Domingo no Mundo

Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 6 Junho

[dropcap]F[/dropcap]icou, José, a conversa a meio, Barrias. Vai ser mais difícil, doravante, ver as linhas com que passajavas as bainhas do Mundo. As mãos do artista não param um instante de alinhavar máquinas de moer sentidos, a romper passagens entre isto e aquilo, ligando a pureza do olhar à sujidade da recomposição. Às vezes chamam-lhe atelier. Não sei agora onde colocar as peças que sobravam na desmontagem dos funcionamentos que praticavas com a elegância dos construtores malabaristas. As palavras nem por cicatrizes voltarão a prender os arames atravessados. Ficamos sempre a meio.

Santa Bárbara, Lisboa, domingo, 7 Junho

Estava perdida no tempo a origem de certo azul púrpura que iluminava manuscritos medievais. A cor milenar extrai-se, afinal, dos frutos da pequena planta que nasce na Granja-Amareleja, Chrozophora tinctoria, pequena erva de folhagem verde-prateada. As flores são agrupadas em racemos tipo espiga, com as masculinas no topo e as femininas na base, em geral solitárias. As flores masculinas são amarelas e discretas. As flores femininas exibem um ovário esférico sem pétalas. Os investigadores começaram por ler vários tratados medievais, com as instruções para obter o folium, de uso sumido. Também simularam a interação da luz com a molécula, para verificar se assim chegavam ao tom exacto e desejado. Obtive inesperada alegria com a resolução, através de leitura e luz, deste enigma colorido.

Santa Bárbara, Lisboa, terça, 16 Junho

Na normalidade dita nova as entrevistas televisivas quase dispensam intermediários. As perguntas chegam por email com foto que explica os enquadramentos habituais. Faz-se do ecrã o espelho, ensaia-se sem maquilhagem nem conhecimentos mínimos de iluminação, tortura-se a retórica na esperança da eloquência, repete-se até atingir o ponto e o perfume do refogado e está pronto. Sofrerá ainda a montagem final, que no caso do «Nada Será Como Dante», com o propósito da Torpor, acabou por dar peça redonda e equilibrada, mas o processo deixa um fundo de boca estranho. Perde-se, algures, o olhar do operador de câmara. Somos diferentes quando somos vistos. E postos no lugar pelo olho alheio.

Santa Bárbara, Lisboa, domingo, 21 Junho

Do outro lado do Mundo chegou a Sara, filha da Maki e do João. Deu-se o enlevo na madrugada alta, como devia ser sempre. Fora noite e logo o dia nasceria, que novas destes vêm com o condão de mexer nos ritmos. O anúncio deste dia já me tinha trazido graça em altura rasteira, também pelo debate à volta nome, que no Japão ganha a suprema complexidade do único, cruzamento das possibilidades infinitas. Além dos significados de cada partícula, há que ter em conta o equilíbrio gráfico dos caracteres e inúmeras relações, com o apelido, com os sons. Sara pode portanto conter bondade, coisa bem feita, kimono de seda suave ou nova colheita colorida. A entoação encontrar-se-á com as explicações, cantando ambas a maneira única de ser na perfeição Sara. De dizer um nome mais os rios que nele desaguam.

Santa Bárbara, Lisboa, quarta, 24 Junho

O melhor dos filmes tem apenas um protagonista e conta as voltas e reviravoltas da sua vida nuclear de 1 de Junho de 2010 ao mesmo dia de 2020. Um olho-lente esteve focado nele sem pestanejar este tempo todo e o resultado só podia ser brilhante, ainda que este brilho tenha muito que se lhe diga e se veja: https://www.nasa.gov/feature/goddard/2020/watch-a-10-year-time-lapse-of-sun-from-nasa-s-sdo. Crítica singular: Morricone deveria ter tratado da banda sonora.

Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 27 Junho

Sem querer descubro dossier todo organizadinho, impante de colagens e legendas dactilografado, ligeiramente sublinhado. São para aí uns três anos de crónicas de Carlos Drummond de Andrade, no Jornal do Fundão. Neste exacto dia há 40 não menos exactos anos o tema era Camões, talvez eco do dia redondo, «amaldiçoado dia de nascer», embora aquele fosse visita frequente da casa destoutro. A coluna, está bem de ver, erguia-se poliédrica por isso naquele dia cantava: «Luís, homem estranho, que pelo verbo/ é, mais do que amador, o próprio amor/ latejante, esquecido, revoltado,/ submisso, renascente, reflorindo/ em cem mil corações multiplicado./ És a linguagem. Dor particular/ deixa de existir para fazer-se dor de todos os homens, musical/na voz de órfico acento, peregrina./ Que pássaro lascivo se intercala/ no queixume sutil de tua estrofe/ e não se sabe mais se é dor, delícia,/ e espinho, afago, e morte, renascença?» E segue estratosfera afora. Quem era aquele miúdo a copiar de tesoura e cola tais palavras, os pensamentos e o humor que se abriam nos micro-contos da delícia; que terá retido do país Brasil que logo esqueceu e ali ressuma de tão explicado, tão de carne, tão de osso? O puto está agora em oportun-idade de balanço, mareado de tão quieto, a pintura das sombras das ferramentas para que não se perca o seu lugar no painel-cenário. O garoto continua rodeado de papel ainda sem saber bem qual o seu, acedendo-lhe tão só pelo tacto à humidade e aos vincos. São «tempos difíceis», adivinhava Drummond, noutro dia: «Na cidade cada vez mais ameaçadora, o sujeito receava ficar em casa e tinha medo de sair à rua. E dava a razão: -Urubu está voando baixo.»

Santa Bárbara, Lisboa, domingo, 28 Junho

As nuvens viajam no tempo. Interrompo a passagem destas que foram fundo, em 1783, para uma das vidas cantadas de Dardanus, de Jean-Philippe Rameau, e circulam agora nas redes sem que se saiba bem a razão. Fatiga-se o olhar na biblioteca de profundidades, de cores em diálogo ininterrupto, as sucessivas subtilezas do azul, sobrepõem-se as carnes, reconheço-lhes as cicatrizes, o verso a transparecer, a canto a marcar arrumações, uma aparente quietude que conserva a passagem do tempo. Fico-me nas nuvens.

Santa Bárbara, Lisboa, terça, 30 Junho

A Arquivo, livraria que emite dons, deu mais uma volta ao sol e por causa dela vejo as chamas consumirem-se no astro Borges. Atrevi-me a dar voz a Outro poema dos dons, sacado à sua «Nova Antologia Pessoal», na edição seminal da Difel, traduzida pela editora, Maria da Piedade Ferreira: «Graças quero dar […]/ pelo facto de que o poema é inesgotável/ e se confunde com a soma das criaturas/ e jamais chegará ao último verso/ e varia segundo os homens».

Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 4 Julho

O neto de um amigo, novíssimo como as madrugadas e tocado por doença que tende para tragédia, nunca deixou de brincar. Com ferramentas. Exames recentes dizem que vai continuar a construir o que bem lhe apetecer, apesar dos riscos. Alicate e chave-inglesa, martelo e grifo, serrote e formão são agora flores no meu jardim. A notícia rega-o com abundância de águas onde chapinho descalço e jubiloso.

Santa Bárbara, Lisboa, domingo, 5 Julho

Nas bibliotecas de Hong Kong começaram a ser retirados livros de oposicionistas e intelectuais, como Joshua Wong Tanya Chan ou Chin Wan, sem que as autoridades façam disso segredo. Explicação mais oficial não há: contrariam a (nova) lei de segurança nacional. Comovente a força que ainda se reconhece ao livro, abrigo das ideias. Ora se a proibição contém em si o germe da tristeza, cada livro proibido tende a arder muito para além das cinzas. Sem os ter lido, desejo-lhes isso mesmo.

Santa Bárbara, Lisboa, segunda, 6 Julho

O longo braço da generosidade toca-me com os «Contos de Aprendiz», de Drummond. Recebo o perverso contentamento desta manifestação de sincronicidade. E fico a pensar se a épica tem maneiras de caber na narrativa curta.

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