Folhetim h | Artes, Letras e IdeiasA Grande Dama do Chá Fernando Sobral - 4 Out 2019 [dropcap]A[/dropcap]s chávenas e os bules de chá que existiam na loja “O Jardim Celestial” de Jin Shixin eram da dinastia Qing e estavam decoradas com requinte. Compreendia-se: Jin era a Grande Dama do Chá. Não deixava nada ao acaso, ela que criara a mais afamada loja de chá de Macau. Enquanto ela atendia uma cliente portuguesa, Marina Kaplan ia passando os dedos pela fina porcelana das chávenas que estavam num móvel de madeira de cerejeira. Depois sentou-se e inspirou o aroma do chá verde de Anhui que tinha defronte dela. Levou a chávena aos lábios e deu um pequeno gole. Era maravilhoso. Como os chineses Han, Jin não se convertera ao gosto do chá preto que a dinastia Qing, manchu, preferia. Não por acaso, na Cidade Proibida, existiam duas cozinhas para preparar a bebida. Uma para fazer o chá preto com leite para a corte manchu e outra para o chá verde preferido pelos Han. Esse mundo dividido ao meio pelo chá acabara com a chegada da República. Marina sentiu que Jin, impecavelmente vestida num cheongsam verde bordado com uma flor de lótus, se aproximava. Levantou a cabeça e esboçou um sorriso. A pose de Jin era exemplar. O seu sorriso era convidativo e o olhar doce. Qualquer cliente era seduzida por ele. Os seus olhos cintilavam. Sentou-se defronte da russa e perguntou: – O chá está ao teu gosto? – Está maravilhoso. Jin sentou-se e agarrou no bule, despejando um pouco de chá para a chávena que estava à sua frente. – O Cândido este ontem à noite no Bambu Vermelho? – Chegou lá muito abalado. – Imagino. Viu o corpo do russo morto à porta do restaurante. – Como sabes? Jin fez um sorriso enigmático, que Marina compreendeu. Desde que chegara a Macau, Jin criara uma vasta teia de contactos. Sabia o que se passava nas ruas e nos becos e, nalguns casos, no meio da administração portuguesa. Muitas das suas clientes eram casadas com funcionários públicos portugueses. Falavam de coisas triviais. E de outras mais importantes. Jin sabia ouvir. – Cândido percebeu agora onde tu o colocaste. Ele ama-te. Mas ontem ficou na dúvida se não o estás apenas a utilizar para teu benefício. Porque voltou a ver a morte defronte dos olhos. – Ele terá pensado no que sucedeu à sua namorada em Xangai, a Qin Xuan? Marina franziu a testa, como se estivesse a tentar recordar o passado, antes de dizer: – Acho que sim. Lembras-te do que sucedeu? Foi logo a seguir ao suicídio daquela actriz famosa, a Ruan Lingyu. Era tão nova! Mas a Qin foi morta. Num daqueles ajustes de contas entre bandos. Ela estava perto do homem que queriam matar e também foi baleada. Vinha a sair dos estúdios da estação de rádio que tinha o Lucky Strike Radio Hour e que passava jazz. Cigarros e dançar eram a mistura perfeita, diziam eles. E ela, que vendia cigarros no Canídromo, tinha ido lá levar maços de tabaco para os locutores. Uma gentileza que lhe saiu cara demais. Cândido demorou tempo a recuperar, como sabes. Passou a tocar e a beber para esquecer. E viciou-se no ópio. Ainda bem que veio para Macau. Jin tentou parecer imperturbável. – Ela alguma vez soube quem disparou? – Nunca lhe disse. É bom que fique na ignorância. Sabe apenas que algo correu mal e que a polícia nunca conseguiu averiguar nada. Os olhos de Marina denotaram alguma nostalgia. – Nunca mais vai haver uma Xangai assim. Com corridas de cães no Canídromo e cabarets, homens a apostar nos cães como se estivessem a jogar a sua própria vida, noites loucas a dançar cheias de homens e mulheres desejáveis, sem ninguém saber que horas eram. Com todo o tempo do mundo para viver. Para mim, que vinha fugida da Rússia, esse era o paraíso. Jin sussurrou e disse, mordaz: – Fumavas Lucky Strike ou Da Ying? – Os verdadeiros cigarros americanos. Em tempos de perdição, para quê escolher cigarros que fingiam ser chineses e eram também americanos, como os Da Ying? Mas, diz-me, Jin, que queres fazer com Cândido? – Dar-lhe apenas uma missão que faça com que se sinta vivo. E amor. Jin parou por um momento e bebeu um pouco mais de chá. – De que lado estás, Marina? – De nenhum. – Os japoneses acabarão com o jazz. E com a paz. E com Macau. E mesmo com o teu amor, Ezequiel. – E vocês, se ganharem, não o farão? – Ainda vives numa ilusão, Marina. És inteligente, mas só vês o que queres. Lembra-te, Xangai era a cidade das concessões estrangeiras. Com os comunistas a corroerem-na por dentro. A cidade só parecia livre para os estrangeiros. Xangai não era uma cidade. Era uma ilusão feita com pessoas reais. Tudo ao serviço do prazer. E dos sonhos para os ocidentais. Era a paz perfeita: uns divertiam-se, os outros ganhavam dinheiro. Depois vieram os japoneses. E a ilusão foi como uma bola de cristal: quebrou-se. – Eu sei o que passei, Jin. Comecei como acompanhante no Ciro’s. Tive a sorte de Du Yuesheng e de ti própria terem gostado de mim. Não o esqueço. Mas quero viver a minha vida. – E se os japoneses ganharem? – Descobrirei qual é o ritmo da dança. Aprendi que neste mundo de enganos, cada um cria o seu próprio jogo de sombras e de ilusões. – Esse é também o jogo do Ezequiel? Ou tem também um acordo com os japoneses? Marina fez um ar sério. Sondou o olhar de Jin. E depois disse: – Ele é um homem com valores. É um negociante, mas tem ética. Não se vende por tudo. Porquê? – Há cerca de dois anos os japoneses começaram por querer tomar conta da vida noctura de Xangai na barba dos franceses. Queriam substituir o ópio pela heroina, que se injecta com agulhas. Extrai-se do ópio, por isso eram negócios concorrentes. Queriam os clubes nocturnos para controlarem a noite e afastar o Bando Verde. Sem o dinheiro do ópio, deixaria de ter tanta força. É uma boa forma de se ocupar uma cidade sem ninguém reparar. Parou um pouco para ver que reacção causava o que estava a dizer em Marina. Esta ripostou: – Também querem fazer isso em Macau. Nomura propôs comprar-me o Bambu Vermelho há umas semanas. Mas aqui gosta-se mais de ópio. E não há uma vida nocturna como a de Xangai. O seu objectivo, aqui, cairá por terra. Talvez conquistem a noite de Manila. E a de Hong Kong. Aqui não. – Sabes, Marina, tudo isto faz-me lembrar uma velha fábula chinesa. Nela, uma coruja encontra uma codorniz e esta pergunta-lhe: “para onde vais, coruja?” E esta responde: “Vou para oeste, pois as pessoas da aldeia reclaram muito do meu piar.” Diz então a codorniz: “aceita uma sugestão minha: muda o teu piado, ou vão odiar-te onde quer que vás”. – Eu seu mudar de piar, Jin. Marina deu uma gargahada. Apesar das diferenças, conheciam-se há demasiado anos. E partilhavam demasiados segredos. A conversa foi interrompida pela chegada de um casal. Falavam inglês, com sotaque. Eram americanos. Jin levantou-se e colocou o seu sorriso de vendedora. – Continuaremos esta conversa depois. – Diz-me só mais uma coisa. Foste tu que mataste o russo? Jin olhou para ela, mas não respondeu. O seu olhar dizia tudo. Marina Kaplan agarrou na chávena e depois levou-a à boca. Aquele chá delicioso não deveria ser desperdiçado.