Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasExílios & Insílios António Cabrita - 30 Jul 2020 26/07/20 [dropcap]«Q[/dropcap]uem escreve está no exílio da escritura; é lá a sua pátria, onde não é profeta», cunhou Blanchot em L’Écriture du désastre. Eu sublinharia: onde precisamente não é profeta. Pelo que exilados seremos todos, desde que comandados pelo devaneio e por esse incessante ofuscamento de uma cicatriz na luz. Há vezes que dolorosa, de outras encontrando uma fraternidade na fuga. Talvez seja isto a escrita: uma fraternidade na fuga. Mas há exílios e exílios. Também o Ovídio, exilado em Tomis (na foz do Danúbio), encontrava um remédio para o seu mal-estar no sonambulismo da escrita. Trôpega, havia perdido o seu auditório e os Getas, junto dos quais estava exilado, não o compreendiam; ao cabo de uns anos sentiu que lhe encalhava o navio na língua, perdia a linguagem, secando-se-lhe a veia poética. Os seus poucos correspondentes suspeitavam que ele exagerava nas suas lamúrias. Quando se está longe e isolado, é difícil explicar que a distância amplifica o silêncio e vai tornando irreais, migratórios, até os espaços físicos onde exercitamos a nossa ausência. A terra estrangeira, perguntava-se Robert Bolano, é ela uma realidade objectiva, geográfica, ou é antes de mais uma construção mental em movimento perpétuo? E no entanto, soube-o Segalen como ninguém, a nossa personalidade alimenta-se de tudo o que é o seu antípoda: «É pela Diferença, e no seio do Diverso que se exalta a existência». É bem verdade, e senti que isso actuou em mim como um anzol que foi ao fundo de mim repescar a maiêutica. Contudo, que cansaço. Neste meu afastamento intermitente tive o tempo e a oportunidade de ler textos magníficos sobre o exílio, o ensaio de Linda Lê, as observações de Edward Said, os Diários de Gombrowicz, o texto laminar de Joseph Brodsky, donde tiro este excerto certeiro: «(…) se há algo de bom no exílio, é o facto de ensinar a humildade (…) o exílio é a lição suprema dessa virtude. E isso é especialmente precioso para um escritor porque lhe dá a perspectiva mais ampla possível. “E avanças em humanidade”, como disse Keats. Perder-se na humanidade, na multidão – multidão? – entre bilhões; tornar-se uma agulha naquele famoso palheiro – mas uma agulha que é procurada por alguém: é disso que se trata quando falamos de exílio. (…) Mede-te não por teus pares escritores, mas pela infinidade humana: é quase tão terrível quanto a inumana. É a partir daí que deves falar e não a partir da tua inveja ou ambição.» Chegaram-me estas notas por causa do livro que descobri hoje que o meu amigo Nazir Can havia lançado no Brasil sobre a literatura moçambicana e que se chama: O campo literário moçambicano: tradução do espaço e formas de insílio (Kapulana, 2020). Fiquei preso ao substantivo «insílio», cujo significado me instigava e resolvi averiguar, tendo descoberto que ganhou a armadura de um conceito muito explorado nos ensaios do sul-americano Mario Benedetti para identificar “a condição dos cidadãos que foram forçados por poderes coactivos a adotar uma atitude passiva e uma semi-impotência que os destitui de sua autonomia moral e de sua iniciativa psicológica”. Para ter chamado a palavra à capa é porque Nazir encontrou em muitos textos essa característica, ao ponto de a desenvolver como chave e parece-me ser um achado para traduzir o indisfarçável mal-estar de grande parte da intelectualidade moçambicana, tal como aliás “a curiosa nostalgia do exílio em plena pátria” (Benedetti), muito presente no impasse que muito para além do Covid se faz sentir no quotidiano do país. Nós não nos libertamos de um hábito atirando-o pela janela: é preciso fazê-lo descer a escada, degrau por degrau, dizia Mark Twain – e poderíamos citar um hábito como o medo. Sem o ter lido, conhecendo-lhe a inteligência e a capacidade de análise suspeito que este livro estará para Moçambique como Labirinto da Saudade, de Eduardo Lourenço, esteve para Portugal, e espero que o livro se possa comprar em Maputo. 27/07/2000 A caixa com livros estava na varanda. Abria-a e o livro que estava por cima era A Festa de Babete, de Karen Blixen. Estava o frescor que acaricia as têmporas e lhes dá a agudez da atenção. Resolvi ler finalmente a História Imortal, por causa do Orson Welles (filme que nunca vi). Fui ao guarda-fato vestir um blusão e sentei-me na varanda a ler a pequena novela. Foi como visitar uma casa mobilada com biombos que o vento vai trocando de lugar. Depois disto só um iogurte de cerejas, coisa impossível de arranjar por estas bandas. Absolutamente devastador… 28/07/20 A cultura de massas é o resultado de uma arte combinatória de tudo o que já foi assimilado. As belíssimas orquestrações das canções dos Beatles ou do Elton John, em termos de linguagem da música, mais não fazem do que usar os padrões musicais conquistados pelos movimentos musicais do século XIX. Tiveram sucesso popular, depois de um século de acomodação a essa sensibilidade musical. Parecem agora simples: houve uma educação do gosto e da sensibilidade. Quem lembra hoje as resistências suscitadas pelas dissonâncias que o jazz introduzia na música? Isto em si é normal. Grave é que para um filho da cultura de massas não exista o mundo antes de si, a memória da tradição cultural, e o presente não passe do pomar onde supostamente colhe os lucros. Daí que um destituído como Bolsonaro consiga ser presidente e possa dizer sem ser imediatamente electrocutado por raio divino que criar uma lei de combate às fake news é uma tentativa de limitar a liberdade de expressão, por não entender que a liberdade não existe em abstracto e está irmanada com a responsabilidade. Não é sequer perversão ou maldade, ele não entende mesmo. Esta incapacidade de discernimento é comum a quem teve uma exclusiva educação ancorada nos “valores” da sociedade de massas, onde até o capital se converteu, antes de mais, “numa estética mercantilizada” que fez naufragar tudo numa terrível, irrevogável, indistinção.