Z.

[dropcap]N[/dropcap]as equações matemáticas a incógnita é X. Nele, ele próprio. Z. Um diminutivo de infância que lhe ficou. A recobrir o conteúdo secreto, de anonimato e ausência.

Quem quer falar da morte? A tristeza tem que sair, suada pelos poros, ou afoga-me. Faço-lhe companhia nestas palavras como noutras alturas, noutras distâncias menores. Uniram-nos laços de sangue e de estranheza. Dão-nos os pêsames e os sentimentos, mas há um mundo de questões que se abriu desta caixa de Pandora e fica a atormentar. Porque também vamos morrer sós e sem ninguém saber por uns dias, uns anos. Faleceu hoje. De manhã. É verdade. Foi hoje, há três dias. Mas a data pode ser uma mentira. As pessoas morrem quando sabem que morreram ou morrem-nos quando o sabemos. E que sabemos nós? Que nos morrem em vida, ou se nos deixam morrer como às vezes vivem para lá do momento em que nos deixaram sem nos deixar saber. Como se fosse hoje, mas passaram dois anos. Extraviado. Morre-se quando se sabe que morreu. Não sei o que ele soube. Nós, só agora. Com esta mágoa acrescida da tristeza de não o ter sabido antes. Mesmo se assim, parece que viveu um pouco mais até ao veredicto do olhar.

Foi uma estrela pop. Uma fantasia com que em jovem sonhou gostar de ser lembrado. Uma estrela desconhecida, dos anos sessenta e setenta. Mas que importa se, pensando bem, nunca alguém conhece ninguém. E tornou-se irreconhecível. Como somos até para nós próprios, em dados momentos. Ensaios à capela à porta fechada. Vagos espectáculos. Vinis vindos de França. Sonhos. Era uma fotografia a preto e branco nas revistas cor-de-rosa que me mostrava. Lembro-me. Fotografia de estúdio, de corpo inteiro, casaco ao ombro e pose de charme contemplativo. Ou de rosto, em formato de postal. Autografadas na diagonal com uma assinatura grande e expressiva. Que se foi apagando com o tempo. E como cromos das cadernetas de estrelas de cinema, em cores artificiais e contrastante e que eu espiava em segredo. Eram bonitas. As estrelas a pousar oblíquas para a câmara, de penteados rigorosos em ondas. Que coisa, sonhar com a fama.

Morreu só. E só dois anos depois, soubemos. Deixamos as pessoas morrer sós porque as deixámos viver sós. Sem querer. Ou porque o quiseram ou porque fomos nós. Tinha vocações várias, cursos. Que dariam para tudo e não deram para nada. Era considerado estranho. Porque cada um acha a estranheza do outro sempre mais estranha do que a sua. Tinha uma vida estranha. Passou mal mas deixou bens. Suprema ironia. Talvez sentisse essa vontade de deixar algo de si. Mas deixou também o que foi e muito que não foi e se lhe adivinhava sonho.

Para além disso um rasto de invisibilidade para além dos afectos que o lembrem. Essa insignificância, imputada ao que fez ou não fez, porque sem reconhecimento. Ele a perder-se nuns casacos, cada vez mais, grandes demais. Porque era também o corpo a sumir-se-lhes no interior. Engolido pelo interior da cabeça e por uma espécie de visibilidade que realmente se esfumava.

Os lugares de Z. – todas as casas – deram-me sempre que pensar. Conjuntos de quartos tornados interiores. Janelas fechadas, paredes a perderem-se atrás de camadas de mobiliário, sobrepostas em altura e longitude, no sentido de um centro. A ocupação compulsiva do espaço até ao preenchimento total. Sempre a compará-lo com o conceptualismo da Land art, penso em Walter de Maria, nas “Earth room”, salas cobertas de uma terra limpa e uniforme, inóspita e perfeitamente estéril. E depois penso no interior das casas de Z. progressivamente tornadas inóspitas pela acumulação. Penso nas instalações de De Maria, com elementos minimais de geometria perfeita, volumes ou planos, organização rigorosa de formas rectilíneas dispostas no chão. Sempre no limite do essencial. O conceito de caminho e o de lugar O paralelismo perfeito sem pontes.

Talvez a apontar ao infinito transposto para o interior de espaços. E em Z. o excesso.
Ou Richard Long. Outra apropriação do espaço com instalação de coisas da terra meticulosamente ordenadas. Sinais repetitivos e orientados como caminhos ou como pontos focais do universo vindo do exterior ou, se no exterior, o ordenamento no rigor do que de origem natural, não o possui à partida. Ordem e sentido. E Z. vive também a apropriação do espaço interior, ocupado com objectos anódinos, materiais que acusam um critério de irrelevância essencial. Sacos, folhetos publicitários empilhados numa organização impecável, a ocupar todos os lugares do corpo, de sentar de comer de andar. Uma invasão obsessiva de todo o espaço útil da casa, como uma envolvência uterina. Ou uma fronteira onde estranhos passam a ser todos, por falta de lugar. Era recolector-colecionador, com um critério exclusivo de inutilidade, cumprido em cada objecto danificado e incompleto. Quase reduzido a matéria ferida de vida anterior. Eram esses os que levava para casa. Como animais doentes. Se Long introduz o conceito do próprio processo como obra de arte, também aí caminha Z.

E um dia, sacos de plástico de supermercado, dezenas. Lívidos, impecáveis, alinhados no chão e esticados na vertical, com pequenos conteúdos indecifráveis. Talvez víveres como na preparação de um cerco. Ou de um mergulho na ausência. A ocupar todo o chão. Seriam pacotes de leite, conservas, bolachas. Nunca espreitei mas é o que imagino. O cúmulo de uma necessidade íntima, de um anseio, psíquico, mágico. Talvez por isso nunca se saberá um objecto de arte. Tudo vai desaparecer como lixo de volta ao lixo. Uma instalação honesta, esta. A obra que não se destinou ao olhar. Veemente, necessária e imperativa.

O meu padrinho. De invisível estrela pop ao desconhecido conceptual. Uma anónima pegada na vida, que nem na morte se anunciou. Porque morreu sem me dizer? Falámos, pouco antes, mas depois fechou as portas como sempre. Nunca sabíamos dele senão quando queria. Agora, sabemos para onde foi. Mas não de onde. No lapso enorme entre uma morte e a outra. Se casa é o interior da cabeça virado do avesso, vamos agora entrar-lhe pelo secreto conteúdo de uma e outra adentro. Como de uma “showroom”. Uma viagem penosa. Face à morte de uma personagem do teatro de vida, a vida, ela própria passa a fazer-nos girar numa órbita diferente. Subtilmente diferente. Desviada.

A verdade é que morreu exactamente como uma estrela. Uma presença no firmamento de quem o lembrava, muito depois de, sem se saber, já lá não estar afinal.

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