Ana Saldanha, autora de “Literatura, Arte e Sociedade em Portugal”: “Há falta de perspectiva para compreender o passado”

O novo livro de Ana Saldanha, apresentado hoje na Fundação Rui Cunha, dá a conhecer as manifestações literárias e artísticas no Portugal contemporâneo entre o Golpe de Estado de 1926, a instauração do fascismo e a Revolução do 25 de Abril de 1974. A docente do Instituto Politécnico de Macau analisa movimentos e autores que não se dissociam do seu tempo

 

Como surgiu a possibilidade de editar este livro, que traça um olhar transversal à sociedade portuguesa entre 1926 e 1974?

Trabalho com literatura portuguesa desde o meu doutoramento e tenho trabalhado bastante com a literatura produzida durante o fascismo, nomeadamente a literatura neo-realista. Tenho trabalhado também com a literatura do pós-25 de Abril das décadas de 70 e 80. Tenho feito também trabalho com a arte muralista, com a literatura feita por autoras mulheres, e este livro partiu da ideia de juntar tudo isto e fazer uma obra que se dedicasse ao período do fascismo e do 25 de Abril de um ponto de vista da sociologia da literatura.

Temos então um olhar transversal sobre tudo o que se fez na área da cultura neste período de tempo.

Não considero que a literatura se deva desligar dos movimentos da sociedade e de outras manifestações artísticas. Temos de ter uma visão de conjunto para compreender a literatura, arte e aspectos socio-políticos. É nesse sentido que construo este livro: compreender a literatura não apenas fechada no seu próprio universo mas algo que comunica com todos os outros aspectos da sociedade, com a canção, a arte e o cinema.

Entre 1926 e 1974 acontece muita coisa na sociedade portuguesa. Olhando para as representações artísticas de 1926, consegue fazer uma comparação face a períodos posteriores relativamente ao papel que tiveram?

A questão será mais a inversa, pois a partir do golpe militar de 1926 instala-se uma nova situação socio-política em Portugal. Portanto, todas as manifestações artísticas das décadas de 20 e de 30 não se podem desligar desse contexto, e não é por acaso que o neo-realismo vai depois surgir na década de 40. Não considero que possamos ler as manifestações artísticas sem ter uma compreensão prévia do contexto socio-histórico. Temos de fazer uma leitura dialéctica.

Foram-se construindo passos para, em 1974, dar lugar a outras manifestações, como a música de intervenção no período do 25 de Abril. Em 1926 não haveria outro tipo de expressões ao nível da música, haveria outras.

Sim. Ainda que a música de intervenção surja de uma certa linha contestatária que já vinha de antes do 25 de Abril. Mas mais uma vez não a podemos compreender sem compreender também o contexto socio-histórico. Em relação à literatura, como diz Eduardo Lourenço, nos anos que imediatamente se seguiram ao 25 de Abril, de facto não há uma grande produção literária. Esta só surge no final da década de 70. Mas durante esse período em que não há uma grande produção literária temos, por exemplo, a arte que se manifesta de uma outra forma, que sai das galerias e que vai para as ruas, tal como a música. E a música de intervenção vem um pouco no sentido da arte, porque deixa de estar escondida. A música torna-se na palavra do povo português, ela é apropriada pelo povo. De uma certa forma é uma manifestação artística, em que há um autor, quem a cante, mas há também um movimento colectivo em volta disto, inclusivamente com a arte muralista. Esta interligação entre o colectivo e o individual também é bastante interessante como fenómeno socio-estético depois do 25 de Abril. Naturalmente que a literatura, depois de um período de censura, com o 25 de Abril e a ideia de construção de uma sociedade diferente, seguiu depois os seus caminhos próprios, ainda que nas décadas de 70 e 80 esteja extremamente ligada ao passado recente português.

A arte muralista foi algo muito específico, de um certo período de tempo. Depois da Revolução deixou de se pintar murais, pelo menos com a mesma força.

Há aqui uma questão do facto de a arte ser apenas acessível a uma elite. E antes do 25 de Abril para se ver arte era necessário ir a uma galeria e a um museu. O 25 de Abril veio trazer a possibilidade de todos terem acesso à arte. Esse processo foi muito importante no Brasil, mas ao contrário. Durante a Ditadura Militar traz-se a arte para a rua como forma de consciencialização através de outras expressões artísticas, como a impressão em notas de um real da questão “Quem matou Herzog” [referência ao assassinato do jornalista Vladimir Herzog em 1975]. Em Portugal é assim também, com ligação a um terceiro elemento, bastante peculiar, que é o facto de podermos participar nessa construção da obra de arte. Muitos dos murais foram pintados pelas pessoas que eram orientadas por alguém. Todos podiam participar na construção de uma obra de arte. Havia uma espécie de reciprocidade e isso tem a ver com o contexto revolucionário.

Dedica também um capítulo às antigas colónias neste livro. Macau, ainda que não fosse uma colónia, olhava com algum distanciamento sobre estas manifestações que iam acontecendo na então metrópole?

Não me debruço sobre Macau e não faço essa ligação. O contexto das colónias interessa aqui para compreender a Guerra Colonial, a razão da formação do MFA [Movimento das Forças Armadas], a ligação que tem depois com todo o processo de guerra. Interessa-me como um contexto sócio-histórico e não tanto como produção. Não falo da produção literária que é feita a partir da situação colonial, o que me interessa é, na literatura produzida depois do 25 de Abril, a forma como a situação colonial e a guerra é tratada pelos autores.

E como foi tratada?

Depende. O que acontece é que a guerra colonial passa a ser parte da matéria literária. Depois do 25 de Abril foram anos extremamente traumáticos e passou a haver uma literatura que, reflectindo sobre o passado recente português e a censura, tinha também de reflectir sobre este processo. Este período, de tão traumático que foi, era difícil que não entrasse na matéria literária. Temos o António Lobo Antunes, o escritor onde talvez a guerra colonial esteja mais presente na sua literatura. Dificilmente poderíamos compreender a literatura do Lobo Antunes sem compreender o que foi a guerra colonial, ainda que a vivesse como médico. Mas a guerra colonial surge também em obras de autores como Manuel Alegre, Olga Gonçalves ou Mário de Carvalho.

Depois do 25 de Abril surgem autores como José Saramago, Prémio Nobel, Fernando Namora, José Cardoso Pires. Como caracteriza esta literatura portuguesa do pós-25 de Abril, já com algum distanciamento?

Mesmo que a matéria revolucionária e os acontecimentos históricos pareçam estar ausentes, é sempre uma literatura que não pode ser entendida sem que se faça uma compreensão do 25 de Abril. É esta a ideia que defendo neste livro. Estas obras só surgem porque houve o 25 de Abril, e é como se a matéria socio-histórica estivesse sempre presente. Há uma geração de autores que fazem a reflexão a partir daquilo que escrevem é feita a partir de um contexto revolucionário ou pós-revolucionário.

Esta obra dedica-se ao público no geral, mas os alunos que a folhearem vão ter, no fundo, acesso a uma compilação de dados sobre o Portugal contemporâneo.

Sim. Não há nenhuma obra deste tipo em Macau e, para mais, com esta perspectiva sociológica da literatura. Havendo uma ausência de produção do ponto de vista teórico, mas também nesta tentativa de conjugação da matéria literária com o contexto social e histórico, e para mais com este contexto que é tão importante, como é o da Revolução de Abril, e todo o período do fascismo português, achei que seria necessário ocupar este espaço. Além disso, aqui no IPM há várias disciplinas ligadas à literatura portuguesa onde penso que este livro se pode inserir. Há também uma falta de perspectiva, quer historiográfica quer social e estética que permita reunir e compreender o passado recente português, interligando todos os movimentos da vida e da história.

3 Jun 2021

Mais perto da verdade

[dropcap]H[/dropcap]á 45 anos o meu país mudou. Perdeu poeira, perdeu teias de aranha, perdeu algemas e mordaças. E ouviu-se um grito imenso pelas ruas. Num momento, parecia haver um só povo, uma só garganta, uma única língua: a que pedia liberdade.

A liberdade veio mas não veio sozinha. Trouxe a Educação e a Saúde para todos, o direito ao trabalho e as férias. Trouxe dignidade a cada cidadão e a certeza de poder olhar outros quaisquer de frente apenas por ser humano e português. Trouxe a lei estribada no pressuposto de que era igual para todos.

Ao mesmo tempo, o povo português descobria-se. Ele havia tantos que nunca tinham visto o mar. Tantos que não sabiam ler. Tantos que não faziam ideia do que existia além do horizonte das aldeias, das vilas, das suas vidas encerradas na tradição e no medo.

Sim, havia medo. Medo do cura, medo dos lobos, medo dos doutores. Medo da guarda, medo da geada e medo do médico. Era um país aterrado, no sossego e no respeitinho. E havia a guerra, que nos diziam ser contra os “turras”, algo vago e africano. Havia um canal de televisão, a preto e branco.

Depois, há 45 anos, foi uma explosão de cores, de esperanças, de motivos e ideais. Esqueceu-se Fátima, o fado e o futebol; emergiu a política, os partidos e o divórcio. Até o povo perceber que falava muito, gastava muito tempo em reuniões, encontros e assembleias, mas pouco era ouvido, e que talvez fosse melhor ser cidadão de quatro em quatro anos, na mesa de voto, a não ser que quisesse carreira num partido. Chegaram as telenovelas, regressou o futebol, nasceu uma nova geração de fadistas e o Papa devolveu protagonismo à Cova da Iria.

Ou seja, durante 45 anos, o país tentou moldar-se à democracia, liberal para uns e empobrecida para outros. Nisto foi um sucesso. O ideal de igualdade foi-se aos poucos dissipando, ao ponto de hoje parecer “injusto” a alguns jovens turcos. Portugal segue, desajustado como sempre, a cartilha da Europa, e talvez nalguns aspectos deste desajuste resida algum do nosso encanto. Noutros a nossa desgraça. Fadisticamente falando.

45 anos depois continuamos a celebrar o evento que catapultou a nossa vida colectiva para um outro patamar de realidade, retirando-nos de uma existência reprimida, vegetativa e rural, espécie de hamish europeus.

Querer voltar atrás seria como perguntar a quem contemplou a luz se prefere regressar à contemplação das sombras. O que o 25 de Abril nos deu, entre muitas outras coisas, foi a possibilidade de uma vida mais perto da verdade.

25 Abr 2019

Concertos inéditos de José Afonso editados com livro em Abril

[dropcap]D[/dropcap]ois concertos de José Afonso, gravados em 1968 em Coimbra e em 1980 em Carreço, em Viana do Castelo, vão ser editados pela primeira vez, numa edição que inclui um vinil e um livro do jornalista Adelino Gomes.

A apresentação “deste documento” – que inclui em vinil o concerto realizado em Maio de 1968, no Teatro Avenida, em Coimbra, e um livro de autoria do jornalista Adelino Gomes, que contextualiza os dois concertos – é no dia 6 de Abril, em Carreço, nos arredores de Viana do Castelo, disse à agência Lusa José Moças, editor da Tradisom, que publica o trabalho. “Carreço é o ambiente do Zeca [Afonso], e foi uma decisão da família”, disse.

O concerto realizado em Carreço, a 23 de Fevereiro de 1980, no salão da Sociedade de Instrução e Recreio local, contou com a participação dos músicos Júlio Pereira, Guilherme Inês e Henrique Tabot, e concretizou-se pela “teimosia” de um fã de José Afonso, Manuel Mina. “Manuel Mina gostava muito do Zeca e queria apresentá-lo na sua terra, e antecipadamente andou pela freguesia com uma folha de papel a assentar os nomes de quem viria a um espetáculo” do criador de “Grândola, Vila Morena”, de forma a garantir bilheteira, sem sequer ter uma data.

O editor discográfico José Moças disse à Lusa que “foi um acaso” ter encontrado o concerto realizado em Carreço, numa viagem com amigos, em que começaram a ouvir José Afonso, num concerto do qual não se supunha haver registo, tendo encetado em seguida uma investigação sobre a possibilidade de haver outras gravações amadoras e encontrado uma realizada a 4 de Maio de 1968, no Teatro Avenida, em Coimbra.

Moças referiu-se ao ambiente de então no teatro conimbricense como “pesado, com muitos agentes da PIDE, tendo José Afonso atuado acompanhado apenas por José Pato”. A gravação de Coimbra é em bobina, “estava em perfeitas condições”, e foi cedida pelo catedrático jubilado de Aveiro, Jorge Rino, colecionador de discos antigos e grafonolas.

A escolha de Adelino Gomes deveu-se ao facto de ter sido o primeiro que entrevistou o autor de “Índios da Meia Praia” quando este regressou de Moçambique em 1967. A bobina desta entrevista ter-se-á perdido, pois não se encontra nos arquivos da ex-Emissora Nacional, na RTP. José Moças salientou “o trabalho sério de investigação sobre os dois concertos e a ligação entre eles, tendo nesse período o país evoluído muito”.
Moças contactou a viúva do músico, Zélia Afonso, e os filhos dos dois, Joana e Pedro, que lhe deram “carta branca, estando tudo contratualizado”. “Quis fazer disto um documento, os dois concertos estão em CD, o de Carreço a partir das cassetes que foram gravadas, o de Coimbra decidi editar juntamente um vinil, porque era a época do vinil”, afirmou.

Depois da apresentação no dia 6 de Abril em Carreço, José Moças conta fazer “várias apresentações em todos o país, há já datas, até porque este ano celebram-se os 90 anos do nascimento de José Afonso”.

31 Jan 2019