O fio da navalha

[dropcap]O[/dropcap]u o fio de Ariane. É tempo de voltar á minha rua. Ficar em casa. Aquele fio que me ficou para pensar. Desenrolar e contar. Em metros. Ou, daquele momento antes, mais de quatro mil quilómetros em linha recta. Longitude para oeste de Alagoas. Desenrolo o novelo deste fio em que se poderia voltar atrás.

Mas do Perú as lindas açucenas que manipuladas por emigrantes holandeses e levadas para o Brasil, deram estes híbridos a provar que o homem inventa a natureza e o espanto. Estes bolbos vivem comigo há anos. Não há erro para rever e refazer invertendo os passos.

Esta tentação melancólica sempre à espreita em cada pequeno salto na geografia desenhada sobre a mesa. O que fica para pensar e tem que ser. Irreprimível.

A sorte foi lançada. Alea jacta est. Diz-se quando aquilo que determinará um resultado já foi definido e só resta esperar que se revele. Os dados estão lançados. Uma sorte ou um destino. Ou recuando no fio, uma predestinação. É o que podemos dizer todos os dias, feitas as contas ao feito e não feito. E que o destino é mais forte do que o livre arbítrio. Que concluir em alívio ou desesperança? Porque é assim que fica o mundo todas as noites em que nos deitamos para dormir. E depois, logo se vê. Fio a fio, cores, pontos e padrões nessa tapeçaria em que se misturam os tempos, que se tece sem saber, mas depois num todo. Para onde foram os dados.

Não há abismos sem deles ou de onde o desenho. Para isso nos demoramos a pensar na complexidade de tudo. Pomos um pé de um lado, outro do outro, colocamo-nos de um lado ou do outro, ou voamos em círculos alargados a perscrutar o horizonte em amplitude e profundidade, de uma distância segura mas com a liberdade infantil de correr o risco se isso nos tomar a alma.

O fio em volta. Ou o fio da navalha. Aquilo que corta a realidade em duas, a todo o momento. Aquilo que poderia ter-se tornado e sido, e aquilo que afinal foi, é. E como saber se a primeira hipótese, mera hipótese, alguma vez teve alguma possibilidade de ser? Aí nos perdemos em conjectura inglória presa ao que era sonho, mais do que ao que de facto algum dia podia ter sido desenhado, ou temos um instante de lucidez mediúnica, prevendo o potencial futuro de um passado que se arrumou noutro rumo. Ao ponto de se dizer: foi sem querer. O mundo a que chegámos. E mais do que isso, sem ter sabido o contrário no fazer.

A pensar no fio de Ariane, mas é sempre o fio da navalha o que surge e o corta sem remédio. Caminho de risco de ferida grave. A verdade cortante e não emendável. Aqueles que não acreditam num destino. Como eu. Mas mesmo se não existir, é um fado subterrâneo o que fia a linha da vida. Que nos faz ser estoicos ou desistentes, adiar e entregar a deus, como se deus existisse também. Aqueles que não acreditam em Deus.

Como eu. Mas se chegam a sentir num abandono, que só pode ser uma distracção deste, uma ignorância, um desviar os olhos para outros desígnios. Todas as vezes que acreditamos na inevitabilidade, todas as vezes que esperamos ou desistimos de esperar, mas nos sentamos para ver o que vier. Como se algo trouxesse, consistente como um plano, aquilo que não se avista mas podemos pensar algures e por chegar.

Todas as vezes que se baixa os braços como se nada em nada contribuísse para nada. E aquelas em que pressentimos ou intuímos procurando ver mais longe. O futuro não existe a menos que o inventemos, ou em cada peça de uma construção, que colocamos sobre outra. Em cada traço, em cada palavra e em cada escolha numa montra infindável. Uma potencialidade a desenhar um palimpsesto. Um fio condutor. Como um destino. Ou fado.

Lanço os dedos à terra. Essa matéria real onde ficam pegadas. Disponho os bolbos já inquietos na terra. Em alguns, o verde já a despontar como uma esperança ou uma pressa no inevitável. E penso se é a altura, se será tarde e estarão zangados, alguns. Na memória das flores luxuriantes do ano passado, vejo as deste ano.

Como se escondidas à espera de voltar e as mesmas. Que não existem, que podem muito bem não chegar a nascer de todos eles. Ou de nenhum. Rego. A possibilidade daquele estonteante vermelho futuro. Sedoso e cheio. Aquela quase incandescente qualidade de cor quando abrem enormes, mas menos do que o repetido espanto quando os contemplo incrédula. Quando abrem e se abrem. Mas algo me faz hesitar. Se alguma coisa está certa neste gesto é o absurdo rigor inevitável naquilo que vai acontecer. Uma coisa ou o seu contrário. E ambas se chamam com o mesmo nome. Amarílis inevitável. No nascer, ou ficar por nascer. Onde se pode ler esse destino, por agora secreto como todos?

Nunca no fio de Ariane – a vida, fora do labirinto. Fibra de uma fiação sempre a tempo. De fazer e desfazer. Desenrolar e depois voltar atrás por outro caminho. Até acertar. Um destino meticuloso de tentativa e erro. Apagados até a obra final. É, apenas o fio da navalha. Este, sem a possibilidade de voltar atrás, ao início de tudo pelo mesmo caminho, e aí, escolher por tentativa e erro outra possibilidade. Até ao destino querido e escolhido. Um fio, esse, afiado com o tempo. Ou rombo e inócuo. Inútil. Cada escolha a cortar o destino em dois em cada momento. O que se torna possível e o que se torna impossível. E a vida, sempre em frente. Qualquer que se demonstre vir a ser.

A vida tem uma forma encriptada de produzir perguntas. Por isso tantas vezes falhamos nas respostas. E não é o que somos, o que desejamos, sequer, mas cruzamentos de linhas que se tocam por momentos, indecifráveis e continuam o seu caminho muitas vezes divergente. Uma oportunidade desconhecida. E perdida sem culpa nem perdão. Fossemos tão dependentes das falhas, da beleza, da luz, e quantas mortes não teríamos em crédito para morrer.

Olho para as mãos (o que fazer?). Acamo cuidadosamente mais um punhado de terra fofa em torno dos bolbos. E depois, olho para longe.

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