A maioridade

[dropcap]H[/dropcap]oje fazemos 18 anos. Pelos padrões actuais, se fossemos uma pessoa, atingíamos a maturidade. Mas não somos uma pessoa, somos um jornal. E as coisas são diferentes para as pessoas e para os jornais. Por exemplo, os jornais são como os cavalos: mal nascem, é suposto saberem andar e pelo seu pé. Já os humanos precisam de um ano e tal para se conseguirem firmar nas pernas. Os jornais nunca conhecem um estado de graça infantil, em que as pessoas se riem dos disparates e estimulam as piadas. Não. Os jornais são criticados pelo que fazem (“porque fazem mal”) e pelo que não fazem (“porque não fazem”). E não há saída para isto.

Os jornais, quando aparecem, já vêm pintalgados de cãs e vergados pela gravitas da responsabilidade de ser público e a consciência de nunca agradar a gregos e ainda menos a troianos. Resta-nos, então, a “verdade”, essa bóia de salvação dos jornalistas… ou será que… ?

Por exemplo: “Estudantes, de idades compreendidas entre os 13 e os 15 anos, foram agredidos pela polícia em Hong Kong, à porta de um estabelecimento de ensino” ou “Polícia impede estudantes, de idades compreendidas entre os 13 e 15 anos, de invadirem estabelecimento de ensino a que não pertenciam”.

Ora ambas as frases são verdadeiras mas, relatando o mesmo facto, adoptam perspectivas diferentes.

Percebem? A verdade não se exprime de forma fácil porque ela é de tal modo complexa e subordinada às nossas estruturas expressivas que de verdadeiro tem, em geral, muito pouco.

Quase tudo fica de fora. O nosso trabalho é de minúcia, de leitura de pistas subtis, que nos permitam levantar um pouco mais o véu, iluminar outro canto, outro pedaço de realidade e da História que ajudamos a escrever.

A nossa maioridade enquanto jornalistas é conseguir ler, interpretar e transmitir algum sentido no caos geral da informação. Ou seja, por outras palavras, não pretender “dizer a verdade” mas lançar de tal modo luz (informação credível e confirmada, tendo em conta o contexto histórico-político e económico-social, bem como o enquadramento cultural) sobre um assunto, uma questão, um problema, que permita ao leitor formar uma opinião abalizada. Um jornal deve preocupar-se mais em informar do que em enformar, em criar cidadãos e não seguidores. E é por isso que a comunicação social é fundamental em democracia.

No melhor dos mundos seria assim. Mas como não é o dr. Pangloss — esse eterno optimista voltairiano que sempre viveu “no melhor dos mundos” — que chefia este jornal, sabemos muito bem que tal erigimos apenas como horizonte e que todos os dias é nessa via que tentamos caminhar. Tão só e apenas. Sem pretender que esgotamos a realidade com as nossas notícias ou que a sabemos ler com a perspectiva final e absoluta. Não somos, com certeza, heróis nem cruzados. E ainda menos temos certezas definitivas sobre este ou aquele assunto. Esta descrença faz parte da nossa cartilha, sobretudo quando é aplicada a nós mesmos.

*

O regresso da racionalidade — com o fim da II Guerra Mundial e a constatação de Auschwitz, e o ocaso do combate ideológico com a queda do Muro de Berlim — permitiria sonhar com uma civilização planetária amadurecida, cansada das guerras e desconfiada das ideologias, baseada numa economia de mercado alicerçada em paradigmas ético-ecológicos. Nos EUA alcançara-se a democracia eleitoral plena em 1968, com a inclusão dos afro-americanos nos cadernos eleitorais de todos os estados da União. A África do Sul eliminou o apartheid em…1993! Apesar da proximidade temporal, racismo, machismo, fanatismo religioso, pareciam ser já coisas do passado, tão fora do âmbito da política contemporânea como a peste negra da medicina actual.

Mas nada disso. A maturidade não só não foi alcançada como deparamos com uma espantosa e inesperada regressão de valores e a emergência de personagens como Trump e Bolsonaro, que representam a persistência do pior da Humanidade.

A História não terminou, como pretendia Francis Fukyama porque a democracia de tipo ocidental se encontrou refém do neo-liberalismo, cuja falta de ética e erosão de valores construiu uma sociedade unicamente baseada no lucro e sem rédeas para controlar os detentores do capital, nomeadamente a banca e outros serviços financeiros.

O neo-liberalismo roeu por dentro o Ocidente e instigou a criação, uma vez mais, de movimentos de índole fascista, cujo objectivo é provar a impossibilidade da democracia e a emergência do caos, de modo a surgirem como os garantes de uma futura ordem. Ao apresentar a TINA (there is no alternative) como um dado de facto, o neo-liberalismo mais não fez que criar grupos de desesperados, descamisados, sem horizonte de esperança, ou seja, o terreno ideal para o recrutamento de extremistas.

Enquanto que a social-democracia assentava numa sociedade solidária e inclusiva, o neo-liberalismo, sem produzir grande teoria, cria as condições para o aparecimento de uma sociedade profundamente injusta e corrupta, um enorme fosso social e, pior que tudo, uma sensação de impotência e falta de esperança face ao imparável desenrolar dos acontecimentos, expurgados pela excessiva rapidez da informação (e proliferação de falsas notícias) nas redes sociais.

É o caso do actual movimento de “camisas pretas” em Hong Kong que, sob a fachada de palavras de ordem pela democracia, impedem qualquer tipo de progresso na instauração de uma ordem democrática na cidade e apelam simplesmente à destruição e ao caos. O que começou ali na região vizinha como um movimento popular legítimo de recusa da lei da extradição para a China, plenamente justificado pela História e pelo presente, descambou em acções violentas, claramente manipuladas pelos Steve Bannon deste mundo, que na realidade pretendem impedir o estabelecimento de qualquer evolução democrática em Hong Kong.

As más condições de vida na ex-colónia britânica foram precisamente criadas por essa tendência neo-liberal, com profundas raízes colonialistas, a quem não importa absolutamente nada que milhões não tenham uma habitação condigna e passem várias horas do dia em transportes para chegar a um emprego cujo salário não é suficiente para fazer face ao custo de vida que os mesmos amos impõem. Causa por isso indignação deparar com bandeiras americanas e do Reino Unido nas manifestações de Hong Kong. É como se os negros nos EUA lutassem pelo regresso da escravatura.

E como deve ser aborrecido para os jovens de Hong Kong verem que os seus vizinhos de Shenzhen têm muito maior poder de compra e vivem em casas dignas desse nome e não em cubículos infestados de pessoas e de ratos, ou seja que, apesar da falta de liberdades fundamentais de que eles em Hong Kong usufruem, muita gente da classe média no continente tem uma qualidade de vida muito melhor que os seus congéneres da ex-colónia britânica! Mas é mesmo assim. Nas últimas décadas, a China e o seu primeiro sistema tirou da pobreza centenas de milhões de pessoas, enquanto que o segundo sistema de Hong Kong se afundava em crise atrás de crise. Das quais, aliás, nunca teriam saído sem o auxílio financeiro de Pequim.

Não quero dizer com isto que perfilhamos um regime com tiques do primeiro sistema, mas que rejeitamos com certeza um segundo sistema baseado na concorrência selvagem e sem regras que permitam uma normal ascensão social, incluindo uma discriminação positiva para os que não nascem em berço de ouro e de colher de prata na boca.

Como se sabe desde o século XIX, o mercado é autofágico e precisa de regras para não se devorar a si próprio e, no processo, destruir milhões de vidas nas sociedades onde se encontra implantado. As últimas crises, provocadas pelos magos das finanças, foram superadas através da injecção de capital estatal, incluindo nos EUA, o que representa uma gigantesca contradição para os neo-liberais que pretendem o mais possível um Estado não interventivo. Menos quando isso lhes convém ou tina.

*

A maioridade é um problema. Implica responsabilidade e a capacidade de fazer promessas, de criar expectativas nos outros e cumprir essas mesmas expectativas. Não é fácil porque ser humano não é fácil. Nascemos em sociedades já formadas que não escolhemos. E se, por um lado, essas sociedades nos dão aquilo de que necessitamos para nos transformarmos em pessoas; por outro, muitas vezes nos colocam em situações desesperadas, cujos contornos nem sempre são óbvios de discernir.

Também é para isso que aqui estamos faz hoje 18 anos. Para informar a população de Macau, usufruindo da liberdade de expressão que a Lei Básica nos garante e que até hoje não foi violada. Infelizmente, em grande parte por causa dos acontecimentos de Hong Kong, a RAEM pouco evoluiu em termos de democracia eleitoral. No entanto, temos de reconhecer que o Governo procura ouvir a população, embora normalmente decida a favor dos interesses instalados.

Felizmente para nós, Macau tem a capacidade financeira para proporcionar uma vida digna às pessoas. E só não o faz melhor porque tem estado submetida a uma oligarquia que pensa primeiro nos seus interesses e só depois nos modos de manter a harmonia social.

A RAEM não atingiu com certeza a sua maturidade. Pelo contrário, revela algum infantilismo quando consideramos projectos como o metro ligeiro (um comboio de brincar à volta de uma ilha, servindo primordialmente os casinos), o hospital da Taipa (que não cresce nem aparece) ou o preço da habitação (que serve os especuladores do imobiliário). Mas da maioridade também faz parte a aquisição de alguma paciência e a compreensão das situações concretas nas quais nos encontramos.

A situação não é clara. Esperemos pois para ver o que o futuro nos reserva. O Hoje Macau pretende acompanhar-vos nessa caminhada. Com rigor jornalístico, determinação social e também alguma loucura sem a qual a maioridade se torna cinzenta e chata. Não matemos a criança que, até ao dia da nossa morte, sempre habita em nós. É ela que torna tudo isto suportável, ainda que para isso precise muitas vezes de brincar às escondidas. E, nesse espaço de profunda intimidade, erigir sempre como valor supremo a liberdade.

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