Um ano de protestos em Hong Kong visto por dois jornalistas

[dropcap]U[/dropcap]m ano após o início dos maiores protestos pró-democracia em Hong Kong desde a transferência de administração para a China, a euforia dos manifestantes deu lugar à depressão, com a aprovação por Pequim de uma lei que pode ameaçar os activistas.

“É trágico, porque no ano passado houve momentos em que os manifestantes sentiram que tinham ganho algumas batalhas: havia um ambiente exaltante, eufórico, até lúdico, e agora não é de todo assim”, disse à Lusa a correspondente do jornal francês Le Monde em Hong Kong, Florence de Changy.

Nessa altura, os protestos contra o projecto de lei da extradição, que se prolongaram durante quase sete meses, cobriram Hong Kong de nuvens de gás lacrimogéneo, convertendo as ruas da moderna metrópole financeira em palco de cenas de batalha campal, com confrontos quase diários com a polícia e milhares de detenções.

A longa insurreição acabaria, no entanto, em vitória para o movimento pró-democracia, com a retirada formal da proposta legislativa que permitiria extraditar para a China suspeitos de crimes.

Um ano depois, a aprovação da lei da segurança nacional por Pequim em 28 de Maio, proibindo “qualquer acto de traição, separação, rebelião [e] subversão”, e de uma lei que criminaliza o ultraje ao hino nacional chinês, em 4 de Junho, arrefeceu os activistas, que temem ser perseguidos e julgados por dissidência.

“O ‘moral das tropas’ arrefeceu. Eles têm a impressão de não terem conseguido nada, o que é paradoxal, porque conseguiram que o projecto lei da extradição fosse retirado, ganharam essa batalha”, disse a correspondente do Le Monde.

Segundo uma sondagem realizada pela organização dos manifestantes entre 23 e 25 de Maio, à qual responderam 370.000 pessoas, citada no Le Monde, 93% dos residentes de Hong Kong acreditam que a lei da segurança nacional permitirá a criação de “uma força policial secreta” que “utilizará meios extremos e extrajudiciais para perseguir dissidentes, extraditá-los para a China e puni-los, sem qualquer controlo legal”.

Cerca de 90% pensam que será arriscado exprimir o seu ponto de vista mesmo na Internet. Apesar disso, 49% dos inquiridos afirmam que vão continuar a resistir. “Estão em choque e à espera de ver como vão reagir”, explicou Florence de Changy.

“Há pessoas que estão deprimidas e os organizadores dizem que há mais suicídios que podem estar ligados à crise”, apontou, frisando, no entanto, que “é difícil comparar o número de suicídios do ano anterior com os deste” ou apurar a causa da morte.

A jornalista, que vive no território desde 2007 e foi presidente do Clube de Correspondentes Estrangeiros de Hong Kong até 2019, acompanha há anos os protestos pró-democracia que têm sacudido o território, e defendeu que a escalada da pressão chinesa sobre Hong Kong retirou terreno aos manifestantes.

“Em 2014, a ‘revolução dos guarda-chuvas’ reclamava um modelo de sufrágio universal diferente do proposto por Pequim. Nessa época, pediam mais democracia, era uma reivindicação de progresso”, recordou.

“O projecto de lei de extradição [em 2019] já foi uma luta contra uma regressão, uma perda em relação aos direitos adquiridos e às liberdades em Hong Kong. E agora, com a lei da segurança nacional, é o golpe final”.

“Vários golpes”

Para o presidente da Associação de Jornalistas de Hong Kong, Chris Yeung, o movimento pró-democracia sofreu vários golpes nos últimos meses. “Milhares foram detidos e muitos já terão sido presentes a tribunal, [há] a interdição de reuniões públicas por causa da covid-19, o que facilita a tarefa da polícia de dispersar a multidão e deter manifestantes, e o endurecimento do Governo chinês minou o moral”.

“É claro que o descontentamento profundo ainda existe e pode irromper a qualquer momento, se as circunstâncias mudarem”, considerou no entanto Yeung, em declarações à Lusa.

Até lá, o medo dos ativistas de serem detidos e julgados ao abrigo da nova lei da segurança nacional pode ser um travão para voltarem às ruas, acredita o presidente da Associação de Jornalistas de Hong Kong.

“Muitas pessoas estão a considerar a hipótese de deixar Hong Kong, ou, se ficarem, não sabem se vão continuar a lutar ou manter a cabeça baixa, esquecendo as antigas reivindicações políticas e aceitando que não vão conseguir mudar o Governo central chinês ou contrariar o poder do Partido Comunista”.

O jornalista pensa que Hong Kong poderá viver uma nova vaga de emigração como a que o território conheceu no final dos anos 1980, antes do regresso à China, “quando o futuro de Hong Kong foi decidido”.

“A história repete-se. Vamos ver uma nova vaga, talvez em menor escala, mas vamos certamente ver um número considerável de pessoas a partir ou a enviar os seus filhos para o estrangeiro”, afirmou.

Para Florence de Changy, a maioria da população de Hong Kong continua, no entanto, “do lado da oposição”.

“Os manifestantes têm uma pequena esperança nas eleições legislativas de setembro, já que nas últimas eleições, em novembro, 17 dos 18 distritos passaram para a oposição, o que apanhou Pequim de surpresa”, explicou.

“Se conseguirem ganhar o controlo do Conselho Legislativo [em setembro], isso poderia gerar uma grande crise constitucional e seria uma vitória para o movimento pró-democrático”, acrescentou.

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