Desolação

O Inverno pandémico traz uma consternada atmosfera vista de qualquer ângulo o que impõe uma severa contrição interior. Contribui para isto muita desigualdade social que se transforma em fragilidade humana face à magnitude dos ciclos transformadores. Mesmo que o Sol brilhe a desolação não é menor, nesta altura não aquece, e por vezes, essa claridade torna-se ainda mais ameaçadora. É a vida agora uma parede húmida por onde escorre um fio de água doce de doçuras amargas, que nós, estamos sitiados na enxerga dos pesadelos e das insónias com populações envelhecidas e sonâmbulas. Subitamente vimos como a Europa é um continente envelhecido e frio por um calor qualquer que se foi.

O mundo de Janeiro parece nesta latitude e com a dimensão viral em mutação um aglomerado de fantasmas, uns falantes, outros mutantes, e muitos, paralisantes. Não tem havido espaço para recapitulação, e os desejos frouxos vão apenas até ao restabelecimento daquilo que fora interrompido fazendo do acontecimento global um interregno estarrecedor. Enquanto isto, há excepcionais trabalhos que avançam, que abrem cortinas de interesse maior e permitirão sem dúvida conquistas breves do estado de consciência tais como, teletransporte de mecanismo remoto, falar com os mortos em registo combinatório com um programa de alta tecnologia bem como uma vibrante e modeladora escala poética difíceis de decifrar no instante pela força fechada das necessidades.

A reanimação vem de zonas até agora desconhecidas mas que estimulam a capacidade humana de ir fechando capítulos cujos alicerces a própria vida se encaminhou de anular. Dobramos um cabo sem precedentes! Agregados por distância imposta, olhamos melhor o contorno do nosso corpo, e longe nos parecem já os tempos da Hidra das mil cabeças de quando nos deslocávamos febris para amálgama de grupo. Esta consciência espacial só por si recria um movimento novo de orientação, e não estar atento é ficar irremediavelmente em estado de sabotagem, desviando os dons para uma obstrução perigosa. Deste conflito nascem todas as teorias da conspiração, todos os vales caídos dos negacionismos, e depois, a loucura, esse perigo que grassa como lepra pois que a energia estagnada se dissolve em pranto.

As capacidades transgressoras não vivem bem neste domínio desolador, se acrescentarmos a isto a incerteza endémica de cada nação para os «amanhãs que cantam» ninguém no seu juízo perfeito desejará ouvir muita coisa, que ditas em modelo salva-vidas parecem tão só um mecanismo para náufragos. Unir pontes requer audácia, e estar sentado a falar para ecrãs com vultos obscuros do outro lado à espera de salvação, não é a manobra certa para sair disto ileso. Por outro lado, já mergulhamos em transparência, o que faz do lastro insano uma urgência para o findar; tudo já tinha passado diante dos nossos olhos, continentes inteiros que arderam, florestas comidas por longas e altas labaredas, vastíssimos ecossistemas dizimados, finas camadas de gelo – que o Ártico foi estilizando na horizontal até nos chegar em grandes inundações muito para cima dos calcanhares.

Desoladoramente atingimos o cansaço de grupo mais rapidamente que a imunidade, pois que ninguém se encontra nem impune, nem imune, face à sua própria circunstância. Ter visto tudo isto sem suspeitar em mudanças bruscas com efeitos letais configura um quadro de cegueira colectiva que não desmerece um acordar com assombro e curvatura de coluna. E mesmo assim, muitos há que sem recurso a inteligência associativa e em plena era da artificial, não viu, não ouviu, nem quis saber. Perante factos tão desoladores como o frio impassível do Inverno da pobreza generalizada que é como água fria escorrendo entre lençóis, da transumância das reformas em regime de abstinência, da dúvida intragável do amanhã, zumbis e homens dão pela primeira vez as mãos para a grave travessia, que os regimes mundiais apelam a ambos para as eleições com a mesma legitimação.

Vacinas já existem, vacinados também, uns querem outros não, e o medo de obedecer tornou-se mais paralisante que o medo da desobediência, o que pode colocar em risco a construção do conceito de Liberdade que é a única que ainda dita a Condição Humana. Em certos períodos a Liberdade é radical. Saber que o que se quer ou se deseja é apenas um capricho face à sua eloquente voltagem que estando muito acima dos graves apetites pode eletrocutar incautos, é saber que ela como conquista não deverá dar voz aos seus intermitentes usufrutuários. As opiniões destes inválidos deve ser norteada com admoestação pois que eles apenas gritam para acordar fantasmas adormecidos como a tirania.

Esguios e frios como Catedrais os nossos dias avançam olhando a Abóboda do Mundo. É que ainda pode haver coisas não nomeáveis a concordar para nos surpreender sem o arrastão do primeiro impacto.

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