h | Artes, Letras e IdeiasSer é querer António de Castro Caeiro - 21 Fev 2020 [dropcap]“S[/dropcap]er é querer” leio no tratado da liberdade humana (Investigações Filosóficas sobre a Essência da Liberdade Humana, 1809) de Schelling (Friedrich Wilhelm Joseph Schelling 1775-1854). Não é um querer de uma vontade qualquer, dessas que se apregoam nos livros de auto ajuda, como se não fôssemos os objectos preferenciais de ajuda. Nem é o querer da frase batida: “querer é poder”. Não se entendermos a frase como o slogan do empreendedorismo da self-made mulher/homem de sucesso, entendido como o êxito expresso no que pode financeiramente, na vida boa que “tem”. Schelling interpreta este “querer” como o agir acção de uma vontade de um “eu”, não existindo nada que não seja conforme a um “eu”. Toda realidade objectiva estudada pela mecânica pode ser considerada uma natureza morta. Contudo, a natureza morta existe paredes meias com a natureza viva. A inércia existe em tensão com o movimento. São manifestações possíveis de um mesmo sujeito. O inorgânico tem em si partículas subatómicas numa dança louca inimaginável e como quer que pensemos átomos, não é de certeza em sossego. Diz Schelling que o ser humano em particular no fundo do seu ser tem um querer. Querer é ser. Cada pessoa para existir passa por este ser a querer. Todo o viver é interpretado como um querer. O romper da aurora tende ao nascer do dia. O crepúsculo tende ao cair da noite. Ir nas horas tende ao fim de cada uma. O fim de cada hora e de cada tempo é o início de cada outra hora e de cada outro tempo ou fase de tempo. Todo o instante está cheio de um ser que é um querer mesmo quando não pensa que quer ou deixa de querer, mesmo até quando explicitamente não quer ou quer que qualquer coisa não aconteça. Não querer não é nada. Não querer exprime-se em cada pessoa de formas extraordinárias de protesto, em que se diz não, age contra, interdita, proíbe, boicota, cria distância, afasta, desiste, renuncia. Querer testemunha-se de modo extremo quando achamos que não conseguimos, quando sentimos que estamos à beira da desistência, quando parece mesmo que não se é capaz. Querer é oferecer resistência, é não desistir, é insistir. Falamos connosco na segunda pessoa do singular do presente do imperativo “aguenta!”. Pedimos capacidade de resistência e um instante de tempo para perseverar. Um só instante em que “não deitamos a toalha ao chão”, um breve lapso de tempo, pode representar toda uma vida de sentido. O momento em que se desiste dura o mesmo tempo que o momento em que se resiste menos aquele brevíssimo instante em que se fica ainda. Esse brevíssimo instante de resistência dá sentido a toda uma vida. O tempo da desistência, mais breve do que o da resistência, estende a sua sombra por toda a nossa vida, é lamentado e temos pena de não ter aguentado. Não ter sido não quer dizer que não “seja”. Aquilo de que desistimos e não fizemos, aquilo a que renunciamos e que não fomos, o “não”, o negativo, a nulidade existe e está encastrado nas nossa vidas. Mas Schelling dá um sentido decisivo ao querer ser de que cada pessoa é portadora. Não é apenas um querer resistir nem um não querer desistir, nem a avaliação complexa das diversas possibilidades que se jogam nas nossas decisões com verdades e consequências, bases, motivos e fundamentos num complexo de relações. Desistir pode ser sensato como resistir. É óbvio. Em todo o caso, parece que é depois de “elas se darem” que podemos fazer um diagnóstico da situação, o que contradiz a própria ideia de diagnóstico, porque vem tarde demais. E não só. Não sabemos bem se poderíamos escolher de outra maneira, adoptar outras medidas diferentes, resolver de outro modo. Ser é querer porque o seu sentido como todo o querer é futuro. Não apenas o que cada um de nós quer não é possuído ou se o é, queremos continuar a ter isso à nossa disposição, como o que move todo o querer é algo que se quer ao manifestar-se a partir do futuro como um polo de atracção que nos atrai para si, que é sexy, tem sex appeal, nos vira para lá, mexe connosco, faz-nos virar para lá, orienta-nos e dirige-nos. Mas o querer do ser não é de uma única coisa, de muitas coisas ou de todas elas. Para o querer do ser é o querer de si, um querer-se a si nas suas manifestações positivas: querer simplesmente e positiva: “não quero mais isto!”. Schelling diz que há em cada ser humano uma saudade que faz vibrar todo o nosso ser, porque é a própria vibração do ser a ser, independente de mim, ti, dela ou dele. É uma saudade do ser que faz querer, um querer de nada em particular mas sempre de um querer-se-a-si, não para continuar a ser o que é, mas que se perspectiva como nunca tendo sido. Querer-se a si descobre-me como não existindo, não tendo sido verdadeiro, não tendo sido o meu potencial. E desse meu eu verdadeiro que não fui ou ainda não fui que o ser tem saudades, afinal eu não fui ainda. As saudades de me parir.