Porca de Murça

[dropcap]E[/dropcap]ntrando na primeira Lua Nova de Fevereiro no Ano do Porco, associamos um ciclo de mealheiros recheados de moedas e um conforto doméstico qualquer. Não sendo propriamente o mais atraente no Bestiário oriental, nem por isso deixa de ser afável e de um acalentamento qualquer no nosso imaginário. Crescemos com as suas histórias, acompanhou-nos no ciclo da civilização, e ainda as gentes lhes são gratas pela utilidade gastronómica de acesso fácil e ciclos simples de tratamento. Não falemos do Médio Oriente cuja utilidade é nula e a sua ingestão interdita, isso, e talvez, por que o deserto não preserva bem as suas carnes, nem tão pouco obedece às prédicas fisiológicas e anatómicas da exigência da ingestão. Contornemos os obstáculos associados à sua natureza e vejamos neste animal, também, um cordeiro, a quem não lhe foi reconhecido o mérito sacrificial em prol da Humanidade.

A Porca de Murça é no entanto um dos símbolos mais fortes da Península Ibérica, e quase que limita a periferia entre uma agreste fronteira celta, lendária, cujos nomes de proximidade também reflectem uma aridez e truculência difíceis de pronunciar como Carrazeda de Ansiães: nestes paragens foram invadidas populações por javalis, cujas montarias não chegavam para afoitá-los, e outrora havia uma fêmea de tal corpulência e ferocidade que os povos consideram um monstro – mas não só era assim – como inteligente e estratégica na forma de fintar os inimigos sendo por isso uma força da natureza que aterrorizava ainda mais aquelas gentes.

Foi um cavaleiro no ano de 775 – Senhor de Murça – que agindo de espírito matreiro e habilidades várias consegue salvar as pessoas do terror. Matou a porca. O caçador ficou protegido pela comunidade que graças a tal reconhecimento, foros lhes foram dados junto à estátua. Podemos ver aqui a natureza germinativa e opulenta deste animal que excede no feminino todas as expectativas do seu género, de facto, ela é uma mãe pródiga e a sua prol uma abundância. Por outro lado, são extremamente inteligentes e encontram-se à frente dos cães em astúcia e atenção, são sociáveis e interagem muito bem a nível de diversões, há quem admita que são corajosos na defesa dos seres à sua volta em caso de ameaça e muito ao contrário do disfarce que lhe colocámos, a sujidade não faz parte das suas características. A característica é nossa projectada neles e, por tudo isto que tão cruelmente lhe fizemos, o Porco é um ser que deve ser reanimado do trauma de proximidade .

Existe por aí, fruto de uma consciência ainda de sinistralidade demográfica, e de sistemas errados de capitalismo: versus/anti, uma parafernália de discussões viscosas acerca dos pernis, das exportações , das consubstanciações, uma repugnante e maciça consumação da sua carne, os mais pobres são as áreas onde penetra a ingestão em peso, pois que ninguém pensa neles em matéria de longevidade. Como parar este tormento e como tornar mais proteica a necessidade dos povos? Devia ser uma urgência neste tempo de mudança um assunto assim. Mas não o é, e a exportação da sua carne para a China no ano em curso toma foros de genocídio da espécie e massacre de vidas. Gostaríamos de interromper este drama mas, nas contas dos Estados, as prioridades são outras e as soluções de fundo ainda não foram entendidas.

Mas cruzemos então situações: ainda não há muito tempo por terras do Norte, bem perto de Murça, um homem que resolveu fazer a matança sozinho, foi morto por uma porca, e esta abatida por equipas de socorro. Uma notícia que não escapa à atenção dos que sabem da lenda daquelas quase jurássicas regiões que continuam, milénios depois, a ser vítimas das mesmas coisas. Aquele homem não sabia que as porcas são animais perigosos, e na sua rude manifestação, escolhera-a pelo porte mais volumoso, são os agrários que desconhecem as lições de vida dos seus próprios «habita». Há um roteiro nas paragens das lendas que reproduz realidades iguais. A memória das coisas é mais forte que a Porca e quase se confunde com ela.

Não nos esqueçamos que existe sempre analogias às fêmeas lusitanas pela abundância e fertilidade, quem não conhece aquela frase que diz: « As éguas da Lusitânia emprenham pelo vento» verdadeiras ânforas de gestação e pródiga matéria orgânica….nas regiões rurais, o porco era levado à porca, ninguém leva a fêmea a parte alguma de forma simples, dirigista, e em caso de matança, os machos são mais fáceis de caçar e de matar. A célebre caçada à Porca tem a sua estátua na Praça 31 de Janeiro, em Murça, pois que se crê que foi por esta altura que se deu a emboscada, talvez um remoto culto a Fébrua (Fevereiro) mãe da guerra, onde as noites estavam habitadas de tochas e candeias para conceder vitória sobre os inimigos. Não sendo um animal teutónico (o encantamento pelos animais) era considerado temível e nada dado a manobras de sedução.

Desta Porca ficou-nos a título um belo Vinho, e nestas paragens já não há relatos de javalis. Do bloco granítico, e para agudizar a predominância do macho em período possivelmente mais tardio, fora-lhe colocados testículos. Mas as lendas andam e têm mutações imprevistas. Para nós, esse apetrecho não usurpará jamais a condição de uma imensa força feminina em acção, muito antes da retirada dos seus seios.

Bom Ano do Porco, seja lá o que isto signifique, e recheadas estejam as suas representações que são bons prognósticos de riqueza.

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