Livro | Jornalista norte-americana alega que Kim Jong Nam foi informador da CIA

O meio-irmão do líder norte-coreano, que residiu em Macau cerca de uma década antes de ser assassinado, pode ter sido informador da CIA. A revelação está presente no livro “The Great Successor: The Secret Rise and Rule of Kim Jong Un”, de autoria de Anna Fifield, jornalista do The Washington Post. Além da alegada colaboração de Kim Jong Nam com os serviços secretos norte-americanos, a obra desvenda alguns detalhes sobre o líder do mais hermético regime político da actualidade

 

[dropcap]A[/dropcap]pesar da vida de Kim Jong Nam em Macau ser discreta, compreensível para quem era meio-irmão do líder norte-coreano que, por inerência, nunca se deu bem com potenciais concorrentes ao poder, um livro publicado ontem refere relações com a CIA. Além de colaborar com os serviços secretos norte-americanos, Kim Jong Nam terá alegadamente mantido ligações ao crime organizado e à lavagem de dinheiro através dos casinos.

Um artigo publicado na segunda-feira no Wall Street Journal cita uma fonte próxima dos serviços de informação norte-americanos que diz que a relação entre Kim Jong Nam e a CIA não é clara. A mesma fonte divulga a opinião de vários antigos oficiais de informação que dizem que o meio-irmão do líder norte-coreano, que vivia fora do país há muito tempo, não tinha acesso a informação e não estaria numa posição de fornecer detalhes sobre os segredos políticos de Pyongyang. Além disso, as fontes ouvidas pelo Wall Street Journal consideram que, muito provável, Kim Jong Nam tenha contactado com serviços de informação de outros países, em particular da China.

As alegações partem do livro “The Great Successor: The Secret Rise and Rule of Kim Jong Un”, de autoria de Anna Fifield, jornalista e directora da delegação de Pequim do The Washington Post. O livro da jornalista norte-americana, publicado ontem, traça a ascensão política de Kim Jong Un, o seu perfil desde criança e as complicadas e sangrentas relações familiares em torno da cúpula do poder de Pyongyang.

De acordo com a Reuters, Fifield alega que Kim Jong Nam se encontrava, normalmente, com os agentes em Singapura e na Malásia. Aliás, é referido que na última viagem à Malásia, o meio-irmão de Kim Jong Un foi apanhado por uma câmara de segurança num elevador de um hotel, acompanhado por um homem de aparência asiática, alegadamente um agente dos serviços norte-americanos. Fifield alega também que Kim Jong Nam transportava uma mochila com 124 mil dólares americanos. A autora de “The Great Successor” não tem a certeza quanto à proveniência do dinheiro, alegando que tanto poderiam ser pagamento por informações prestadas aos serviços secretos, como ganhos do seu negócio de casinos. Quanto às repercussões da colaboração com a CIA, a jornalista não tem dúvidas que “o seu irmão consideraria falar com um espião americano um acto de traição”.

Família montanhosa

Durante a investigação, Anna Fifield contactou a família próxima de Kim Jong Nam, que se encontra em Pequim, e que desapareceu de vista desde o assassinato em Fevereiro de 2017 na Malásia. “Toda a gente desapareceu, compreensivelmente. Em particular, os homens da família têm razões para temer o que lhes pode acontecer”, comentou a autora em entrevista ao Japan Times.

As razões para recearem pela vida, além de se fundarem na crueldade de Kim Jong Un, têm uma forte origem mitológica que está na génese do regime norte-coreano. Como as sucessões no poder têm laivos monárquicos, os homens da família Kim têm legitimidade para aspirar o poder com base na suposta “linhagem de Paektu”, a ideia de que a família descende da Montanha Paektu, que tem um vulcão activo, e que é o berço mítico do povo norte-coreano.

Nesta acepção, a jornalista destaca Kim Han Sol, filho de Kim Jong Nam, como uma das pessoas que corre mais perigo. Não só devido à legitimidade para disputar a liderança do país, mas porque prestou declarações à comunicação social a criticar abertamente o regime de Pyongyang, algo que colocou o seu pai em grande risco. Na face do perigo que enfrentam, Kim Han Sol, acompanhado pela mãe e irmã, desapareceram de vista depois do assassinato do pai.

Apesar de parte da família “real” norte-coreana viver no estrangeiro, as suas vidas sempre foram fortemente condicionadas pela iminente ameaça de brutalidade do regime de Pyongyang. O controlo do Governo norte-coreano não se faz sentir apenas dentro de fronteiras e sobre pessoas com menos poder, mas também sobre as elites que vivem no estrangeiro. Anna Fifield discorre sobre essa realidade comparando as vidas de Kim Jong Nam e do seu primo, Ri Nam Ok, a pássaros enjaulados, que vivem severamente restritos de movimentos e envoltos em paranoia, mesmo na Europa.

De um modo geral, a família do líder norte-coreana tem permissão para viajar e levar uma vida desafogada e luxuosa no exterior, apesar dos variados graus de secretismo e controlo a que estão sujeitos. Por exemplo, a mãe de Kim Jong Nam, apesar de afastada do poder pelo pai de Kim Jong Il, viveu exilada confortavelmente em Moscovo desde os anos 70 até 2003 quando morreu de cancro da mama. Ainda hoje, a sua campa (em Moscovo) é visitada e decorada por oficiais da embaixada norte-coreana.

Esta atmosfera de privilégio faz com que muitos dos familiares do clã Kim mantenham lealdade ao regime.

Problemas japoneses

Quando ascendeu ao poder, em Dezembro de 2011, poucos analistas previam um longo “reinado” de Kim Jong Un. A Coreia do Norte encontrava-se completamente isolada do mundo, sujeita a debilitantes sanções impostas pelas Nações Unidas e com a economia nas ruas da amargura. Além disso, Kim Jong Un não tinha qualquer tipo de experiência de gestão. Ainda assim, o jovem líder mostrou-se implacável, sem medo de fazer correr sangue e com noções de geoestratégica que poucos anteciparam.

No entanto, sempre permaneceu erguida uma espécie de barreira psicológica no caminho da ascensão política de Kim Jong Un: a origem japonesa da sua mãe, Ko Yong Hui que, apesar de ser etnicamente coreana, nasceu em Osaka. Quando tinha 10 anos, Ko Yong Hui regressou à Coreia, assim como outros 93 mil coreanos que estavam imigrados no Japão movidos pela ideia de construir a pátria. Decisão que muitos se vieram a arrepender profundamente.

Importa recordar que a Coreia sofreu uma ocupação brutal pelos japoneses e que, ainda hoje, a imprensa oficial de Pyongyang diaboliza o Japão quase tanto quanto os Estados Unidos.

A ascensão de Kim Jong Un dá-se, finalmente, com a caída em desgraça do seu meio-irmão, que viveu em Macau. Kim Jong Nam era visto pelo seu pai como o natural sucessor ao poder. Depois da juventude passada na Europa, onde estudou, o retorno à Coreia do Norte como sucessor era visto como uma inevitabilidade, inclusive porque Kim Jong-il vinha-o preparando para assumir a liderança do país. Porém, em 2001, Kim Jong Nam comete um erro fatal ao ser preso quando tentava entrar no Japão usando um passaporte falso da República Dominicana, com o nome Pang Xiong, que significa urso gordo. O meio-irmão de Kim Jong Un viajava acompanhado por três familiares, duas mulheres de 30 e 33 anos e um rapaz de 4 anos. À altura, foi reportado que o grupo tinha como destino a Disneyland de Tóquio e acabou por ser deportado para Pequim.

Ainda nesse ano, Kim Jong Nam era considerado o natural sucessor da dinastia Kim, facto visível quando em Janeiro de 2001 acompanhou o seu pai numa visita oficial à China, reportadamente para uma visita de estudo com a intenção de retirar lições sobre a modernização e abertura da economia chinesa. Inclusivamente, a revista oficial chinesa Guang Jiao Jing, que fez a cobertura da visita, anunciou Kim Jong Nam como o sucessor no poder referindo-se ao “herdeiro” como o “Pequeno General”.

Depois do incidente da Disneyland, que envergonhou a liderança norte-coreana, Kim Jong Nam foi afastado da sucessão e o seu pai começou a procurar o herdeiro do “trono”. O próximo na linha sucessória foi Kim Jong Un.

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