Artes, Letras e IdeiasSegundo acto – Cena 4 Gonçalo Waddington - 22 Abr 2021 Os dois militares ficam em silêncio, nada mais há para dizer a propósito do assunto Os Panteras vs Os Pantufas. O Major volta a cruzar os pés em cima do tampo da secretária e reacende o seu canhão Cubano. O Capitão acende um cigarro. Os dois fumam em silêncio. Gonçalo continua a articular o seu discurso, inaudível, mexendo a boca, e só a boca, incessantemente. O Major olha-o, intrigado. Major [indicando Gonçalo] E agora temos ali aquele peixe fora d’água… raios m’ partam! De onde é que ele apareceu? Capitão [suspira] Está cá desde ontem… ninguém o viu entrar. Não se sabe como é que ele entrou. Major Mas ele… surgiu… apenas? Isto é uma base militar altamente secreta… Ou pensávamos nós que era! Está a dizer-me que aquele indivíduo, com roupas estranhas – será uma farda militar desconhecida? – passou despercebido por todos os portões e todas as portas, sem dar cavaco a ninguém e deitou-se aqui para dar à guelra? Capitão Meu Major, parece-me impossível que alguém possa chegar aqui sem ser identificado, pelo menos, em três pontos: o portão principal, o portão intermédio – antes de começarmos a descer aos pisos subterrâneos – e a porta azul, antes desta sala onde nos encontramos agora. E isto é num dia calmo… eu já cheguei a ser identificado sete vezes antes de aqui chegar. Major [interrompendo] E muito bem! Capitão E muito bem, sim, meu Major! Major [rindo] Ó homem, relaxe. Capitão [sorrindo, atrapalhado] Sim, meu Major… Major O som do coro bem melado nada tinha de meloso… Capitão [confuso] Perdão? Major [rindo] O som do coro bem melado nada tinha de meloso. Capitão [a medo] Não percebo. Major Pois não… Mas a culpa não é sua. [pausa] Nem minha…! O som do coro bem melado nada tinha de meloso… [pausa] Coisas minhas… Gosto de poesia, sabe. [pausa] Significa que o som do coro, o que quer que cantavam, fosse a letra ou a melodia, era doce, mas não era piegas… que era suave, mas não era insípido. Capitão Compreendo… Major [indica Gonçalo] Bem pode ser isto o que aquele pobre peixe está para ali a borbulhar. O som do coro bem melado nada tinha de meloso… Capitão Já sabemos o que ele está a dizer, meu Major. Major [surpreendido] Desde quando? Capitão [hesitante] Desde hoje de manhã? Major E falava de quê? Capitão Balbuciava… sobre vícios. Fumar, roer as unhas… vícios de boca, dizia ele. Major [olha desconfiado para Gonçalo] Vícios de boca… será algum código? Capitão [baralhado] Código, meu Major…? Major [humilhado] Sim, código, porra… sabe o que é um código?! A águia aterrou!? [pausa] A marreta está no ar?! Dêem-lhes música?! Capitão Sim, meu Major! Major E ENTÃO?! Capitão Não nos parece ser um código… Major [desconfiado] E como é que souberam o que ele estava a dizer? Capitão Um dos oficiais tem um filho surdo-mudo e aprendeu leitura labial e língua gestual portuguesa… Major Língua quê!? Capitão Língua gestual portuguesa, meu Major. Major Certo… e sabe ler lábios? Capitão Sei, meu Ma… SABE, MEU MAJOR! Major Não grite! Capitão Perdão, meu Major! Major Mas, afinal, quem é que sabe ler os lábios e falar não-sei-quê Portuguesa… é você?! Capitão [inseguro] Eh… O Major levanta-se, pousa os punhos no tampo da secretária e continua a falar com o canhão Cubano entredentes. Major Sabe quem é que lê muito bem lábios? Capitão [apanicando] Não, meu Major… Major [sorrindo, malicioso] SÃO AS PUTAS E OS PANELEIROS! O Major desata a rir alarvemente até se engasgar num pedacito de tabaco mais maroto que saiu do charuto em direcção ao seu goto. Tosse tanto que às tantas começa a ficar muito vermelho e a bater com os punhos no tampo da mesa. O Capitão aproxima-se para o auxiliar, preocupado, e dá-lhe uma pancada nas costas para o desengasgar. O Major responde com um socão no queixo do pobre coitado que veio em seu auxilio, deixando-o estendido no chão. O Major recompõe-se, bebendo água do seu cantil. Depois, despeja o resto da água na cara do Capitão. Este acorda em pânico, como se tivesse sido arrancado das portas do inferno. Levanta-se a custo e recompõe a farda. Major Mas o que é que ele estará a dizer agora? Capitão [assustado] Ele fala… [pausa] É muito lento, demora duas a três horas para completar uma frase. É quase como se estivesse… [hesita]… como se estivesse… Major Desembuche! Capitão Como se estivesse desfasado… Major Desfasado?! Capitão Sim, meu Major? Major De quê? Capitão Dele mesmo, meu Major. [pausa] Tudo nele indica estar numa normalidade, perdoe-me a expressão. O discurso é lógico, embora irrelevante. Não há razão para acreditar que se trate de um código… os peritos assim o disseram. Não encontram um padrão reconhecível ou disfarçado, nada… Além de que não há ninguém para o ouvir, ou ler, neste caso, apenas o meu Major e eu. Major Certo… [pausa] Mas, afinal, quem é o oficial que sabe ler os lábios e a gestual-não sei-quê? Capitão [a medo] Sou eu, meu Major. Major Já desconfiava! [pausa] Perdoe-me a insensibilidade de há pouco… das putas e não sei que mais… às vezes sou um porco.