Covid-19 | Terapia de crianças com necessidades educativas especiais condicionada

Há apoio emocional e acompanhamento por parte de terapeutas, mas nem sempre chegam para evitar o impacto que o novo coronavírus tem sobre as crianças com necessidades educativas especiais, à conta do encerramento das escolas e da quebra das rotinas. Com opções terapêuticas limitadas, há quem observe crianças a perder memória ou a alterar o seu comportamento na reintegração de conhecimentos

 

[dropcap]E[/dropcap]stão suspensas das vivências do dia-a-dia as imagens de crianças em uniformes a conversar junto aos portões das escolas. As salas de aula foram transferidas para casa. Mas se a educação continua, embora em moldes diferentes, o mesmo nem sempre se pode dizer da rotina e das sessões de terapia, necessárias ao desenvolvimento de crianças com necessidades educativas especiais. O problema foi levantado em Hong Kong, e por cá também há quem sinta o impacto da falta de terapia.

Iker, que tem autismo, já pegou na almofada para a escola e perguntou por ela, sem perceber porque não pode ir. Julene, a sua mãe, nunca deixou de trabalhar, e recebeu e-mails da terapeuta da fala do filho a mostrar disponibilidade para ajudar, com recomendações de trabalhos que pode desenvolver com a criança, e aproveita os fins-de-semana para preparar esses materiais.

Mas as diferenças sentem-se na mesma, nomeadamente pela mudança de espaço. “Às vezes em casa não lhe apetece, fica chateado e nervoso porque vê os irmãos lá e quer brincar, quer fazer outras coisas que faz normalmente em casa e não é a mesma coisa”, descreveu a mãe ao HM.

“Claro que há coisas que ele piorou, porque antigamente ele sabia dizer os nomes todos dos colegas da turma, e agora, às vezes, vou mostrando as fotos dos colegas (…) e ri-se, mas não consegue dizer. Tenho de o relembrar sempre”, explicou. Este exercício de memória é algo que a mãe planeia fazer diariamente. “Acho que se deixarmos de puxar por ele, vai regredir”, disse, apesar de indicar que a preocupação é atenuada pelo facto de ter um bom acompanhamento em casa, acrescentando que Iker “tem a sorte de ter irmãos mais velhos que podem puxar por ele”.

As mudanças não são, porém, apenas ao nível da memória: “ele está fechado em casa e às vezes fica chateado”. Assim, em duas das semanas em que a situação do vírus em Macau parecia estar a melhorar, mãe e filho foram dar uma volta num trilho ao domingo para o menino fazer exercício, andar um pouco e diversificar actividades.

Sara Chiang, psicoterapeuta no Centro de Saúde Mental do Hospital Kiang Wu, disse ao HM que geralmente crianças com necessidades educativas especiais são vistas cerca de uma vez por semana para garantir que a terapia é providenciada com regularidade. “No entanto, muitos casos pararam de ter terapia durante quase dois meses devido à covid-19. Alguns pais disseram-me, que não podem ir ao hospital porque é arriscado, enquanto outros disseram que ‘é impossível pôr-lhes a máscara e, por isso, não nos deixam entrar nos autocarros’”.

A psicoterapeuta partiu do exemplo de crianças com autismo, que têm problemas sensoriais que dificultam o quotidiano, como lavar os dentes, comer ou dormir, para explicar que parar a terapia pode levar a uma melhoria mais lenta nos comportamentos, capacidades sociais e ferramentas de comunicação das crianças.

O autismo tem características como rigidez e teimosia, levando várias crianças a insistirem fazer determinadas actividades diariamente, sob pena de ficarem frustradas. Algo que se pode reflectir em, por exemplo, apanhar um determinado autocarro. “Acho que a situação do covid-19 também cria frustração e emoções instáveis, e alguns deles podem ter dificuldade em perceber porque é que não podem ir à escola ou sair para brincar”, explicou Sara Chiang.

Quebra de rotina

A psicoterapeuta acredita que muitas crianças, com ou sem necessidades educativas especiais, estão em casa desde o Ano Novo Chinês para evitar contacto desnecessário com outras pessoas. “Muitos pais queixaram-se que as crianças têm jogado videojogos diariamente por muitas horas, mas os pais não sabem como pará-los uma vez que não há mais nada que possam fazer quando não podem sair à rua. Acho que o maior impacto de não haver escola é que as crianças perderam a sua rotina diária e disciplina, por exemplo trabalhos de casa regulares e a hora de ir dormir”, explicou.

Dos casos que acompanha no hospital, Sara Chiang observa que a maioria dos pais tem emprego a tempo inteiro e que quando as crianças vão à terapia, por vezes, são levadas por empregadas domésticas ou os avós. “Compreendo que isto seja difícil de controlar porque muitos pais têm de trabalhar (…), mas a formação dos pais é muito crucial em termos de atingir objectivos de tratamento”, comentou.

No seu entender, “a formação de pais em Macau ainda não é muito popular, mas também acredito firmemente que, se os pais puderem passar mais tempo com os filhos em casa, podem definitivamente ajudá-los”. Aponta que as capacidades de cuidado pessoal, como idas à casa-de-banho ou vestir roupa podem ser melhoradas mesmo quando não há escola, e que o mesmo pode acontecer com brincadeiras ou com exercícios para desenvolver capacidades sociais.

“Agora com dois meses e tal sem escola, com certeza que há alguma diferença”, referiu Sofia Santos, mãe de Rico, uma criança que tem autismo. A mãe nota que apesar do filho comer e dormir bem, parece não ter tanta paciência para a reintegração de alguns conhecimentos. Neste aspecto, Sofia Santos sublinha a importância das rotinas e aponta que qualquer criança – com ou sem necessidades especiais – deve ter o mesmo problema.

Entre as maiores dificuldades a mãe destaca ausência de terapia da fala. “É uma coisa que não conseguimos fazer sozinhos em casa, é muito difícil. E também não temos ambiente para terapia ocupacional”, disse Sofia Santos. Apesar de receber directrizes dos terapeutas sobre as actividades a desenvolver em casa, “é diferente de ter uma terapia”. Algo que associa também ao conforto que as crianças sentem em casa e o facto de já não terem obrigatoriedade em cumprir o horário quando há escola.

Reconhecendo que os profissionais que acompanham o filho têm feito um bom trabalho, agora a preocupação central é saber se o tempo perdido será compensado no Verão. Entretanto, o filho tem tido acompanhamento fora da escola, nomeadamente através do Centro de Apoio Psico-Pedagógico e Ensino Especial, da Direcção dos Serviços para a Educação e Juventude (DSEJ). De acordo com Sofia Santos, foi o próprio organismo a contactar os pais, e Rico começou essa terapia quando a situação se apresentou um pouco mais calma.

À distância de uma chamada

A DSEJ explicou que para os estudantes com necessidades educativas especiais, as escolas mantêm o princípio de suspensão das aulas, optando por plataformas multimédia para dar aos estudantes uma aprendizagem diversificada. Ao HM, a DSEJ declarou que os terapeutas continuam a dar “regularmente, acompanhamento terapêutico aos alunos que necessitam dos serviços de terapia da fala, terapia ocupacional ou fisioterapia, através de telefone, vídeo e videoconferência”. Para além disso, os pais recebem conselhos sobre treinos em casa e serviços de consultas, comunicando com os professores que lhes fornecem “um plano integrativo de aprendizagem e de tratamento”.

Reconhecendo o papel dos pais “na eficácia do tratamento dos seus filhos”, o organismo governamental acrescentou que as terapias se vão focar na educação parental, para apoiar os pais a continuarem a dar treinos em casa e o apoio que as crianças precisam. “A DSEJ acredita que a cooperação entre pais/encarregados de educação e escolas pode promover, de forma eficaz e contínua, o desenvolvimento e o crescimento saudável dos alunos”, defendeu.

A situação também chega aos menores de três anos, caso em que o responsável pelos serviços de intervenção precoce para crianças portadoras de transtornos no desenvolvimento é o Instituto de Acção Social (IAS). Esta entidade também reconheceu que “a suspensão dos serviços de tratamento causará, a curto prazo, transtornos aos utentes e aos encarregados de educação e, consequentemente, afectará o progresso do tratamento das crianças”. Assim sendo, o IAS tem coordenado com os serviços sociais diurnos – nos quais se incluem os serviços de intervenção precoce subsidiados – para manter o acompanhamento por via telefónica, junto dos encarregados de educação dos utentes, sobre o ponto de situação dos treinos em casa.

“Os assistentes sociais têm oferecido apoio emocional, enquanto os terapeutas têm prestado aos encarregados de educação conselhos e informações sobre os treinos domiciliários adequados a cada situação, para que os exercícios de revisão e os treinos possam ser realizados em casa. Pensa-se que estas medidas serão benéficas para o desenvolvimento e o progresso das crianças. Em simultâneo, alguns serviços produziram e disponibilizaram, nas suas páginas eletrónicas, vídeos sobre a realização de brinquedos simples, fornecendo mais actividades em casa para a diversão entre pais e filhos”.

O IAS descreveu ainda que a participação dos pais no treino das crianças sempre foi valorizada, e que no passado houve acções de formação e actividades para que os encarregados de educação tivessem em conta as particularidades do desenvolvimento das crianças e fizessem treinos em casa, de forma a melhorar a relação entre pais e filhos e as capacidades dos mais novos.

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