteve e está habituado a viajar sem sair do lugar é apenas um transtorno menor e quase bem-vindo. Explico, sob o risco assumido de parecer pretensioso: gosto de viajar nos livros. Em pequeno, ao colo de Stevenson, Verne ou Salgari. Fui a todo o lado sem sair da sala – de resto como o próprio criador de Sandokan ou Corsário Negro, que sempre terá visto a Malásia ou o mar das Caraíbas sem a maçada de se ter de levantar da secretária. Depois, mais tarde, a descoberta de um género literário pouco ou nada cultivado por estas bandas: a literatura de viagens. Como em tanta coisa, a cultura anglo-saxónica tratou de mostrar o caminho. E o caminho é este espelho, às vezes distorcido, que nos devolve o outro, a sua cumplicidade ou estranheza. Por exemplo, os relatos dos ingleses em Portugal durante os séculos XVIII e XIX sempre me fascinaram. E não falo das hipérboles sintrenses de Beckford ou Byron. No magnífico Retratos de Portugal – Sociedade e Costumes, escrito pelo capitão de infantaria escocês Arthur William Costigan entre 1778 e 1779 e que é uma recolha das cartas dirigidas ao irmão encontramos uma descrição notável e obviamente parcial do Portugal daquele tempo. Gosto muito de uma carta em particular em que o oficial se encontra em Faro na companhia de um adido militar britânico e um jovem padre português. Falam da biblioteca do Vice-Rei dos Algarves e o adido nota a escassez de livros interessantes, com a excepção de dois ou três sobre estratégia militar e uma Bíblia. Depois isto, que cito: “À palavra Bíblia, pronunciada pelo senhor Bagot, o jovem padre mostrou grande desejo de a ler, dizendo tratar-se de um livro que nunca lhe chegara às mãos”. Portugal, país de viajantes por necessidade, engenho e terna cupidez, também tem os seus relatos. Mas o género, infelizmente, nunca se consagrou como no Reino Unido ou, de forma mais discreta mas nem por isso menos interessante, noutros países. Embarco de memória nos extraordinários livros de Peter Fleming (o irmão mais velho de Ian, o do James Bond, mas igualmente um sucesso editorial) ou abandono-me ao extraordinário On A Chinese Screen, livro de viagens de Somerset Maugham com capítulos quase impressionistas mas em que se consegue perceber a génese dos seus melhores contos. Aqui mesmo ao meu lado espera-me a primeira edição (1946) de When The Going Was Good, do meu ídolo Evelyn Waugh. Escrito entre 1929 e 1936 é uma jóia de humor, snobeira e descrição. Não resisto à citação de algumas linhas no original, escritas em Addis Abbeba na véspera da invasão de Mussolini e perfeitas na fotografia dos personagens: “ There was an American who claimed to be a French viscount and represented a league, founded in Monte Carlo, for the provision of an Ethiopian Disperata Squadron for the bombardment of Assab. There was a completely unambiguous British adventurer, who claimed to have been one of Al Capone’s bodyguard and wanted a job; and an ex-officer of the R.A.F. who started to live in some style with a pair of horses, a bull terrier and a cavalry moustache – he wanted a job too.” Que galeria, que de matéria literária e de sonhos! Mesmo leituras de viagem que nos dão conta de sombras mais negras são necessárias: recomendo vivamente o que ando a ler de forma voraz: Travellers In The Third Reich, de Julia Boyd (2017). A autora serve-se de cartas e testemunhos de turistas, diplomatas, celebridades e anónimos locais para traçar um retrato assustador e ao mesmo tempo cândido dos anos de ascensão do nazismo – onde o visitante, no limite, apenas poderia suspeitar o que se iria passar. Por outro lado, através dos testemunhos dos alemães pós- Tratado de Versalhes compreendemos como medrou depressa e de forma horrenda o terror subsequente. Ah, viajar, viajar. Pois sim. Destinos exóticos? Trocava-os todos por um bilhete de regresso à Irlanda ou aos Açores, o único lugar que realmente desejo conhecer. Até lá fico-me bem com estas palavras-espelhos. Que as cultivem, que não me sejam negadas, para bem da minha preguiça e necessidade de viagens inesquecíveis.