Os dias do Fólio

[dropcap]1[/dropcap]2 de Outubro de 2019, 21:30. Entro para o palco do Auditório Municipal Casa da Música na companhia da Ana Sousa Dias e de Mathias Énard para participar numa mesa do Festival Fólio 2019 cujo tema é a Oriente do Oriente. Este é o problema dos factos: mesmo que minuciosamente enumerados, eles são mudos para a constelação de significados que só as relações e as suas estruturas conseguem adequadamente convir.

Eu faço anos a 12 de Outubro. O Mathias Énard é dos escritores franceses actuais que mais me desassossega. Se me tivessem dito, há quatro ou cinco anos, que ia ter a oportunidade de estar numa sessão com ele num festival literário como o Fólio, no dia do meu aniversário, teria despedido a hipótese com as costas da mão. Mais a mais o tema: O Mathias Énard fala farsi (persa) e árabe, viveu em diversos locais do médio oriente antes de se estabelecer em Barcelona, onde reside actualmente; por outra parte, eu estou a aprender chinês e no dia da sessão estava a três semanas de viajar para Macau para lá passar um mês e meio em residência literária. O oriente a oriente do oriente. O oriente enquanto matrioska. Nada de mais adequado e certeiro.

O Mathias escreveu um livro notável chamado Zona. É um livro que se divide em vinte e quatro capítulos ou cantos desprovido de qualquer sinal de pontuação excepto vírgulas. Cada uma das suas 528 páginas corresponde um quilómetro da viagem que o narrador faz de comboio de Milão para o Vaticano, em Roma. É um livro que parece querer exumar os mortos que a barbárie humana resultante da guerra tem vindo a semear pela Europa e Médio Oriente. Mas não é um livro de factos; é um livro de relações. De invocações. Narrado ao modo de stream of conciousness, é uma espécie de epopeia caleidoscópica, onde ecoam as vozes de Zeus, de Atena ou de Ares no intervalo das rajadas de Kalashnikov. É um livro que não nos deixa esquecer que o estado de guerra – que a maior parte de nós não conhece – é um acontecimento humano tão natural como recorrente. E é nesse contraste que o livro se instala e cresce: entre a Europa pós-união europeia e os mortos sobre a qual a paz foi edificada. É um livro arriscadíssimo que podia falhar a qualquer momento – não é fácil manter aquele fôlego narrativo ou as dinâmicas que dão amplitude ao relato e não o deixam cair numa banalidade gore ou mesmo o interesse continuado do leitor. E se há uma coisa que aprecio acima de todas as restantes num escritor é o seu voluntarismo em correr riscos. Je vous tire mon chapeau, Mr. Énard.

Acabámos por falar dos nossos métodos de escrita, dos nossos livros editados, dos nossos projectos futuros. O Mathias adora investigar. Se vai escrever um livro sobre Istambul numa determinada época, instala-se numa biblioteca até conseguir fechar os olhos e ver aquela Istambul de que ele quer falar. É também isso que faz dele um escritor extraordinário: enquanto eu me deixo levar pela corrente, ele aprendeu a bolinar no mar do tempo.

Eu sou instintivo, pouco metódico, interesso-me mais pela profundidade do que pela latitude e tenho pouca sensibilidade para a cenografia. Eu toco guitarra sozinho no quarto, ele conduz orquestras. A cada um o seu elemento.

Despedimo-nos com um abraço. Eu dei-lhe um livro meu em francês, O da Joana, na esperança que ele um dia o leia. O Fólio deu-me esta prenda, uma das melhores da minha vida. Obrigado à Ana Sousa Dias, ao José Pinho, à Raquel, à Susana, ao Pedro e até àquele sacana que não parava de encher o copo de ginja.

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