Mundo e música

 [dropcap]N[/dropcap]ão tenho a certeza, mas imaginemos que o nosso primeiro sentido é o auditivo. A percepção acústica tem consequências no nosso corpo todo. Não nos lembramos de como era no ventre da nossa mãe. Mas podemos achar que é táctil, líquido, quente, interior: um pequeno mundo. Ainda assim, proponho: a nossa primeira sensação é acústica. Como será no interior do ventre da nossa mãe? Seremos nós exteriores dentro de um interior acústico? Lembro-me de como foram as minhas percepções: o mar, o trânsito em Lisboa, a cozinha onde se matavam animais para serem comidos, os primeiros dias de Primavera, o frio de Dezembro. Eram visuais, não? Mas todas tinham a vibrar no seu interior música, tinham tonalidades, melodias, harmonias. Eram músicas estranhas porque não tinham instrumentos a exteriorizá-las. Tinham uma camada visual e uma camada acústica. E não só. O tacto era musical: o corpo era quente e lento ou frio e rápido ou lento e rápido: quente e frio. E era húmido ou envolvente como um slow ou seco como um acorde do baixo para o agudo. O gosto era musical: batidos de morango eram uma sinfonia e a Coca-Cola um Rock pesado. Depois, há o olfacto: as doces e melódicas fragrâncias que contrastam com o ácido e azedo que dá prazer e nos faz elevar ao céu e descer ao inferno.

 As primeiras impressões são acústicas, são auditivas. Não apenas nas sensações. Não. São no espaço. O quarto da infância é lento como o tempo do tédio. O quarto, o mesmo, da juventude, é rápido como as músicas doidas que se ouviam e ouvem quando o tempo tem de ser preenchido. O quarto do estrangeiro encontra na luz ou na penumbra, numa segunda-feira ou numa sexta-feira, o seu ritmo. Mas era ao domingo que era lento. O tempo da vida tem esta musicalidade complexa, inebriante. Quando era tempo, era musical. Não sabemos bem como, mas era. E, depois, há os outros. Os outros têm as suas sensações, os seus locais, os seus tempos. Podem ser os outros com as suas sensações, os seus lugares e os seus tempos, mas os outros connosco e nós com eles somos outras sensações, outros lugares e outros tempos.

 Os outros vêm das suas mães, dos seus cheiros, sabores, visões e audições. Vêm do seu tempo, do seu lugar e do seu corpo. Quando conhecemos os outros vemos um misto de tudo: sensações, lugares, tempos. Os outros são os seus pais e avós, irmãos e filhos. Nós somos os outros: pais, irmãos e filhos. Os outros que são connosco e nós com eles somos um conjunto de sensações, lugares e tempos. E tudo isso é uma melodia complexa com múltiplas vozes, ritmos e melodias. Ninguém é só. Alguém é só na mudez e no silêncio das suas vidas. Não. Mesmo na voz solitária falamos connosco e somos três: eu que falo comigo sobre mim: tu que falas contigo sobre ti. O outro que fala consigo sobre si. Nós que falamos uns com os outros sobre nós. Vós que falais com os outros sobre vós. Os outros que falam com eles sobre eles.

 A primeira percepção da vida é acústica. O tempo é captado no tempo. A harmonia é ouvida na distensão temporal da harmonia. O ritmo é o da vida. Lento como nas tardes de domingo. Rápido é sexta-feira à noite ou sábado. O ritmo e a melodia é diferente nos primeiros acordes. É diferente nos acordes finais de um soneto. Um soneto é música falada. A fala é a música da conversa, do discurso, do que dizemos sem querer e do que dizemos sem querer. É como nas relações intrínsecas e íntimas. Tudo é um horizonte musical.

 Tudo é um horizonte musical. Não é visual, táctil, olfactivo ou gustativo.

 Vem um tempo, o princípio, acordes primeiros da vida: sempre a criar expectativa, sempre, ao princípio de prazer. Depois, talvez tarde demais, mas ainda cedo, de sofrimento. A promessa transforma-se em ameaça. O tempo futuro, musicalmente, é o da ameaça e da promessa. A promessa do prazer e a ameaça de sofrimento.

 A noite abate-se sobre o quarto na solidão. A solidão não engana. A solidão pode não ser eu só, mas acompanhado por toda a gente. Um mundo cheio de vozes sem dizerem nada e cacofónicas. Também pode ser outra coisa. Eu com toda a gente do mundo e nenhuma harmonia. Ou então: eu só contigo: em vez de haver um ritmo tão lento que abranda a vida ao ponto de a parar. É que a morte não tem tempo e, por isso, não tem música.

 Mas tu vieste: cheia de ritmo e melodia e harmonia.

 A vida passa do silêncio da mudez a ser a melodia do silêncio em que nada preciso de dizer no tempo.

 O tempo é a vida. A vida é a música possível, quando há amor. Impossível, quando não o há.

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