Hospitalidade (1997) – Julia Kristeva

[dropcap]P[/dropcap]osso hoje dizer que vivi alguns dos melhores momentos da minha vida pessoal e profissional em solo americano.

Porém, nada me destinava a essa afeição. Escusado será dizer que, na minha Bulgária natal do pós-guerra, o Tio Sam não estava na moda: dificilmente era apreciado por distribuir leite em pó nas escolas; zombavam dele pelo seu culto à Coca-Cola, que a propaganda comunista apresentava como uma droga; odiavam-no devido à Guerra da Coreia. Quando cheguei a Paris, a guerra do Vietname estava no auge e manifestávamo-nos contra os bombardeamentos americanos. Foi então que René Girard, que me ouviu apresentar Bakhtin no seminário de Roland Barthes, me convidou para ir ensinar na Universidade de Baltimore. Não me via a colaborar com os “polícias do mundo”. E apesar do conselho fortemente dialéctico do meu mestre, Lucien Goldmann, que me dizia: “Minha pequena, o imperialismo americano deve ser tomado a partir de dentro”, francamente, não me senti com forças: fiquei em França. Estávamos em 1966. Alguns anos mais tarde, em 1972, conheci o professor Léon Roudiez, da Universidade de Columbia, no colóquio de Cerisy sobre Artaud e Bataille. Fiz a minha primeira viagem a Nova Iorque em 1973, e desde 1976 sou Permanent Visiting Professor no Departamento de Francês desta universidade – o que pode não ter ajudado na qualidade do meu inglês, mas permitiu-me encontrar muitos amigos e cúmplices nesse tão particular mundo das universidades americanas.

De toda esta experiência sobre a qual tentei escrever o essencial nas páginas do meu romance Os Samurais [1990], gostaria apenas de reter aqui duas imagens-símbolo que são inseparáveis da minha vida psíquica, e que podem dar uma ideia do meu apego aos Estados Unidos. A primeira é uma pequena foto a preto e branco, tirada por Léon Roudiez, onde me vêem a bordo de um ferry em aproximação aos arranha-céus de Manhattan; sou uma estudante e uso o cabelo comprido. Como não tenho foto da minha chegada a Paris, é este, para mim, o único e melhor vestígio do meu re-nascimento n’«o mundo livre». A segunda imagem é a do meu apartamento em Morningside Drive; com vista para o vizinho Parque de Harlem, fico lá muitas vezes quando ensino em Columbia; é inundado por esta estranha e acolhedora luz, escrevi lá páginas, a meu ver essenciais, de Histórias de Amor (1983) e de Sol Negro (1987); este apartamento continua a ser, na minha mitologia pessoal, o lugar perfeito para a solidão feliz.

Quando, com Philippe Sollers, dedicámos o n.º 71-73 da Tel Quel (Outono de 1977) a Nova Iorque, muitos leitores ficaram surpresos. Continha nada menos do que uma apologia da democracia americana, em contraponto à centralização francesa, estatal e jacobina. Na verdade, foi, e ainda é para mim, um reconhecimento do que me parece ser a primeira qualidade da civilização americana, e que explica o meu apego ao trabalho que a universidade americana me propôs (daqui em diante, devo incluir no adjectivo «americano» os seus vizinhos do Norte: o Canadá e as universidades canadianas): essa qualidade é a hospitalidade.

Chamo hospitalidade à capacidade que possuem certos seres humanos para oferecer um lar a quem não o tem ou está temporariamente privado dele. Exilada do comunismo e acolhida em França, não foi em França que experimentei tal hospitalidade, ainda que a França me tenha concedido a nacionalidade francesa, pela qual eu nunca saberia agradecer o suficiente. Cimentado pela tradição administrativa e cultural, o meu país adoptivo gera, para delas se distanciar, novidades excessivas (como as várias vanguardas artísticas, filosóficas, teóricas) que me seduziram e que fazem a sua glória no exterior; mas também violentas rejeições, quando não mesmo os ódios ferozes contra estas inovações. A América, pelo contrário, parece-me uma terra que acolhe e incentiva a enxertia – talvez em excesso. Quando a xenofobia deste velho país me fere, dou por mim a acalentar a ideia de me instalar definitivamente nos Estados Unidos, ou possivelmente no Canadá, mais europeu e francófono.

No nosso mundo moderno, não possuímos realmente uma definição positiva do que caracteriza a humanidade (não no sentido de «género humano» mas de «qualidade humana»). Contudo, somos mesmo levados a perguntar «o que é a humanidade?», mais que não seja quando nos deparamos com… «crimes contra a humanidade». A minha experiência pessoal leva-me a pensar que a definição minimalista de humanidade, o «grau zero», como diria Barthes da humanidade, é justamente a sua capacidade de hospitalidade. Além disso, os Gregos não se enganaram ao escolher a palavra ethos para designar a aptidão mais radicalmente humana, a aptidão agora designada de ética e que consiste em fazer uma escolha – a escolha entre o bem e o mal, mas também todas as outras escolhas. Ora, esta palavra ethos (donde provém ética) significa residência habitual, abrigo de animais; e como derivação desse sentido de habitat, significou progressivamente hábito, carácter, aquilo que é específico de um indivíduo, de um grupo social.

Diria, pois, que dar refúgio, acolher, abrigar, abrir a sua porta, as suas universidades, as suas editoras, mas também o seu pensamento, a sua maneira de reflectir, as suas preocupações profissionais e pessoais, à existência e ao trabalho de um estrangeiro, em suma, a hospitalidade que os americanos têm praticado comigo, é o grau zero do ethos. A América encarna para mim esta atitude moral, que se torna hoje essencial – ao mesmo tempo que problemática –, quando a migração massiva de populações torna imprescindível o acolhimento do estrangeiro, mas exige ao mesmo tempo uma legislação realista e uma moralidade adequada.

Quaisquer que sejam as suas dificuldades intrínsecas, ou mesmo os seus ostracismos relativamente aos estrangeiros, no continente americano sinto-me uma estrangeira com outros estrangeiros. E tenho a sensação de que com essa solidariedade podemos fazer algo, já que pertencemos a uma humanidade futura, e essa humanidade futura será, como nós, formada por estrangeiros que tentam entender-se.

A hospitalidade que os Americanos me ofereceram dirige-se, antes de mais, às minhas ideias, ao meu trabalho. Trouxe-lhes – e não páro de trabalhar nisso – uma memória cultural, francesa e europeia, na qual se misturam as tradições germânica, russa e francesa: Hegel e Freud, o formalismo russo, o estruturalismo francês, as vanguardas do Novo Romance e da Tel Quel. Talvez achassem que a minha personalidade de migrante fosse menos frenchy, fechada e, às vezes, arrogante ou desdenhosa, conforme o sentido que atribuem a essa palavra. E que, por intermédio da estrangeira que sou, pudessem igualmente aceder a esta cultura francesa, mas também europeia, que se mostra amiúde inacessível e ciosa da sua pureza. Seja como for, algumas das minhas pesquisas encontraram hospitalidade na América – quero dizer ressonância e desenvolvimento –, o que me encantou e encorajou sobremaneira. Por vezes, a imagem que os Americanos me devolvem surpreende-me, não me reconheço nela. Mas nunca tive nem terei a tentação de polemizar.

Porque estou convencida tratar-se de uma de duas coisas: ou essas interpretações são contra-sensos estéreis que se esgotam por si próprios – como certas recuperações militantes ou politicamente correctas – ou fazem parte da busca pessoal de homens e mulheres americanos, originais e inventivos, que absorvem o meu trabalho no seu e que, portanto, enfrentam os riscos das suas próprias obras; o que é seguramente, apesar dos mal-entendidos, uma excelente forma de praticar a hospitalidade. Não é a «enxertia» uma adopção com consequências imprevisíveis? O exacto contrário da «clonagem»?


KRISTEVA, Julia – “L’avenir d’une révolte, Paris, Calmann-Levy”, 1998, pp. 86-91
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