Lulu Monde

[dropcap]H[/dropcap]á que fazer. É o que as matérias pedem. As matérias-primas omnipresentes na sua sedução plástica. O computador está tão lento. Não era preciso sentir porque um quadrinho diz a aplicação não está a responder – eu vi – o programa pode retomar novamente se aguardar. É como tantas coisas na vida em que simplesmente é preciso aguardar e saber. E ele retoma mas um outro quadrinho explica quando já me esqueci embalada nas palavras que o computador está de facto lento devido a lixo e a outras duas coisas que também serão seguramente lixo. Mas afinal era publicidade do anti vírus que cobardemente a seguir diz zero mas deixa a curiosidade para depois do compromisso económico. Um almoço nunca é de graça, como diz o outro. Mas aproveita-se para pensar com carinho na lentidão. Para esperar com paciência até que as palavras possam derramar-se as que não se esqueçam entretanto. Hoje em dia as palavras são rápidas e passam a correr numa azáfama em que logo se esquecem de ficar. Corro atrás quando há papel ou o programa responde. Senão, esqueço. E fico por momentos na apatia frustrante de ter esquecido e até me conformar ao que não tem retorno. Elas vêm noutras alturas e mascaradas de outras novas. E não sei onde deixei os óculos nesta migração pela casa mas há que esforçar a vista mesmo assim, antes que elas se escapem como é seu hábito. Mas aqui estão e de pouco servem para além da nitidez do óbvio que existe mesmo sem eles. Os óculos. Não elas, as palavras.

Mil palavras mais ou menos. Ou quatrocentas que sei que também pode ser. Mas espero as palavras amigáveis. Podem ser trezentas ou cem ou duas dependendo dos dias.

Está ali agachado quando olho, as articulações em posição desleixada talvez do esforço de v. Dizem que tenho que tomar o comprimido mas não sei. Contra o quê, que não incomoda ninguém e, se não a mim, não é sintoma nem tem terapêutica necessária. Desisti dos cortinados diáfanos a bendizer a luz mas com moderação. Na verdade deixo-me de civilidades como de culturalidades e prefiro a luz crua a esculpir momentos de expressionismo desatado. O claro-escuro abrupto na modelação do perfil ou da espádua. As olheiras inevitáveis e o descaído de uma pele que parece começar a sobrar da estrutura. São terríveis as sombras sem o make up para a câmara. Nem todas as luzes dizem o mesmo. Uma questão de ângulo, de intensidade, de direcção. 218, depois já 418 pelo milagre da multiplicação das explicações. Não está mal, não há flechas e o animal está incorrupto para ali à mercê do comprimido, meu, ou da desistência, sua. Que é como quem diz que a sua liberdade de aparecer assim ali no canto, tem alternativa. Mas não tem, como a liberdade de meio chocolate no frigorífico não foge à serotonina possível destilada só do imaginar. Nesta alquimia de químicos virtuais, registo pavloviano que demonstra que existem estímulos, reflexos, e talvez a gratificação de passar da virtualidade à realidade. Abrir a prata, deixar entrar um pensamento. Abrir a porta do frigorífico, a da varanda, a janela window. Se não fala comigo, não é problema meu, neste caso. Quanto muito dos comprimidos, a mais ou a menos. Mas estes, na sua efectiva virtualidade, também não têm problemas porque nunca chegaram a acontecer como possibilidade ou rejeição. Estão ali como o animal grande mas menos, muito menos reais e ainda menos importantes.

Coisas estranhas passam pela cabeça dos outros. Quando as coisas, afinal, são tão simplesmente aquilo que são. Não, não mesmo. Não é loucura, é fascinação. Rodo o botão do rádio Lulu Monde cor de cereja, que noutros tempos já só servia para ouvir relatos de futebol por detrás da tampa partida. E ali está ela. Ela, não: Elis. Regina. Tão real e sempre ao espreitar de uma melancolia, como o resto de que se fala aqui. E o rádio-gira-discos Lulu Monde que há anos se queda em silêncio. Ali. Que voz de sonhar para dentro, como só assim pode quem não tem aquela voz.

Placebo. Que nome tão feio para uma metáfora tão boa. Cleptomania é pior. Sempre preferi património imaterial. O imaterial. Escrever sem os óculos, não é assim tão difícil, afinal. É só esquecer a primazia da visão. As teclas estão no sítio de sempre, até ver. O alcançável e o inalcançável, também. Esse animal grande.

Às vezes, de orelha murcha, de asa desmanchada ou de pêlo na venta corrosiva em expiração mais forte. A querer deixar-se amar sem se perceber. Mas ternamente.

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