VozesO fecho do mercado João Romão - 29 Mai 2020 [dropcap]C[/dropcap]ertamente não tivemos antes experiência semelhante: à falta de suficientes pauzinhos que interferissem suficientemente com cada vez mais poderosas engrenagens globais, um vírus insuspeito fez o mercado fechar subitamente, um colapso estrondoso que vivemos ainda, vagamente entorpecidos e atordoados, e que os livros de história contarão um dia – se ficar alguém para contar, evidentemente, que isso também não é hoje muito certo. As mãos visíveis que acertam os rumos definidos por poderes invisíveis navegam a curta vista, que são muitas as curvas e denso o nevoeiro: não há rentabilidade dos activos que aguente a passividade deste mercado fechado: mesmo que se amontoem corpos mortos em cemitérios oficiais ou improvisados, há que reanimar os mercados globais com que alimentamos gorduras de minorias privilegiadas e asseguramos com mais ou menos decência a sobrevivência do resto. Mesmo faltando distância suficiente para que se notem os efeitos do bloqueio à economia que vivemos – e ainda mais para que se analise com relevância o problema e as alternativas que podemos colocar – a pandemia que paralisou o planeta já nos deixou sinais suficientes das aberrações do sistema económico contemporâneo. Uma é a ideia de casa. Parece simples, ficar em casa. E será, em muitos casos. Não me custa nada. Mas não é o caso dos muitos milhões de pessoas que vivem nas periferias suburbanas das grandes metrópoles do sudeste asiático ou da América Latina. Ou das não tão grandes mas também miseráveis periferias das maiores cidades do Sul da Europa. Ou até dos subúrbios de Paris, Bruxelas, Estocolmo, ou de todas as grandes cidades dos Estados Unidos. Para estes milhões de pessoas, frequentemente não há casa. E se há, é um espaço exíguo, sem as infra-estruturas necessárias, onde se acumulam demasiadas pessoas e demasiada miséria. O fecho do mercado mostrou como não resolver esse problema básico e elementar que é o direito à habitação facilmente se torna, também, um problema de saúde pública. Um problema da comunidade e não um problema individual de quem não se enquadra devidamente no tal mercado que entretanto fechou. Depois da casa, a comida. Mesmo quando ficar em casa é fácil, é preciso comer. É preciso quem produza. Quem transporte os produtos para os locais onde se compra. Quem venda. Ou quem entregue em casa (de quem a tem, evidentemente). O mercado dá pouco valor a estas coisas. E costuma dar pouca importância ao impacto ecológico do transporte internacional de alimentos. Mas este confinamento a que nos vemos obrigados (e que está longe de estar resolvido) recoloca no centro das discussões sobre políticas agrícolas a questão da soberania alimentar e da territorialização da produção de alimentos. A que mercado vamos comprar comida, afinal? Enfrentamos ou não a crise ecológica vigente – e decorrentes alterações climáticas? Já seriam por si só motivos mais do que suficientes para nos fazer repensar a sociedade que vivemos. Mas não são só essas básicas e elementares necessidades humanas – a habitação e a alimentação – que põem hoje em evidência a aberração do sistema económico em que vivemos e das respectivas políticas e mecanismos de regulação – genericamente, aliás, legitimadas por governos, agências e organizações internacionais por todo o planeta. As questões do trabalho – o seu valor, a sua protecção, as relações sociais e de poder inerentes – são também recolocadas com uma violência que ainda não vislumbramos na sua plenitude – mas que aí estarão, implacáveis. Em tempos de “normalidade”, o mercado não valoriza médicos e enfermeiros, produtores e distribuidores de comida, trabalhadores dos transportes e sistemas logísticos. E quando as condições se alteram e estas passam a ser as profissões mais relevantes para manter em penoso funcionamento um sistema económico e social em cuidados intensivos, também não há mecanismos de mercado que alterem significativamente a remuneração, a segurança ou as condições de trabalho destas pessoas que asseguram a sobrevivência de todos os que cá estamos. Se a “normalidade” dos mercados faz destas pessoas mercadoria barata e dispensável e remunera CEOs e administradores com rendimentos mensais que um trabalhador jamais auferirá em toda a sua vida, temos algo de profundamente apodrecido para atirar para o caixote de lixo da história. Ou então esperamos e a história atira-nos a nós. Entretanto há quem viva, de facto, a eficácia poderosa e cruel dos mercados: trabalhadores independentes, pessoas com contratos a prazo, eventualmente transformados à pressa em empresários em nome individual, as vítimas da precariedade que marca cada vez mais as relações de produção no capitalismo contemporâneo – incluindo todos os artistas e profissionais das variadas áreas da cultura indispensáveis para que chamemos “criativa” à economia actual: as pessoas que dependem das encomendas, dos ciclos da procura, das decisões dos gestores, enfim, dos mercados, na sua magnífica dimensão regulatória. Essas pessoas passam fome, não têm outro remédio, e isto ainda mal começou. Enquanto o mercado estiver fechado, sabem que não têm solução. E nós também sabemos que esta regulação económica não serve – até porque o mercado, como se vê, a qualquer momento pode fechar. Também eles sabem tudo, os que não deixam nada. Sabem que este fecho dos mercados também os ameaça. Sabem que a morte continua a sair à rua e que há um vírus descontrolado pronto a matar. E sabem que precisam de abrir o mercado outra vez. Fazem-no com brutalidade: não se limitam a abrir mercados internos, de proximidade, modestos nos resultados mas ainda assim mais seguros para a saúde. São alarves e têm grandes ambições. Franqueiam as portas à chegada de aviões carregados que alimentem o negócio de um turismo reles, feito de serviços de mínimo valor e de exploração máxima de pessoas e de um território que não é nosso, como o Carvalhal. Vão matar muita gente.