Dias de mudança

I

[dropcap]H[/dropcap]á dias que fazem convergir para si linhas de acção de diversas frentes e com prazos diferentes de desenvolvimento. Seja a preparação de um negócio, mesmo simples, a compra ou a venda de um artigo, um instrumento musical ou uma obra literária. Seja a inscrição num ginásio para finalmente se pôr em prática o que queríamos há tanto tempo, ter actividade física, ou na mesma linha de acção: deixar de fumar, beber menos, fazer dieta. Seja fazer a viagem ou as férias que podemos finalmente ter. Tudo pode acontecer num mesmo dia e a fazer confluir frentes idênticas de sentido. Não se compra ou vende a guitarra apenas mas compra-se ou vende-se a guitarra, os livros. Parece que nesse dia somos pessoas de negócio, só que habitualmente nada disso acontece. Temos a primeira aula no ginásio, deixamos ou reduzimos os cigarros e a ingestão de bebidas alcoólicas, iniciamos uma dieta, compramos roupa desportiva, tudo parece reluzir como nos primeiros dias de adolescência quando tínhamos o primeiro dia na piscina ou no dojo. Marcamos a viagem para uns dias num sítio em que alguém tem uma casa que nos oferece para estadia. Tudo no mesmo dia. Há dias em que tudo acontece e nada parece abortar, a trama da vida a ser faz que aconteça mesmo que mudemos de vida. Por maioria de razão acontece quando encontramos alguém.

II

Desde sempre percebi, desde o insondável e distante horizonte da infância, que havia momentos na vida, que definiam marcos, antes e depois, melhor: a partir dessa altura tudo haveria de ser diferente e nada continuaria como dantes. Parece uma redundância. Como é que o que será diferente poderia continuar igual e como é que o que não continua como dantes poderia ser igual depois. Mas é mesmo assim. Há uma compreensão do tempo anterior à experiência de vida por que se passou que também se dá relativamente ao tempo ulterior à experiência. Antes e depois colidem. Não há um único instante, mas há a vida toda. A vida que tinha sido levada até esse instante e a vida que se desenrola à nossa frente, sem pormenores mas na sua configuração. A partir de agora a vida vai ser totalmente diferente do que foi até aqui. Numa outra formulação possível a vida que podia ter sido como foi até aqui vai ser completamente diferente. A vida que era suposto ser tida passa a ser outra. Aquilo por que se passou, os momentos que se atravessaram, reconfiguraram a vida. Não sem antes a terem posto debaixo de um único horizonte que não sabíamos que havia, porque tudo parecia exterior a nós, o espaço, o tempo, os outros, nós próprios. Agora, só há interior e um interior que parece existir no tempo, um tempo que passa a ser radicalmente diferente do que foi até então, como se até então não tivesse havido tempo e agora passa a haver tempo, um tempo que começou a contar de forma decrescente e nós temos de viver uma vida que não foi desenhada por nós, mas pelo trauma. Tudo é post-traumático.

III

Os primeiros instantes em que conhecemos alguém que fica na nossa vida são diferentes dos primeiros instantes em que vemos alguém que conhecemos mas não fica na nossa vida e diferentes daqueles em que nem sequer nos apercebemos que vemos alguém. Há pessoas que ficam nas nossas vidas em ausência permanente. Tal como os nossos mortos estão sempre presentes a constituir a nossa mente lúcida, assim também eles estão presentes, independentemente de avaliarmos as suas existências como boas ou más para nós. Num instante parece lançar-se um projecto para sempre de convívio e co-existência. Ou antes, dá-se um excesso de sentido que vai para lá da mera sincronização entre ver e visto, sujeito e objecto. Há qualquer coisa que capta a história daquela miúda ou miúdo na infância, mas é sobretudo porque dá a sensação que já nos conhecíamos uns aos outros antes e que era a altura de nos revermos.

Do mesmo modo, para além do reconhecimento há logo um quotidiano, um lance de futuro. Não é só presente e história pressentida é também futuro lançado numa antecipação e previsão meramente formais mas eficazes. Não só já éramos antes de nos termos conhecido como a nossa vida seria completamente diferente se não tivéssemos conhecido aquelas pessoas. Não seria possível ter futuro sem aqueles encontros. Não seria possível ter as nossas vidas sem aquelas pessoas. O futuro da vida é antecipado de tal forma que o calcorreamos até ao fim. Aqueles encontros arremessam-nos para o fim das nossas vidas. Lá estarão na hora da nossa morte. Um instante distendido do passado para o futuro e não a abstracção de ter a percepção de alguém: na piscina, no recreio, na sala de aula, no ginásio, numa rua a acenar.

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