Covid-19 | A pandemia vista por cinco prostitutos LGBT de Lisboa

Os trabalhadores do sexo estão dependentes de cada cliente e não recebem apoios do Estado. Por isso passam ao lado da covid-19 — e os clientes fazem o mesmo. Têm receios, mas dizem-se habituados a muitas outras doenças. Como é viver do sexo em época de máscaras e distanciamento?

 

[dropcap]A[/dropcap] mais famosa rua de prostituição de Lisboa era já uma sombra do passado e a pandemia fez o resto. Sandra vive aqui perto, por isso é num café do Conde Redondo, onde esteve a almoçar, que aceita encontrar-se comigo ao início de uma tarde de Outubro. Está sozinha numa mesa e larga o telemóvel para me estender a mão. Do empregado aos clientes, o dia de chuva esmoreceu humores. Sento-me e peço um café, tiro a máscara da cara e Sandra abre logo o jogo: “Assumo tudo o que faço, sou muito transparente.”

Sandra, de 37 anos, vive do sexo há duas décadas. Semblante amigável mas astuto, longos cabelos que de certo lhe ocupam horas em cuidados, mudou de sexo há menos de quatro anos e até já tem os documentos com nome feminino. Nasceu no Barreiro e cresceu em Santa Iria da Azóia, arredores da capital. Saiu cedo para viver à sua maneira, precisamente aos 16.

Fala-me dos pais e da infância marcada por alcoolismo, violência doméstica e prostituição da mãe. Sou levado pela curiosidade. Pergunto-lhe também quando percebeu que queria mudar de sexo, diz-me que “foi de um momento para o outro”. Só a custo voltamos ao assunto que nos juntou esta tarde. O relato é uma torrente.

“Pouco antes de darem o primeiro Estado de Emergência, estava na Suíça e tive de voltar para Lisboa. Estava um bocado assustada e fiquei a viver das poupanças durante dois meses, mas tinha cada vez mais chamadas dos clientes que viam os meus anúncios na internet e, em vez de os atender, em casa optei por videochamadas. Só que as brasileiras estavam aflitas e começaram a baixar o preço da câmara. Eles queriam pagar 10, 15 euros, eu disse não. Em Portugal, é fraco. Prefiro ir para fora, ganha-se mais e não te chateias tanto. Na Holanda rodo uma semana em cada cidade: Amesterdão, Roterdão, por aí fora. Estava em Friburgo quando começou isto tudo e tive de me vir embora.”

A pandemia, que assola a Europa desde o início do ano, tem vindo a alterar uma por uma todas as certezas que demos por garantidas. Em Portugal, onde as “medidas de contingência” colhem consenso político alargado, mas são cada vez mais contestadas pela sociedade civil, que possivelmente à boa maneira portuguesa cumpre tudo à vista de todos e quase nada longe de olhares indiscretos, o tecido social vai-se rompendo perante a estagnação compulsiva.

Há empresas e empregos destruídos e serviços de saúde incapazes de responder a outras doenças. A saúde mental e a paz de espírito estão em sobressalto, os cofres do Estado vão-se esvaziando, espreitam tragédias sociais de alcance desconhecido. Até as relações familiares estão sob ameaça neste Outono, com as autoridades a exibirem gráficos que alegadamente demonstram explosões de contágios entre pais, filhos, irmãos, tios, primos e avós.

São os dias da hipervigilância, da quarentena, do recolher obrigatório, da ilegalização do encontro, do prazer e do afecto. Porém, ao mesmo tempo, dias de realidades paralelas e comportamentos desalinhados ou, em certos momentos, criminais, conforme as excepções legislativas que as autoridades vão aprovando ao sabor dos números. Boletim em inícios de Novembro: mais de três mil mortos em Portugal, contados em função do “evento final” mais próximo do óbito e não a partir da causa primária (são mortos com covid-19 e não apenas por covid-19, critério que não se verifica em todos os países da União Europeia).

Se as festas furtivas de adolescentes rebeldes dão testemunho das realidades paralelas, também a intimidade comercial entra na lista. Foi o que me garantiram cinco prostitutos de Lisboa com quem falei ao longo de quatro semanas: três homossexuais, um bissexual e uma transexual. Relataram algum receio da covid-19 ao início, mas logo acrescentaram que suspender a actividade é simplesmente inconcebível.

Dependem de cada cliente para ganharem dinheiro e não têm outros rendimentos ou apoios do Estado, como o “lay-off” simplificado ou as prestações assistenciais.

Regresso a Sandra num café do Conde Redondo. No primeiro confinamento, em Março, os “clientes estavam desesperados”, diz-me. E não era com medo do vírus. Continuaram a querer combinar encontros, sem que ela cedesse. Muitos optaram pelo Parque Eduardo VII, conhecida zona de prostituição. Viu Sandra várias vezes. “Mais até do que noutras alturas e sem protecção”, garante. Aponta ao dedo à “falta de noção” e acrescenta que não teme a covid por aí além, por se considerar uma pessoa de boa saúde. Aliás, com vaidade, diz que em duas décadas de sexo remunerado nunca apanhou sífilis, hepatites ou outras doenças venéreas.

Pega no telemóvel. “Vou-te mostrar uma fotografia minha de rapazinho”. Em vésperas da transição, tinha um ar fechado, que não perdeu por inteiro. “Agora assumo-me como mulher, sou considerada transexual”, descreve.

“Como rapaz, era tímido. Agora sou desinibida, vou a todo o lado, ninguém me ofende nos cafés, as velhotas adoram-me. Há 20 anos comecei como gay, uma amiga disse-me que vinha para o Conde Redondo, que ganhava bem e conhecia rapazes bonitos. Comecei a vir e gostei. De dia trabalhava na Casa das Sandes e à noite vinha para aqui. Foi até hoje. Mas a rua já morreu, há por aí quatro ou cinco a trabalhar. E os clientes pagam pouco, também já não há tantos. Se era assim antes da covid, agora pior ainda. Ganhavas 50, 100 euros, mas gastavas logo 20 ou 30, o que é que juntavas? Nada. Na Holanda, se for preciso, fazes mil por dia.”

“Preferes a rua ou o atendimento em casa?”, pergunto.

“Apesar de tudo, gosto muito mais da rua, porque sou exibicionista. Em casa posso atender dois ou três, depois desligo o telefone e descanso”, responde com calma, mas à velocidade de quem está com muita pressa.

O depoimento de Sandra, a que não tarda se juntará o de um amigo travesti aparecido por acaso à mesma hora no café, indicia o segredo mal guardado: na prostituição, como no resto da vida social, os receios da covid-19 desanuviaram-se ao longo do tempo.

Um mês antes, no Príncipe Real, estive como outro prostituto da cidade, um brasileiro de 26 anos nascido em Curitiba. É o Ricardo. Põe a necessidade de ganhar a vida acima de tudo. Aparece de calções e “t-shirt”, o cabelo muito penteado, talvez alguma maquilhagem. Aproveita o início da conversa para se queixar dos primeiros tempos em Lisboa. Está por cá há três anos e meio.

“Comecei trabalhando num café onde sofria ataques de xenofobia dos clientes. Nunca esperei isto num país europeu que recebe imigrantes de vários países. Diziam ‘volta para a tua terra’ e coisas assim. Estava sozinho e precisava daquele trabalho para me manter legal. Hoje estou mais forte, naquela altura dependia muito e não podia responder. Aqui em Portugal fui despejado duas vezes, tive de dormir na recepção de um hotel, fingindo ser um cliente à espera. Já passei fome e grandes dificuldades.”

“Foi por isso que te dedicaste à prostituição?”
“Lógico. Foi a forma de dar a volta por cima. Um amigo cabeleireiro, que vivia muito bem, disse-me que fazia uns serviços por fora e comecei também. Hoje como em bons restaurantes, de alguns nem sei dizer o nome.

Já fui ao JncQuoi, na Avenida. Como boa comida, como nunca imaginei, e nem preciso de pagar a conta. Vou com os clientes, pagam tudo e ainda me pagam a mim para estar com eles. Cheguei há pouco dias de uma longa viagem à Áustria e à Alemanha, tenho tido experiências incríveis.”

Animado, inteligente, directo. Começou em 2018 e numa hora ganhava o equivalente a três dias no café. Conta-me que foi criado por uma avó, entretanto falecida, e pouca relação tem com a família. Recorda o Brasil e deixa o sublinhado: “Morro de vergonha do presidente”, Jair Bolsonaro. Pergunto-lhe se esteve a trabalhar durante as semanas do primeiro confinamento. A resposta sai disparada.

“Claro. Se parar, como é que pago a renda de casa? Eu vi os números sempre a crescer, as fronteiras a fechar…”
“E pensaste o quê?”

“Que ia ter alguma dificuldade, porque o número de clientes iria baixar. E baixou. Muitos deles têm mais de 45, 50 anos e é normal que quisessem ficar em casa. Perdi muitos, com certeza, mas consegui outros. A clientela continua. Talvez não todos os dias, como antigamente, mas de dois em dois dias com certeza”, diz-me, como quem se sente guardado por uma força maior que é filha da necessidade.
“Que pensas do coronavírus?”

“É só mais um risco. Não tenho outra maneira de ir buscar dinheiro, tenho de comer, viajar, pagar a renda”, repete Ricardo.” Ninguém tem nenhum cuidado especial, aqui, na Áustria ou na Alemanha.”

Há números a confirmar esta versão. Na verdade, a oferta e a procura só registaram quebras no início da primeira vaga. O responsável pelo ClassificadosX.net, uma das mais conhecidas plataformas de anúncios para adultos em Portugal, fonte de angariação de clientes para centenas de trabalhadores do sexo, partilhou comigo alguns dados.

Comecemos pela oferta. A 2 de Março — nove dias antes de a Organização Mundial da Saúde assumir a covid-19 como pandemia e muitos antes de Portugal ter declarado o Estado de Emergência e o confinamento geral obrigatório, o que veio a acontecer entre 18 de Março e 2 de Maio — o ClassificadosX tinha quase 14 mil anúncios registados. A 6 de Abril, eram pouco mais de 11 mil.

Neste período, as receitas reduziram-se para metade, até porque os administradores do “site” pediram directamente aos anunciantes para “colocarem os anúncios em pausa” até “as coisas voltarem à normalidade”. Por “e-mail” até fizeram “recomendações para trabalhadores do sexo contra o coronavírus”, caso não pudessem mesmo parar. Por exemplo: “Use luvas e preservativo em todos os actos sexuais”, “antes e após o atendimento deverá higienizar-se com água e sabão”, “minimize o contacto corporal, usando posições de menor contacto” e “evite beijos e aproximação facial”, etc.

Acontece que seis meses mais tarde, a 6 de Outubro, a oferta já tinha voltado ao normal, com cerca de 15 mil anúncios. Do lado da procura, a mesma coisa. Os gráficos mostram cerca de 36 mil visitas (“unique visitors”) ao ClassificadosX a 2 de Março, perto de 22 mil a 6 de Abril e mais de 38 mil a 6 de Outubro. A comparação tem por base a escolha de dias da semana iguais e inícios do mês. Por duas razões: porque, por exemplo, à segunda-feira há mais utilizadores do que à quarta (e muito mais do que ao domingo ou num feriado), e no início do mês há sempre picos (quando os portugueses têm mais dinheiro disponível para gastar).

Hugo, de 26 anos, tem um anúncio activo naquele “site”. Apresenta-se como acompanhante de luxo. Contactei-o através do WhatsApp e encontrámo-nos duas vezes. Primeiro numa esplanada, onde falámos longamente.

“Trabalho sexual, fazemos todos, mas para mim prostituição aplica-se a quem está na rua por necessidade e faz por qualquer preço. Sou acompanhante, tenho anúncios na internet, recebo em casa ou vou a casa.

Normalmente, faço viagens ao estrangeiro: Suíça, Alemanha, França, Espanha, Noruega. É outro tipo de serviço. Posso seleccionar a pessoa e às vezes só tenho de fazer massagens ou acompanhar o cliente a um jantar ou uma festa, o que pode ou não acabar em sexo”, conta-me, acrescentado que a mãe e a irmã mais velha estão a par e até são ajudadas por ele.

Em Janeiro esteve na Áustria. Com a crise global de saúde regressou a Lisboa. Passou três meses por cá, quase parado, e sentiu uma “redução drástica” da procura, tendo-lhe valido a “almofada financeira”, que tinha de parte, “já a pensar em imprevistos”. Depois a abertura do espaço aéreo e o aligeirar de restrições legais, levaram-no até Zurique, no início do Verão, onde não viu ninguém de máscara a não ser dentro dos transportes públicos. Manteve os preços e não cedeu à pressão de clientes que pretendiam pagar um pouco menos nesta fase atípica. São 60 euros por um momento rápido ou até 700 euros por uma noite, conforme o poder de compra do país que Hugo visita.

“Não tenho medo do coronavírus porque não faço parte de um grupo de risco. Corro um risco relativo, todos corremos riscos”, afirma.

“Mas se estiveste parado em Março e Abril é porque também tinhas receio”, contraponho.
“De certa forma, só que depois as coisas voltaram ao normal. É um dilema, mas não posso deixar de trabalhar. Tenho a minha médica, faço o PrEP [profilaxia pré-exposição, um medicamento que pode dar protecção contra o vírus da sida], paguei as minhas injecções contra a hepatite e o HPV. Sou uma pessoa com cabeça, nunca me relaxo nos cuidados, porque esta profissão é o que é. E um cliente é sempre um cliente, eles é que nos podem trazer alguma doença. Se me perguntares se tenho muitos cuidados com o coronavírus, respondo já que não tenho. Não há distância social nem máscara, é impossível numa actividade destas.”

Hugo tem uma presença pacata e mostra-se atencioso, confidencia laços de amizade com alguns fregueses assíduos que, por vezes, nem lhe pedem sexo, antes preferem desabafar sobre problemas com as mulheres, os filhos, o trabalho, as contas. Nasceu em Vila Franca de Xira, a meia-hora de Lisboa, veio estudar gestão hoteleira e decidiu começar um dia por influência de um namorado que já se dedicava à actividade. Tem bem presente a data: Agosto de 2018. Trabalhava à época num hotel da Avenida da Liberdade, “mas os ordenados portugueses não são os melhores” e não conseguia ter “uma vida minimamente estável”.

Uma semana depois desta conversa, abriu-me as portas de casa, na zona de Arroios. Estava de chinelos, calções fluorescentes e uma camisola de alças. Mostrou-me o Gucci, um cão recém-nascido que cabe na palma da mão. Na maçaneta da porta vi pendurado o saco de desporto com que vai quase todos os dias ao ginásio, daí o físico robusto de que claramente se orgulha.

O quarto é acolhedor. Sento-me na cama, vejo um televisor na parede e uma gravura com A Criação de Adão, de Miguel Ângelo. Hugo assume que toma Viagra antes de alguns encontros, “para que nada falhe”. Gosta de ter sempre música ambiente quando anda por casa. Fica-me gravada esta frase: “Atender um cliente é entrar na viagem dele.” Quando lhe falo da crise económica provocada pela covid-19, Hugo sentencia: “Um apoio do Estado por causa da pandemia? Até podia ser útil, mas não seria justo. Sei ver o que é certo e o que é errado. Se não pagamos impostos sobre o que ganhamos com este trabalho, porque é que vamos pedir ajuda ao Estado?”

Pela mesma altura, encontro-me no café da Ribeira das Naus com um rapaz negro que nasceu no Brasil, perto do Recife, e vive nos subúrbios de Lisboa desde que aqui chegou, há nove anos: Jonas, 23 anos, bissexual que só trabalha com homens. Revela uma visão muito aguçada das circunstâncias e do percurso que lhe é dado viver. Num sotaque brasileiro já muito apagado, dá-me detalhes sobre alguns traumas familiares. Diz que ainda não tem nacionalidade portuguesa porque atravessou “uma fase muito difícil” e não pôde tratar da documentação.

“Queres falar dessa fase?”
“Você é o jornalista, o que achar mais interessante para o seu artigo, pode perguntar. Nunca fui entrevistado e acho interessante”. Depois entra na biografia: “Aos 18 anos caí numa depressão, foi quando comecei a viver sozinho, uma fase de álcool, drogas, de sair todas as noites. Por essa altura, descobri também que havia uma forma de ganhar uns trocos, tendo prazer. Tive um companheiro e ao fim de três meses percebi que ele estava nesta vida. Foi uma queda ainda maior para mim, afundei-me ainda mais, mas a semente ficou plantada na minha mente. Descobri que era possível e um dia acabei por entrar, também por necessidade, porque vivia sozinho e estava mal. Pus um anúncio numa app, foi o caminho mais fácil.”

Considera-se acompanhante e sobretudo faz massagens eróticas, até por causa da pandemia, assim evitando o contacto físico directo. Puxa de um cigarro. Tem uma presença tímida e segura ao mesmo tempo. Explica-me que ainda hoje toma antidepressivos e admite ter fases mais cavadas, o que também lhe afecta a líbido. Daí o uso de “medicações naturais”, para “dar energia extra à mente e ao corpo”.

Jonas trabalhou em cozinhas e cafés. De forma intermitente regressa à prostituição, sempre em casa dos clientes, muitos dos quais homens solitários com mais de 50 ou 60 anos. Para além dos fixos, que chega a visitar duas vezes por semana, tem visto aumentar o número de novas solicitações nos últimos meses. Contactam-no a partir de anúncios na internet.

“Fiquei chocado por não terem deixado de pedir. Não tiveram medo, mesmo os que pertencem a grupos de risco. Por isso não deixei de trabalhar. Também não posso, preciso de sobreviver. Simplesmente tomo as minhas medidas: um banho antes de qualquer contacto e não pode haver troca de saliva, mesmo que insistam. Há pessoas que forçam o beijo, aí é o livre-arbítrio de cada um, mas eu aviso sempre que não”, conta Jonas, cuja atenção é de repente desviada para o ecrã do telemóvel, um cliente que lhe liga e ele decide ignorar.

Atalho a conversa, ele parece estar com pressa. Antes de se levantar e desaparecer em direcção ao Terreiro do Paço, diz que vai apostar cada vez mais nas “massagens eróticas com final feliz”. Está até convencido de que a covid-19 pode levar outros trabalhadores do sexo à mesma decisão, como forma de se protegerem. Andará muito assustado com as notícias? Nem tanto. “Mais me assusta o HIV”, justifica.

A comparação parece ter lógica e surgiu noutros depoimentos que recolhi. O vírus da sida é um espectro sobre as sexualidades e terá moldado o comportamento de duas ou três gerações, mesmo se a infecção pode hoje ser tratada e até prevenida por meio de medicação. Tornou-se um perigo com que se lida, sem se evitar, mais ainda no caso dos trabalhadores sexuais. Eles estão familiarizados com esta e outras infecções sexualmente transmissíveis. Concluo que isso os torna menos inseguros face a um coronavírus que em muitos casos não provoca sintomas.

Estes indivíduos praticam uma actividade posta à margem, valorizam mais a liberdade pessoal do que a segurança e evidentemente tendem a desconfiar das autoridades, que consideram fonte de problemas e repressão. Sem dificuldade encontrei na internet um estudo publicado em Abril na revista “Nature”, segundo o qual quem tem pouca empatia com o sistema dificilmente cumpre recomendações e ordens de médicos ou governantes.

De resto, só um dos entrevistados disse ter sido contactado nos últimos meses por alguma entidade que lhe tivesse dado conselhos e informações específicas sobre a covid-19. Hugo recebeu alertas no telemóvel “sobre o que fazer com os clientes durante a pandemia”, através de mensagens do Espaço Intendente, projecto gerido por uma organização não-governamental e a funcionar desde 2016, onde pessoas envolvidas em sexo comercial podem fazer rastreio gratuito de doenças venéreas e receber aconselhamento.

Ainda o Conde Redondo. Agora, sim, entra o amigo de Sandra, que só trabalha na rua e há muito deixou de anunciar na internet. Chama-se João, 26 anos, natural da Amadora, na vida desde os 18. A conversa é longa, mas contém principalmente pormenores sobre o percurso de um rapaz frágil que aos 21 anos foi contactado pela mãe pela primeira vez. Alinha no discurso da amiga: que a rua “está muito mal”, mas ainda “dá para pagar as contas e sobreviver”.

“Estive fechado em casa durante três meses, completamente fechada”, recorda, trocando o feminino pelo masculino, ainda que se identifique como homem e homossexual. “Parei de fumar e tudo, porque não queria gastar dinheiro. Ainda não perdi o medo, mas tenho de trabalhar e estou outra vez na rua. Trabalho vestido de mulher, nunca consegui ser acompanhante como homem, não tenho coragem.”

Sem surpresa, as conversas alongam-se menos na covid do que nas questões morais e legais que a prostituição levanta. Numa esplanada da Ribeira das Naus, Jonas mostrou-se bem informado sobre o enquadramento da actividade e lembrou que “há uma lacuna na lei portuguesa”, que “não está lá nada escrito nem contra nem a favor” da prostituição (é assim desde o Código Penal de 1982).

Depois ganhou asas e ofereceu-me esta reflexão: “Isto acontece desde os primórdios da humanidade, não cometo nenhum crime, estou de bem comigo e com as pessoas. Não é a vida mais segura, principalmente ao nível da saúde e porque podes encontrar de tudo. Graças a Deus, até hoje todos os meus clientes foram impecáveis, até os que dizem que faltam cinco euros e não podem pagar tudo. Se calhar tenho boa intuição e um bom anjo-da-guarda. Não é vida que se deva ter às escondidas da esposa ou do marido, como muitas vezes acontece, mas enquanto estiver solteiro tenho o direito de fazer o que quiser. Se não ferir ninguém e houver consentimento de ambas as partes, é apenas uma troca de prazer que é paga.”

Os dilemas hão-de continuar vivos. Exploração, vício, sobrevivência. Liberdade, autonomia, prazer. A prostituição faz o seu caminho, flutua sobre convenções. As da moral e as da saúde, como sempre.

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