A despedida

[dropcap]C[/dropcap]hegou dia 9 às salas portuguesas o filme escrito e realizado por Lulu Wang, co-produção CHINA – EUA, que deu um globo de ouro a Awkwafina, nome da actriz e raper Nora Lum, pela sua personagem Billi.

Billi é uma mulher de 30 anos estudante de arte em Nova York, filha única, que saiu com 6 anos de Changchun, cidade do norte da China, quando os seus pais emigraram. A personagem, como de resto todo o filme, é construído com material das relações pessoais da realizadora Lulu Wang com a sua família e em particular a sua avó Nai Nai.

Não se espere, no entanto, um tom confessional neste filme que cruza, com extraordinária eficácia, o material pessoal e familiar da personagem Billi, com a construção de uma narrativa fílmica ficcional, arquetipal na sua estrutura aristotélica dos três actos.

Ao longo da narrativa, diálogos inteligentes e verosímeis, como uma comicidade trabalhada em regime de laboratório, estabelecem a adesão do espectador à estória vivida na tela, onde as teias finas e densas da construção dos afectos dão a conhecer aspectos profundamente significantes do que é a cultura ancestral e milenar da China no mundo familiar na diáspora contemporânea.

A linha narrativa principal é simples; Billi e Nai Nai, avó e neta falam todos os dias pelo telemóvel, tem uma relação de amor forte apesar da distância geográfica, Billi vive em Nova Iorque e Nai Nai em Changchun. É diagnosticado um cancro terminal a Nai Nai. Toda a família decide esconder esse diagnóstico de Nai Nai e simultaneamente vão todos visitar a matriarca. Dado o carácter de Billi, a sua incapacidade de esconder os sentimentos, toda a família considera que é melhor ela não ir a esse encontro familiar. Para que o encontro não levante suspeitas a Nai Nai, é decidido pela família uma razão para o encontro, o casamento de um neto, o que vive no Japão e que tem uma namorada há três meses. Billi não acata a decisão de não estar presente no que é entendido como o encontro da derradeira despedida, e voa para a China. A sua chegada é vista com inquietação. Mas Billi decidiu, ainda que questionando, acatar a mentira piedosa que toda família está a viver, considerando que é o melhor para a Nai Nai. Se a morte vai acontecer, afinal porque não poupar a dor da certeza da escassez dos dias?

Se esta é linha narrativa principal, o que torna o filme magnifico são as constelações formadas por pequenas camadas que se instalam ao longo do processo narrativo, e nos dão a ver de forma clara, que na China contemporânea o valor dado à família, a importância do relacional, o existir em função do outro, o carinho e até a devoção ao mais velho, ideia de uma prática em função de um axioma em que o interesse social, nas suas diferentes escalas, a família, a comunidade mais próxima, o país, é o princípio orientador e não a atomização, o altar do subjectivo, o indivíduo como lugar cardeal da existência, permanece e é agregador e principal construtor de identidade.

Podem ter passaporte dos EUA, ter como objectivo que os filhos estudem nos EUA, mas ainda assim, é nos laços afectivos que se reconhecem mesmo que dos antigos bairros onde os avós viveram nada seja visível.

O encontro da família dá-nos a ver a permanência de uma filosofia tão antiga como a própria China, uma visão do mundo assente nos ensinamentos ancestrais do Mestre Confúcio, num registo que alterna sem sobressaltos entre a comédia e o drama, numa realização sóbria, ancorada numa representação de grande verosimilhança com a materialidade dos quotidianos, e uma banda sonora de grande qualidade e serventia à produção da emoção.

Em muitos aspectos, especialmente na necessidade do relacional, da pertença, na relevância dada aos afectos, apesar da distância geográfica, da barreira da língua, da religião e dos costumes, parece ser fácil reconhecer uma semelhança com a característica afectuosa e emotiva do povo Português.

Talvez por isso a particular relação de mais de 500 anos que entre nós está estabelecida e de que Macau é expoente e bandeira.

Como sempre, o cinema é um diálogo que faz notar a aproximação, a anulação da distância, geográfica e afetiva. A Despedida é afinal, nesta notável comédia, o lugar do encontro.

 

Realizador: Lulu Wang
Produção: Anita Gou, Daniele Tate Melia, Andrew Miano, Peter Saraf, Marc Turtletaub, Chris Weitz, Jane Xheng
Argumento: Lulu Wang
Elenco: Shuzhen Zhao, Awkwafina, X Mayo, Hong Lu, Hong Li, Tzi Ma, Diana Lin, Yang Xuejian, Becca Khalil, Han Chen, Yongbo Jiang, Xiang Li, Aoi Mizuhara, Hongli Liu, Shimin Zhang
2019 | EUA | CHINA Comédia, Drama | 100 min.

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