Mais perto da verdade

[dropcap]H[/dropcap]á 45 anos o meu país mudou. Perdeu poeira, perdeu teias de aranha, perdeu algemas e mordaças. E ouviu-se um grito imenso pelas ruas. Num momento, parecia haver um só povo, uma só garganta, uma única língua: a que pedia liberdade.

A liberdade veio mas não veio sozinha. Trouxe a Educação e a Saúde para todos, o direito ao trabalho e as férias. Trouxe dignidade a cada cidadão e a certeza de poder olhar outros quaisquer de frente apenas por ser humano e português. Trouxe a lei estribada no pressuposto de que era igual para todos.

Ao mesmo tempo, o povo português descobria-se. Ele havia tantos que nunca tinham visto o mar. Tantos que não sabiam ler. Tantos que não faziam ideia do que existia além do horizonte das aldeias, das vilas, das suas vidas encerradas na tradição e no medo.

Sim, havia medo. Medo do cura, medo dos lobos, medo dos doutores. Medo da guarda, medo da geada e medo do médico. Era um país aterrado, no sossego e no respeitinho. E havia a guerra, que nos diziam ser contra os “turras”, algo vago e africano. Havia um canal de televisão, a preto e branco.

Depois, há 45 anos, foi uma explosão de cores, de esperanças, de motivos e ideais. Esqueceu-se Fátima, o fado e o futebol; emergiu a política, os partidos e o divórcio. Até o povo perceber que falava muito, gastava muito tempo em reuniões, encontros e assembleias, mas pouco era ouvido, e que talvez fosse melhor ser cidadão de quatro em quatro anos, na mesa de voto, a não ser que quisesse carreira num partido. Chegaram as telenovelas, regressou o futebol, nasceu uma nova geração de fadistas e o Papa devolveu protagonismo à Cova da Iria.

Ou seja, durante 45 anos, o país tentou moldar-se à democracia, liberal para uns e empobrecida para outros. Nisto foi um sucesso. O ideal de igualdade foi-se aos poucos dissipando, ao ponto de hoje parecer “injusto” a alguns jovens turcos. Portugal segue, desajustado como sempre, a cartilha da Europa, e talvez nalguns aspectos deste desajuste resida algum do nosso encanto. Noutros a nossa desgraça. Fadisticamente falando.

45 anos depois continuamos a celebrar o evento que catapultou a nossa vida colectiva para um outro patamar de realidade, retirando-nos de uma existência reprimida, vegetativa e rural, espécie de hamish europeus.

Querer voltar atrás seria como perguntar a quem contemplou a luz se prefere regressar à contemplação das sombras. O que o 25 de Abril nos deu, entre muitas outras coisas, foi a possibilidade de uma vida mais perto da verdade.

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