h | Artes, Letras e IdeiasOs surpreendidos do costume Valério Romão - 24 Jan 20205 Mar 2020 [dropcap]N[/dropcap]ão consigo nem de longe antever qual será o desfecho dos “Luanda Papers” e que consequências terá para a principal visada na investigação, a Isabel dos Santos. Assim à primeira, qualquer megainvestigação cujo título termine em “papers” parece-me destinada a cumprir muito poucas das expectativas que gera inicialmente. O que é duplamente frustrante, pois quando finalmente parece que uma tonelada de karma vai desabar sobre aquela malta que dos bastidores costuma rir da vida aqui rente ao chão, afinal não acontece nada ou quase nada. Business as usual, como dizem os americanos. Também não entendo muito bem as implicações da investigação, i.e., o que está em causa, os possíveis crimes cometidos e as penas que daí podem resultar. Para ter uma visão panóptica do assunto, um cidadão não especializado tem provavelmente que meter baixa e passar uma semana a ler tudo quanto se escreveu sobre o assunto. São milhares de documentos e dezenas de órgãos de comunicação envolvidos. Além do tempo requerido para estudar o processo, é ainda necessária uma panóplia de competências dificilmente disponível – pelo menos em simultâneo – num sujeito. Pelo que vou lendo, como toda a gente, suponho, os diversos artigos que sintetizam – de forma mais ou menos conseguida – a informação disponível e nos dão conta do andamento do processo. E, ao que parece, a coisa é grave e envolve muita gente do lado de lá e de cá, para além dos inevitáveis bancos e das inevitáveis consultoras e dos omnipresentes offshores, sem os quais, aparentemente, a trafulhice à escala planetária seria muito mais difícil de levar a cabo com sucesso. Também não sei da bondade do processo, ou seja, porque é que ele aparece agora e não há cinco ou dez anos. Suponho que o facto de o papá da visada já não mandar no país como o fez durante trinta e oito longuíssimos anos deve ter alguma coisa a ver com o assunto. Suponho que quem está agora no poder esteja a fazer as mudanças necessárias para pôr a casa a seu jeito, e que isso implique necessariamente retirar poder e influência a quem o detinha anteriormente. Na verdade, não me interessa muito o porquê. Na verdade, a única coisa que me interessa desta embrulhada é poder assistir ao vivo e a cores a mais uma demonstração grandiosa da aparentemente infinita cara de pau dos sujeitos envolvidos nisto. Porque era óbvio que há cinco ou dez anos a Isabel dos Santos era uma criatura impoluta, que o dinheiro dela era tão limpinho como uma cama de lavado e que ninguém ficava a cheirar a petróleo angolano quando lhe apertava a mão. Era óbvio que a Isabel dos Santos era um produto da meritocracia angolana, que tinha disposto das mesmas oportunidades que os seus compatriotas e que o facto de ser filha de um dirigente que fez de Angola a sua coutada em nada a tinha privilegiado relativamente a quem eventualmente pudesse concorrer com ela. Tudo isto foi uma grande surpresa para o Eurobic, para o Marcelo, para o Costa, para a PWC – coitados, como poderiam imaginar semelhante coisa tendo apenas acesso a grande parte da informação financeira dela –, para a generalidade dos políticos, que durante anos se acotovelaram em redor dela a ver se caía uma migalhinha da mesa dos adultos, para as empresas portuguesas onde Isabel dos Santos detém participações, para os fundos de investimento nos quais Isabel dos Santos meteu graveto, para todas as pessoas que queriam trabalhar para ela ou que trabalhavam com ela e para as pessoas que de algum modo poderiam tirar partido dela. Para meia dúzia de jornalistas, para a Ana Gomes e para todos os restantes, a surpresa foi só o quando.